sexta-feira, abril 28, 2006

Ao longe

Ela olha para ele de cima a baixo e descobre que tudo o que mudou nele não muda nada, é ele na mesma. A mesma pele agora um pouco mais queimada, a barba mal cortada que arranha ligeiramente, as mãos sujas da terra que lhe cobre a roupa e os olhos tristes. Os olhos é que ela não reconhece, já não são dele.. através deles ela sente a alma a gritar de resignação.

Eu estou quieta a observá-los, a sentir a respiração contida e os olhares de redescoberta, de medo. Ela esboça o primeiro sorriso e ele encarreta uma conversa banal. Quebram o gelo, finalmente. Conforme ele vai andado, ela segue-lhe os passos com o mesmo sorriso feito que tinha há pouco.. nunca se colocam a par, mas falam e, às vezes, até riem. Ela observa o que poderia ser ela ao conhecer no que ele se tornou e a vida que abraçou. O medo desvanece por completo e dá lugar a um novelo de pensamentos entrelaçados. Tanto temor para quê? Tanto nervoso miudinho, tanto esfregar de mãos e respiração cortada sem querer, para quê? O tempo é demasiado poderoso. Ela vê o tempo a passar nos olhos dele, cada grão de areia que cai no fundo da ampulheta e ela sente-se tão feliz! Feliz porque aquele não é o futuro dela. Tudo o que ela passou, as novidades, as mudanças, as noites em claro, as lágrimas teimosas, a ansiedade, a confusão, o medo de não voltar.. E para quê? Ali estava ela, exactamente onde queria estar. Curiosamente, naquele presente ele não tinha qualquer papel senão na cabeça dela, nem um mísero figurante era! Continua atrás dele mas o sorriso que agora leva estampado na cara é verdadeiro, o brilho nos olhos dela contrasta tanto com o baço dos dele, que qualquer pessoa poderia ver a necessidade que ele tem de o sorver nos dela.

"Temos que repetir isto mais vezes"
Ela acena que sim com a cabeça mas tanto lhe faz. O medo desvaneceu, afinal não era nada. A quantidade de coisas com que ela se preocupa antes de acontecerem é assustadora, mas ela está a aprender que só se deve preocupar com o que acontece, a vida prova-lhe isso a cada momento. Eu vejo-a a recuperar o sorriso alegre, a ser senhora de si e da vida que leva, especialmente da felicidade que sente por ter chegado até ali, ou melhor, aqui. Sorrio também e abandono a minha postura petrificada. Ela despede-se dele com um aceno, enquanto ele espera um abraço. Não obstante, pega-lhe na mão para a ajudar a entrar no carro. Ele fica parado, de pé, a dizer adeus enquanto ainda sente o cheiro dela no ar que o envolve. E se era ela o que ele realmente queria? Mesmo depois deste tempo todo? Sabia a dificuldade que tinha sentido em pegar-lhe na mão e tinha reparado na falta de atrapalhação dela. Olhos tão vivos que poderiam ser agora os dele... Bem, não interessa pensar nisso porque o presente dele é a terra que o cobre de cima a baixo. Vejo-o voltar para casa a massajar a mão com que tocou nela, acender a televisão e a mergulhar no sofá. Eu sorrio da liberdade recentemente descoberta.. e de não ter qualquer sensação na minha mão.

terça-feira, abril 04, 2006

Manhã de Natal

Olho para ti de uma maneira que espero que mais ninguém olhe. Não é que tenha sentimentos demasiado egoístas, mas tenho a necessidade de pensar que mais ninguém vê aquilo que eu consigo ver. Quero ser a única a ter este ponto de vista, como uma fotografia premiada ou uma perspectiva especial que mostra toda a beleza escondida de um local. Tenho aquele olhar com que contemplava as prendas que desembrulhava na manhã de Natal, quando finalmente encontrava a que eu desejava mais. Eu não sentia que havia mais uma centena de miúdas com a mesma boneca, simplesmente aquela era a minha boneca e eu era capaz de olhar para ela como mais ninguém era. E acredito que há muita gente que percebe perfeitamente o que eu sinto e que partilha do mesmo, mas não quero saber dessa verdade. Esta visão é minha e tudo o que eu sei ou sinto cá dentro não é para descrever ou confessar a mais ninguém.

