sábado, outubro 31, 2009

A inexistência do Heitor

Disseram-me uma vez que há dois tipos de pessoas: as que vivem a vida de fora para dentro e as que vivem de dentro para fora. Eu sou claramente uma das que faz parte do segundo tipo. Disseram-me que é por isso que não me recordo de muitas coisas e o porquê de não conseguir encaixar as memórias que tenho numa linha de tempo ordenada. Não estou realmente em contacto com o mundo exterior, dou por mim a interagir com algumas pessoas, mas a maior parte das vezes estou a interagir comigo e a descrever o que se passa lá fora a mim própria. Reparo em pequenos pormenores e a rio-me silenciosamente, como se estivesse numa festa privada. E desligo-me com muita facilidade do que se passa. Aliás, as pessoas costumam confundir isso com paciência. Eu não sou paciente, eu fico absorvida em conversas comigo própria e acabo por esquecer-me que estava à espera de alguma coisa. As pessoas também dizem que eu sou difícil de ler, mas eu não compreendo porquê. Parece-me tudo tão óbvio...

- E dá por si a falar sozinha em casa?
- A falar sozinha, como assim?
- A ter discussões consigo própria.
- Não, eu não dialogo exactamente comigo, simplesmente é como se tivesse um narrador dentro da minha cabeça.
- Esse narrador não tem nome? Um Heitor, talvez?
- Claro que não! Eu sei perfeitamente que estou a pensar dentro da minha cabeça. Não oiço vozes nem tenho discussões com alguém imaginário. Está a tentar dizer-me que eu tenho um distúrbio de personalidade?!
- Claro que não. Estava só a indagar por curiosidade profissional. Afinal, quem é que nunca deu por si a falar sozinho num canto da cozinha?... - E riu-se.
- Eu nunca dei por mim a falar alto comigo própria.
- Nunca, nunca?
- Não.
- Ora, eu até chamo João ao meu outro "eu".
- Tem uma pessoa imaginária chamada João com quem conversa? - Levantei o sobrolho.
- Sim, ora isso não faz mal nenhum! Aclara-me as ideias e todas as crianças têm um.
- Portanto, como o senhor é psicólogo pode ter essas coisas e se fosse eu, encaixaria-me num quadro de esquizofrenia?
- Eu nunca disse isso! Ora esqueçamos o João e concentremo-nos no Heitor.
- Quem é o Heitor?
- O seu outro "eu".
- O meu outro eu não existe! Mas mesmo que existisse, acho que seria do mesmo sexo que eu, uma Teresa talvez?...
- Pronto, quantas vezes fala com a Teresa por dia?
- Eu já disse que não falo com ninguém que não exista!!!
- Não se exalte. Não está a esconder-me nada, pois não?
- Não. Sabe, eu nem tenho os psicólogos muito em conta.
- E eu ajudei-a a melhorar a sua opinião sobre nossa classe profissional?
- Honestamente, nem por isso.
- Isso é a sua opinião ou a do Heitor?...
- Olhe, sabe, acho que já acabou o meu tempo e vou indo!
- Já? Mas olhe lá que ainda faltam cinco minutos e depois os clientes queixam-se que pagam 1h e ninguém os ouve...
- Deixe lá, eu pelos vistos tenho a Teresa e o Heitor em dias alternados a ouvirem-me!...
- Ah, portanto deixa de negar a existência do seu alter ego! Isto é um passo importante: reconhecer que tem um problema.
- Pois... que bom para mim, hem? Uma óptima tarde sim?!
- Marque com a Susana para voltar cá para a semana!
- Ah claro, claro. Não se preocupe...
- Olhe... e já agora, gostava de jantar comigo um dia destes?