quarta-feira, janeiro 21, 2009

As noites contigo

- Porque é que me metes a ver coisas para miúdas?
- Tu gostas. - Respondi eu enquanto descascava mais um pistacho.
- Não gosto nada.
- Então porque é que nem desvias o olhar da televisão?
- Porque... olha ela vai mesmo ter com ele!!

Acho que fiz uma careta bem disposta. Para quê constatar a realidade em voz alta? A preocupação dele era o desenrolar da série e o meu eram os pistachos que não estavam suficientemente abertos para meter lá o polegar e partir a casca. Desisti dos pistachos porque já não havia mais nenhum aberto e preparei-me para esticar as pernas... para cima dele, claro.

- Posso?

Nem precisava de ter perguntado, ele levantou os braços mesmo antes de eu fazer o movimento. Ajeitei a almofada atrás da minha cabeça e deixei as pernas repousadas no colo dele. Por muito que me custasse a admitir, partilhávamos o conforto de uma familiaridade admirável.

- O que é que eu perdi?
- Ah, ela descobriu finalmente que ele anda a fazer diálise às escondidas e o Richard declarou-se à Alice.
- Quem?
- A pediatra. Deixa-me só acabar de ver porque está quase no fim.

Sorri e espreguicei-me. Fechei os olhos com um sorriso nos lábios e esperei que o meu cérebro fosse bom o suficiente para guardar aquela sensação de puro contentamento.

- Bem, nem acredito que acabou quando ela estava a chegar!

Abri os olhos de repente com medo que ele estivesse a falar comigo, mas não, estava ainda a olhar para o genérico que já tinha começado a passar.

- Então e agora? Queres ver um filme?
- Acabaste com os pistachos?
- Bem, deixei os que representam um desafio...
- Que filmes tens?
- Aquelas prateleiras todas. Podes escolher, eu confio no teu bom gosto.
- Não me apetece levantar.
- Zapping? - Ele encolheu os ombros. - Depois da descoberta de mais do que 4 canais num cabo, já metiam um botão para passar de canal em canal automaticamente a cada 5 segundos...
- Tu és a pessoa mais preguiçosa que eu conheço.
- Fica sabendo que me esforço muito para ser assim. Não é fácil!

Ele riu-se e abanou a cabeça. Se eu pudesse ouvir os pensamentos dele, seriam qualquer coisa como "tu não existes!".

- Então o que tens feito? Desde a semana passada?...
- Trabalhar.
- Podes ser mais específico mas num vocabulário que eu entenda?
- Para ser sincero, continuamos a fazer o mesmo da semana passada que tu não entendeste. Parece que aquela porcaria nunca mais está pronta, há sempre qualquer coisinha que é preciso acrescentar! E amanhã tenho que voltar lá.
- Amanhã é sábado?
- Eu sei.
- Tu é que sabes, o dia de descanso é teu.
- E tu não fazes nada, não é?
- Eu esforço-me por isso. Especialmente por não pensar em trabalho ao fim-de-semana. Tenho direito a dois dias de descanso por semana e ai se não mos deixam aproveitar!!
- Não sei como consegues.
- O mesmo para ti, mas prefiro estar no meu lugar... claro!

Ele riu-se e virou-se mais para mim enquanto me fazia umas mini-massagens nas pernas. Eu continuava encantada com a quantidade de canais que não me interessavam ver. Deixei num canal qualquer daqueles tipo o Discovery ou Odisseia e concentrei-me nele. Devia ter comprado mais pistachos.

- Então como vai a namorada?
- Não vai.
- Ah, não sabia. Quando é que isso aconteceu?
- Ela ainda não sabe.
- Aaah... parece-me simpático da tua parte.
- Porque é que queres saber?
- Só fazer conversa. Sinceramente, não me interessa muito. Tu evitavas juntar-nos de qualquer modo.
- Isso não é verdade.
- Tu é que sabes! - E pisquei-lhe o olho.
- Eu devia ir para casa porque amanhã acordo cedo, aliás, eu nem devia ter parado aqui.
- Eu não te convidei...
- Eu sei, se esperasse que me convidasses nunca te via.
- Estás a ver como sabes? É mais giro apareceres sem aviso!

Deitei-lhe a língua de fora e ele inclinou-se para beijar-me. O beijo estava quase perfeito com ele inclinado sobre mim com muito cuidado para evitar que as minhas pernas caíssem para a frente. Mas a minha língua deu o alarme.

- O que é que estiveste a comer?!
- Ah... ups, comi um chocolate com nozes ou avelãs ou o que é aquilo!...
- E beijaste-me mesmo assim? Tu sabes que eu não gosto dessas cenas! Agora tenho que ir beber qualquer coisa para tirar este sabor... Blherc!
- Desculpa? - E riu-se divertido. Ele tinha feito de propósito.
- Vou à cozinha. Queres alguma coisa?

Em vez de responder, seguiu-me. Eu fui direita ao pão para fazer torradas e ele ficou a inspeccionar as bebidas no frigorífico.

- Sabes do que me estava a lembrar por causa de seres tão esquisita?
- Eu não sou esquisita, só não gosto de nozes e avelãs, amendoins e essas coisas no chocolate! O chocolate é bom por ser chocolate... não é por ter um monte de outras coisas para poupar no chocolate!!
- Continuando o que estava a dizer, o gelado Magnum!
- Não entendi?
- Eu comprava sempre o Magnum Classic porque tu não gostavas dos outros.
- Não sabia que fazias isso por mim, pensava que gostavas.
- E gosto, mas comprava por causa de ti.
- Estás desculpado pelo que me fizeste há pouco. E quanto ao gelado, já vai com uns anos de atraso, mas obrigada.
- De nada. Tu sempre beijaste bem!

Fiz-lhe outra careta e desviei a atenção para a torrada. Ele voltou para a sala com duas bebidas.

- Olha, desculpa se atrapalhei alguma coisa com a tua namorada.
- Ex... Não te preocupes, ela nunca soube.
- Eu sei. Quer dizer, eu não lhe contei. Mas não te sentiste estranho quando estavas comigo? Eu sei que não fizemos nada de especial, mas há sempre aquela tensão esquisita entre os dois.
- Acho que das primeiras vezes que me apeteceu abraçar-te senti que não estava a fazer o que era certo. Depois não sei... deixei de sentir-me culpado.

Desisti de estar de pé e voltei a sentar-me ao lado dele. Desta vez deixei os pés no chão.

- Olha o que eu encontrei!
- After8?! Onde encontraste isso?
- Estava no teu frigorífico.
- Aah, e não pediste autorização antes de tirar? Sabes que isso é sagrado cá em casa!
- Pensava que não gostavas de chocolate com outras coisas misturadas para poupar no chocolate?...
- Isso é roubo seguido de uma espécie de plágio verbal!...

Ele olhou para mim com um ar divertido enquanto tirava o chocolate e o metia na boca, muito devagar. Um devagar teatral, mesmo. Começou a saboreá-lo com ar trocista e disparou:

- Ah, esqueci-me de dizer. Era o último chocolate que estava dentro da caixa!
- O quê??!
- Agora não vais parar o beijo a meio, pois não?

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