Pousou a nota no lençol e não resistiu a afundar a cabeça na almofada "dele", tanto para abafar a gargalhada que ia sair como para sentir o cheiro dele. Porque é que ele tinha que ser tão encantadoramente parvo?... E irresistível?... Lá conseguiu recompor alguma da dignidade, agarrou no telemóvel e ligou-lhe.
- Sim? - A voz dele estava a fazer eco.
- Não acabou? Mas afinal quem é que manda aqui?!
- Quem veste boxers é quem manda!
- O som está esquisito, estou a ouvir tudo em duplicado?...
- Se calhar é porque estou na tua cozinha?
- Estás cá em casa?!
- Sim, e tenho os boxers vestidos! Podes vir cá confirmar!
- Porque é que ainda cá estás?
- Deixei-me dormir e era tarde demais para ir trabalhar. E tu és adorável enquanto dormes! Foi a primeira noite que passámos juntos assim! É fabuloso ver-te dormir...
- Hoje é dia de semana?!
- Oui, quinta-feira ma chérie!
- Olha lá, e porque é que estamos a falar ao telefone?
- Porque é de mau tom desligar o telefone na cara das pessoas? Além disso, tu é que estás a pagar! Ah, e por falar em pagamento, partiste mesmo o candeeiro! Mas eu já limpei os vidros que estavam no chão e...
Ficou a olhar para o telefone que emitia um som intermitente. Levantou os olhos e esperou que ela entrasse na cozinha, quando ela chegou não evitou um sorriso.
- Mas o que é que ainda estás cá a fazer?
- Não são bem os "bons dias" que eu imaginei!
- Porque é que deixaste uma nota se não ias embora?!
- Eu ia sair. Estava a pensar ir lá abaixo comprar pão e preparar o pequeno-almoço para os dois... - ela acalmou-se subitamente.
- Até que era boa ideia... Bem, há pão velho. Queres torradas?
- Isso quer dizer que não vou ser expulso em trajes menores? Uma torrada, se faz favor.
- Por agora não. Mas continuo a achar que para ires ao pão já devias estar vestido...
- Sim, mas eu ia à casa-de-banho preparar-me e depois vi os cacos do candeeiro, resolvi limpá-los primeiro.
- E aproveitaste para falar ao telefone com a Ana.
- Como sabes?
- O teu telefone está ligado e ontem desligaste-o.
- Às vezes não achas que serias mais feliz se fosses mais distraída?
- Qual foi a mentira desta vez? - Perguntou enquanto metia o pão na torradeira.
- Nenhuma! Desatou a chorar, a dizer que não me merecia... ontem encontrou o ex dela e passou a noite com ele. Que ele sempre foi o amor da vida dela e que vai voltar para ele, mas que eu sou um tipo bestial e que tem muita pena que isto acabe assim e blá blá... - Ela rompeu numa gargalhada.
- Estás a gozar certo?! Não te merecia?! - E ria-se com vontade.
- Pois, é surreal eu sei. Também não é preciso rires-te dessa maneira.
- Também te estás a rir!
- Estás a fazer-me rir! Mas pronto, torna as coisas mais fáceis para nós.
- Quais coisas? Nós acabámos, ok?... Preferes manteiga só de um lado, não é?
- Achas mesmo que acabámos? Estamos os dois quase despidos na tua cozinha. Já agora, ficas linda assim... - Não evitou uma ronda com os olhos e retomou. - E estás a preparar-me o pequeno-almoço depois de uma noite sensacional! Ainda por cima, estás a olhar para mim como se me fosses encostar ao electrodoméstico mais próximo...
- Eu estou de costas para ti. Acho que isso és tu a pensar alto. - Ele chegou-se mais perto e encostou o queixo ao ombro direito dela.
- Lembras-te de nós nesta bancada? Tem a altura ideal para...
- Eh, pára! Não quero ouvir mais nada que envolva as minhas hormonas histéricas, ok?
- Elas hoje estão de greve?
- Hoje e já deviam estar há mais tempo! Não sei como deixei arrastar tanto isto.
- Oh, não comeces com esses disparates de novo. - E abraçou a cintura dela. - Nós somos feitos um para o outro, não há como negar! Onde quer que estejamos, sentimo-nos inevitavelmente atraídos. Para quê lutar contra isso?
- Estás de luto pelo fim do teu namoro? - Ela voltou-se para ele e esbracejou com a faca da manteiga. - Que raio de conversa fatalista é essa?... - Ele tentou beijá-la, mas ela foi mais rápida e meteu-lhe uma torrada inteira na boca.
