sábado, setembro 29, 2007

A suavidade do caos

A lua esqueceu-se de aparecer esta noite. Sinto tanto a tua falta que nem saberia dizer por palavras o aperto que sinto cá dentro, tira-me a fome e a vontade de fazer coisas complicadas, apetece-me ficar na cama agarrada aos meus joelhos e a balançar-me devagarinho enquanto olho pela janela no tecto. A cama rente ao chão e a janela que deixa entrar o luar directamente sobre a minha fronha como eu sempre quis. Luar que não existe, está tudo enevoado... a Natureza nem me dá o prazer de observar uma tempestade. Espero que a lua esteja a iluminar-te por onde quer que andes.

Esta manhã estava carregada de Inverno, brutalmente fria! Não sei como arranjo coragem para escapar aos lençóis e ao calor que a proximidade do teu corpo generosamente me dá. Não sei como me visto entre arrepios de frio, como não faço mais caretas quando o leite frio me toca nos dentes, como visto o casaco e agarro no guarda-chuva com segurança. Quando cheguei, custou-me a abrir a mão com que ainda segurava o guarda-chuva, doíam-me as costas de estar encolhida, mas mesmo assim o calor da minha secretária era convidativo. Distraí-me um bocado com estas coisas todas do início do ano lectivo e cheguei a casa mais tarde do que queria. Vim cheia de vontade de te encontrar, de partilhar contigo uma ou outra banalidade diária, ouvir o que tens a dizer, saber de ti, olhar-te nos olhos... queria tanto sentir-te! Não te chamei alto porque achei que não estavas em casa, a mesa estava limpa, o sofá desocupado e o computador desligado. Não sabia se ainda não tinhas jantado ou se não ias jantar em casa, não era assim tão tarde. Vi o telemóvel e não tinha qualquer mensagem ou chamada tua. Perdi a fome. Depois de comer uma ou duas peças de fruta e de perder mais tempo do que o que devia a ler notícias na Internet, desisti de esperar por ti.

Não imaginas o meu espanto ao ver-te já deitado. Estavas a dormir com um aspecto tão calmo e eu sem sono nenhum... As perguntas estilhaçavam na minha cabeça sem piedade nenhuma. Por onde tens andado? Ouviste-me chegar? Porque é que te deitaste tão cedo? O que tens feito? O que te fez rir hoje? Apeteceu-te partilhar alguma coisa comigo? O que queres fazer no fim-de-semana? Será que já tens tudo planeado sem mim... outra vez? O que se passa connosco?? Já não consigo saber o que pensas. Sinto que devia conhecer-te melhor do que conheço, sinto que devia acordar-te e perguntar por ti. Sinto que devo lutar por nós mas nem sei por onde começar ou se ainda queres lutar ao meu lado. Mas não sou capaz de te perturbar, nem de te tocar... vesti a camisa de dormir, sentei-me na cama longe de ti e apertei os joelhos contra o meu peito com força. Sinto que te perco a cada suspiro lento que dás e não faço ideia de como inverter as coisas. A frustração que sinto é como uma mancha preta que se alastra indefinidamente dentro de mim e me faz sentir muito pesada, cansada e perdida. Solto finalmente uma lágrima de incompreensão e outra... e uma cascata delas, ao mesmo tempo que a tempestade rebenta e abafa os meus soluços.

A água serpenteia na sua elegância, as gotas ritmam a noite e tu dormes com ar tão calmo. Eu era capaz de ficar a olhar para ti a noite toda, és lindo. Está tudo delicadamente vivo e suavemente pintado ao meu redor... e eu sinto-me uma supernova.

sexta-feira, setembro 14, 2007

Sétima pista: no fim do arco-íris

(continuação)

Corri pela rua, desejei poder empurrar o metro para ir mais depressa, corri pela estação, corri durante todo o caminho que me separava de ti e só parei quando te vi. Só aí o meu coração desatou a bater atabalhoadamente e eu senti uma certa incapacidade em manter-me de pé. Tu viste-me assim que cheguei, imagino a minha figura... cabelo desgrenhado, o livro dos três mosqueteiros numa mão e uma mala pesada na outra. Estava parada feita estátua a olhar para ti. Levantaste-te e viraste-me costas, sem cerimónia nenhuma, em direcção a uma barraquita de gelados. Tive que reunir muito esforço mental para decidir qual das minhas pernas ia avançar primeiro e não me esquecer de avançar a outra a seu devido tempo. Fui deixando de respirar conforme a distância entre nós encurtava e parei completamente quando fiquei frente a frente contigo e me ofereceste um gelado.