Quanto mais olho para ti, mais descubro que há pormenores que me estão sempre a escapar. Sei as expressões e consigo repeti-las só para mim dependendo do tom com que falas, mas sei que nunca vou saber tudo e isso é bom, reconfortante. Continuo curiosa a tentar descobrir tudo o que não sei. Ainda me surpreendo quando estou a olhar com menos atenção e, de repente, aparece a minha imagem que é a tua na verdade. É quase como se estivesse a olhar para outra pessoa que quero conhecer minuciosamente, cada mudança no tom de pele, as rugas no canto dos olhos e dos lábios, o sítio onde apetece mais tocar no teu cabelo, o espaço por detrás da clavícula que me guia até ao teu pescoço. Nada é meu, mas eu sinto que só eu é que sei daqueles pormenores escondidos nestes locais minúsculos. Não vale a pena perguntar o que estou a pensar porque eu não sei responder ao certo. Estou a elaborar uma biblioteca privada sobre ti dentro da minha cabeça, tentar que não me escape nada, não quero esquecer nada... É isto que me faz fundir em ti.

sábado, abril 01, 2006

O post dos porquês

Hoje sinto-me com 3 anos (só hoje, mais coisa menos coisa) e apetece-me perguntar o porquê de tudo. Resolvi então recorrer à minha idade "quase-adulta" e em vez de chatear alguém em particular, vou chatear toda a gente que cair na asneira de ler isto! Democrático, não é? Ora cá vão algumas coisas que me afligem hoje, amanhã logo se vê.

Para começar, vou gastar já o meu melhor cartucho e esperar que alguém me tente matar ou, na melhor das hipóteses, deixar de falar após ler o que se segue. Ora cá vai disto:

Porque é que há gente com dois nomes próprios que não soam bem nem ao menino Jesus?! Há por aí nomes que conseguem superar os da pimbalhada e que não soam bem nem ao fim de muitos anos de convívio (com prática lá se consegue treinar o tímpano para não reagir.. demasiado). A mania de meter dois nomes que não têm nada a ver um com o outro ultrapassa-me. Parece que alguém não conseguiu decidir entre dois nomes e, em vez de ter dois filhos, sacrificou logo o primeiro rebento com medo que o segundo se recusasse a aparecer. Será que custava muito registar as criancinhas com um nome provisório e depois esperar que elas atingissem os 18 anos para decidirem? Meter o nome de Maria a rapazes só funciona se lhes sair um brasão de armas na lotaria; Tito era o nome do cão da vizinha do rés-do-chão da minha avó; nomes quase-portugueses como Priscilla são impronunciáveis; Cristiano Ronaldo nunca vai soar bem e Pascal André também não!!

Porque é que os bébés são adoráveis? Sinceramente, os bébés são vermelhos ou roxos (depende do nível de obstrução do ranho à passagem do oxigénio), feios, babam-se muito, berram ainda mais, vivem com os próprios dejectos colados ao corpo e não fazem absolutamente nada de útil! Podiam sei lá, fazer uns números de circo ou de stand-up para entreter a mãe que anda há dois meses sem dormir e evitar uma depressão pós-parto? Fazer bolhas de saliva não é considerado entretenimento.

Porque é que eu não sou uma portuguesa a sério se não gostar de bacalhau?
Isto vem na constituição portuguesa?! Bacalhau cozido é horrível e quem quer que se tenha lembrado disto para a ceia de Natal só não vai parar ao inferno porque é Natal e há muitas sobremesas para fazer esquecer a fome. Porque é que não sou miúda se não gostar de passar horas intermináveis a comprar roupa? E mais ainda: porque é que o café (que é amargo) é suposto ser bom depois de levar com 1kg de açúcar em cima!?

Porque é que os pastéis de nata dão tanto trabalho a fazer? Raio dos bolos que são tão bons e aquela massa folhada só serve para quem não tem mais nada que fazer.. (E desculpem lá, mas a massa folhada congelada nem se compara!)

Porque é que a TVI é o canal mais visto em Portugal?.. Isto tem a ver com o facto de eu não gostar de bacalhau e de café e não entender o gosto típico do português?

Porque é que as mulheres não podem dar missa?
Sermões todas as mães dão.. Além de machismo, isto tem mais alguma coisa associada? Na Inglaterra é permitido e não me parece que as pessoas tenham deixado de acreditar na sua religião por causa disso. Isto tem tanta lógica como proibir as mulheres de entrar para a escola primária. (Eu sei que há homens a favor desta última, mas para esses: ainda é a vossa mãe que vos compra roupa e a mete numa cadeirinha no dia anterior para vocês a vestirem no dia seguinte, não é?..)