- Então?... - Tirou o que pôde da torrada da faringe e tossiu ligeiramente. - Para que foi isso?! - Começou a saborear o que restava da torrada. - Ah, está óptima! Obrigado.
- Não tem de quê! Agora fazia o favor de se afastar para eu conseguir chegar ao lava-louça?
- Faça o favor... - abriu caminho com o braço - ... amor.
Ela corou e vacilou por momentos, mas lá acertou o passo em direcção ao lava-louça.
- Ora, já são quase 11 da manhã, se calhar ainda consigo ir trabalhar de tarde.
- Nem penses! Ou achas que eu não vi como reagiste agora? Nós vamos ficar aqui os dois a falar sobre isto! Além disso, já perdeste o dia de qualquer modo.
- Estás com medo de ficar sozinho na tua casa?
- Oh, sabes que não tem nada a ver. Além disso, tenho sempre lá a minha mãe.
- Viva a independência, hem?
- Ouve-me, eu mal preguei olho esta noite e queria mesmo acordar-te com o pequeno-almoço, fazer-te uma surpresa!
- O colchão é assim tão mau? - Ele revirou os olhos e suspirou.
- Vou ignorar isso. Não dormi porque não queria perder nada desta noite. Fiquei a ver-te enquanto dormias. A suavidade do teu rosto, a tua serenidade, as curvas do teu peito, a respiração pausada... quase inaudível, a paz que transpiravas. Senti uma satisfação tão grande por estar a abraçar-te e a aquecer-te, senti-te como se fosses mesmo minha!
Ela abriu a boca, mas decidiu que o melhor era comer a torrada e ficar calada.
- Adoro quando ficas embaraçada como estás agora. Adoro quando te ris com vontade das tuas piadas más e até quando estás irritada comigo! Adoro o modo inimitável como me beijas, como adormeceste com a cabeça no meu peito, como sinto que me desejas. Eu sei que fiz imensos disparates, mas foram sempre por ti, de uma forma ou de outra. Acabaste por definir parte da minha vida... E de todos os meus amigos, ninguém me conhece como tu. Eu até me sinto mais eu quando estou contigo, sinto-me livre para fazer e dizer os disparates todos que me passam pela cabeça. Mas tu dás-me sempre a entender que não precisas de mim... E eu preciso de sentir-te e ouvir-te dizer que sou importante para ti, que me queres...
- Eu... - meteu o resto da torrada na boca, engoliu tudo de uma vez e ia jurar que que a torrada tinha ficado entalada a meio do caminho. - Eu gosto de pensar que não preciso de ti. Aliás, eu preciso de pensar isso. - Deu umas palmadinhas no peito e tossicou. - Foi horrível ficar sem ti, porque é que me deixaste?... Aprendi a viver sem ti e a não pensar no que poderia ter sido.
- Eu sei... Eu tenho medo de tentar ficar contigo e perder-te. É bem mais fácil ver-te assim aos soluços, nunca te perco porque não chego verdadeiramente a ter-te. Mas esta noite foi diferente, eu era teu e tu estavas lá só para mim, foi perfeito! Quero-te comigo... não vou prender-te, já te conheço. Quero que a tua vida seja a melhor possível, quero muito que sejas feliz e sou o primeiro a encorajar-te a voar para longe se mo pedires. Mas não posso deixar de pensar no que seria ter-te para mim... Beijar-te quando quero, e quando tu queres claro, acordar com o teu cheiro no meu corpo, com o teu sorriso, abraçar-te por trás enquanto fazes torradas, tomar banho contigo, rir-me e discutir contigo... fazer-te o almoço?
- Almoço? Hoje?! - Ele pegou-lhe nas mãos e ela parou de respirar.
- Tu conheces-me bem demais, sabes como eu sou. Isto pode correr mal! Não te posso prometer muito mais, mas vamos tentar? Eu quero tentar!... E acredita que nunca mais vou dizer isto a ninguém com esta sinceridade. Não quero deixar-te hoje e carregar o peso de saber de que és tu, sempre foste. Somos perfeitos quando estamos juntos. Não posso ir embora sem perguntar: queres ficar comigo?...
- Acho que vou estragar o momento...
- Então... Acabou mesmo? - E esboçou um ligeiro esgar de dor.
- O que dizias há pouco sobre aquela bancada? - E piscou-lhe o olho enquanto o puxava para ela. - Náaa... começou!!