- Magnum clássico? - ofereceu-me ele.
- Exacto, ainda te lembras... obrigada. Pensava que te tinhas ido embora? - estava mais que entalado na minha garganta e fui incapaz de reter para deixar sair um "olá" ou "que bom rever-te".
- Não foste despedir-te de mim - apesar de tudo, o tom dele não era zangado.
- Pois... hum... é horrível reconhecer isto, mas não tive coragem. Desliguei o telemóvel para não te dar hipótese de te despedires porque não te queria ouvir a dizer adeus e depois, quando já sabia que o avião tinha levantado, fiquei quase a odiar-me por não ter ido. Fiquei tão decepcionada que nem tenho saído de casa, é verdade. Pensava que era mais forte, devia ter lá estado, queria dizer-te coisas que achei que não tinha direito, não naquela altura. Queria ter ido... devia ter-me despedido de ti. Devia ter sido mais forte... por ti - nem uma única vez levantei os olhos do chão enquanto tentava justificar-me (sem perder a voz) de uma coisa que não tinha justificação.
- Fizeste-me sofrer um grande pedaço é verdade. Telefone desligado durante tanto tempo...
- Porque voltaste? - disparei eu.
- Eu não voltei, eu nunca saí. E já devias saber disso há mais de uma semana!
- Foi por isso que me tentaste ligar mais do que uma vez? Tu não chegaste a partir?!
- Não. Vais deixar o gelado derreter? - desta vez, ele tinha um olhar divertido.
- Cancelaram o voo? Que se passou? Não te quiseram, cancelaram o contrato?
- Eu não assinei nada, não fui porque não quis. E queria dizer-te que fiquei por ti, mas tu não me deste hipótese porque nunca chegaste a aparecer!
- Ah... - uma pessoa diz-nos uma coisa destas e a coisa mais inteligente que temos para dizer é um "ah"... eu sou triste.
- Resolvi fazer isto para te fazer sofrer um bocadinho e também para te fazer sair de casa, a tua mãe disse-me que não tens saído desde que... pronto. Na altura fiquei sem saber bem o que fazer. Não me disseste nada, nem na altura nem depois! Já não sabia se tinha feito bem ou se realmente devia ter ido naquele avião.
- Não!! Não devias nada ter ido embora! - saiu-me completamente sem aviso, inspirei devagar - Bem, eu nem sei qualificar a minha reacção ou falta dela. Muita falta de bom senso, é verdade! E sim, isto é eufemismo. Mas quero que saibas que desejei sempre que fosses tu por detrás disto. Em cada pista que descobria, cada passo até aqui, sonhei que ficava mais perto de ti... ajuda-me nalguma coisa? - ri-me do nervosismo.
- Ah sim? E como é que me vais convencer disso? - respondeu-me num ar trocista.
- Eu posso provar! - finalmente um sorriso da minha parte.
- Podes?... Como?
- Rima com varicela! - respondi eu, finalmente orgulhosa de qualquer coisa que tinha feito.

Entreguei-lhe o meu gelado ainda por abrir e tirei a caixa de chocolates da mala, o meu pequeno triunfo. Mostrei-lhe com um orgulho incomparável.

- E não é que valeu mesmo a pena esperar por ti?! - ele estava genuinamente surpreendido e não conteve uma gargalhada.
- Ora... há coisas que nunca mudam! - respondi eu com o maior sorriso de há muitos dias.

Rimo-nos com vontade, enquanto os gelados se derretiam. Aproximámo-nos um do outro (com cuidado para não esmagar os gelados) e ele deu-me um beijo sem bom senso nenhum, felizmente. Não tirámos os olhos um do outro durante o resto da tarde. Só o via a ele e era incapaz de imaginar a quantidade de pessoas que passeavam, iam e vinham à nossa volta. Parecíamos dois miúdos acabados de abrir todos os presentes de Natal e depois descobrir que eram exactamente o que tínhamos pedido. Rebolámos nas imperfeições da relva, rimos, falámos imenso, respirámos um para o outro... Por fim, resolvemos parar para descansar debaixo de uma arvorezita, eu fiquei sentada na relva ao colo dele. Olhei para os meus pés por nada de especial, simplesmente porque estavam no meu horizonte. Senti-me a transbordar de alegria, alegria por nada em particular, apenas felicidade pura por tudo. Senti-me demasiado pequena para guardar tanta alegria, senti-me demasiado minúscula para merecer tanto. Há pessoas que durante uma vida inteira não têm um só momento daqueles. Enchi-me de coragem para dizer tudo o que tinha guardado dentro de mim, e do meu quarto, nos últimos dias.

- Desta vez tenho que te pedir para ficares comigo. É egoísta, eu sei, mas quero sentir-me assim sempre que puder. E tem que ser contigo, normalmente não consigo ter tantas dores nos maxilares e nos abdominais. E eu gosto que me doa o maxilar de tanto rir... Eu costumo conseguir parar de rir, sabes? E perto de ti isso nunca acontece. Quero-te, a sério.
- Eu fiquei por ti, lembras-te?
- Mas eu nunca te tinha dito isto. Nunca tinha coragem... Nem há uma semana tive e agora que pensava que tinha perdido tudo, ter isto de volta é quase bom demais. Eu não mereço, mas queria dizer-te que te quero comigo alto e bom som para não teres que adivinhar ou ficar na dúvida sobre o que eu penso sobre ti... nós.
- Bem, mereces qualquer coisa, afinal chegaste ao fim do jogo mais rápido do que eu supunha... e acertaste na caixa de chocolates! E eu queria ouvir-te dizer isso... finalmente.
- Isso é um sim? - se o meu coração continuasse a bater assim, ia precisar de um transplante.
- Que remédio!...
- Até parece!
- Pronto, pronto... sim, claro! - e abraçou-me num sorriso brilhante.
- Assim está melhor.
- Achas?
- Não... tenho a certeza! Sinto-me como se tivesse descoberto o pote de ouro!
- Qual pote de ouro?
- O do final do arco-íris.
- Qual arco-íris?... Ok, esquece, tu és estranha... Chega p'ra cá!

sexta-feira, setembro 07, 2007

Sexta pista: a nossa história está na História

(continuação)

Subi alguns degraus até à entrada do museu e fiquei algo espantada por ver lá o João!

- Por cá?
- Olá! Então que andas por aqui a fazer?
- Eu... olha, vi publicidade à exposição temporária e vim cá dar uma vista de olhos! Quanto custa?
- É grátis, está patrocinada por um banco qualquer.
- Ah, ok! Vou dar uma vista de olhos... que fixe ver-te aqui! A ver se nos encontramos um dia destes.
- Espera, toma lá o folheto com o mapa cá do sítio! Viras ali à direita para começar.
- Obrigada!

Pisquei-lhe o olho e segui pelo corredor, virei à direita tal como ele me disse, mas o local estava cheio de setas de qualquer modo. Cocei o pescoço por reflexo. Entrei na sala e fiquei maravilhada com algumas peças, fico sempre perdida não só pelo modo como está tudo tão bem pintado, desenhado e “recortado” como pelo facto de tudo aquilo ter uma mensagem subjacente e um significado que eu não compreendo totalmente. Senti que a minha busca pela sétima e última pista tinha toda a lógica em estar ali. Mistérios e mais mistérios que não vão ser desvendados porque já se perderam no tempo. Nas areias do tempo é capaz de ser uma expressão mais conveniente...

Depois de ter demorado imenso tempo a ver a sala (tinha tempo), abri o mapa para ver para onde tinha que me dirigir e descobri que o meu mapa não era apenas da sala, nem sequer da exposição ou do museu. O meu mapa estava “ligeiramente” alterado. Conseguia ver alguns corredores do museu, mas tinha outro mapa desenhado por cima. Era um mapa da cidade, ou parte dela, e tinha uma bola encarnada no sítio do museu. Essa bola encarnada era a referência à sala temporária onde me encontrava no mapa original. Um bocado a custo, lá entendi que a exposição tinha apenas outra sala do outro lado do corredor e dirigi-me para lá. Não vi grande coisa da segunda sala, tinha bem presente que tinha andado a última hora e tal com a sétima pista nas mãos e nem um olhar lhe tinha deitado... Apercebi-me de repente que o João também estava metido naquilo! A minha esperança acendeu de novo e tive bastantes dificuldades em acalmá-la, a caixa na minha mala também não me ajudava a esquecer do que eu queria acreditar.

Olhei para o mapa com cuidado, visto não me conseguir concentrar nas jarras canópicas onde os egípcios colocavam alguns orgãos dos mortos (sim, dos vivos era capaz de ser chato). O mapa não estava completo e a única coisa realmente desenhada era o local do museu e do rio. Mas não estava propriamente claro em que zona do rio é que estava a resposta e o raio da cidade está praticamente rodeada de água! Reparei melhor no mapa original e existia um quadrado onde alguém tinha pintado quatro quadradinhos por cima das pontas do quadrado original. O quadrado grande ficava mesmo na zona do rio, supostamente seria uma sala qualquer no primeiro piso do museu, mas ali podia muito bem significar uma plataforma quadrada no rio... E aquela forma de plataforma não era completamente desconhecida. Estava tão contente que deixei as múmias para a próxima visita, elas também não iam longe. De qualquer modo, ainda me demorei na loja do museu onde comprei um escaravelho para recordação. Na saída voltei a passar pelo João.

- Safado, estás metido nisto!
- Não acredito que só te vais embora agora. Pensei que já tivesses saído e eu não te tinha visto!
- Só reparei agora no mapa adulterado que me deste! Eu sou um bocadinho lenta, tens que ter paciência e...
- Despacha-te, vai lá embora depressa, mexe-te!
- Mas qual é a pressa?
- É que eu já avisei que tinhas saído...
- Ah sim? Quem é que avisaste? Como sabes que vou para o sítio certo? Ajuda-me!
- Ora, deixa-te lá disso, pisga-te!!
- Se fosse contigo queria ver...
- Despacha-te miúda!! Ele está à espera, não tarda perdes o pôr-do-sol!