domingo, novembro 30, 2008

Uma Quase Hipotermia

– Porque é que não és como as outras miúdas?
– Não sou?
– Epá, tu sabes... elas preocupam-se? Telefonam e essas coisas?
– Mas eu preocupo-me... acho eu.
– Se te preocupas, não dás a entender.
– Não me apetece chatear-te dia sim dia não. É aborrecido.
– Também não estava a dizer isso.
– Então?
– Mas tu não percebes nada do que eu estou para aqui a dizer?!

Inspirei fundo e acabei por encolher os ombros. Esperei que ele dissesse qualquer coisa para acabar com o silêncio, mas não, ele estava definitivamente à espera que eu continuasse a conversa. Mas ia dizer o quê? O silêncio trouxe um sorriso de constrangimento. Senti que tinha feito uma asneira, asneira grande, mas continuava sem ideia do que se passava.

– Eu não compreendo. A sério. Não gostaste de estar comigo?
– Claro que gostei e gosto! Eu gosto de estar contigo.
– Então não compreendo onde está o problema.
– Tu não te importas.
– Com o quê?
– Estás a tirar-me do sério! E ainda por cima sinto-me uma gaja se disser que tu não me compreendes!!
– Apesar de parecer óbvio que não compreendo?
– Bolas! Esse ar de despreocupação numa conversa destas até dói, sabes?
– O que preferes que eu diga?
– Hum... - ele inspirou fundo, demasiado fundo – Tu devias estar constrangida, preocupada, qualquer coisa que te saísse naturalmente! Mas nada, estás aí com ar de quem não faz mesmo ideia do que se passa e isso irrita-me solenemente porque estás a ser sincera! Não tens medo que eu me vá embora a qualquer momento? Que isto tudo acabe? Que eu emigre para a Antárctida?
– Se for isso o que tu queres... não estou a ver porque haveria de interferir?
– Tu dás-me cabo dos nervos!!

Fitei-o demoradamente sem entender porque é que ele tinha levantado tanto o tom de voz. E ainda fiquei mais espantada quando ele se levantou e foi embora, bateu com a porta e tudo. Sobressaltei-me com a violência com que a porta foi fechada e fiquei paralisada. Não podia acreditar que ele se tinha ido embora assim. Entendia que ele não se sentia compreendido, mas não entendia aquela excitação e nervosismo. Quando estávamos juntos, estávamos juntos. Quando não estávamos, estávamos separados. Encontrávamo-nos quando nos apetecia e sem qualquer tipo de planos. Era uma relação que na realidade era uma não-relação, mas eu estava feliz com ela, tal como era. Nem teria coragem para pedir mais nada, não queria estragar o que existia e nem sabia se era capaz de aguentar mais. Olhei à volta e reparei que a roupa dele estava ainda espalhada à minha volta. Não pude evitar um sorriso quando a campainha tocou. Abri a porta e lá estava ele de boxers e meias à minha frente. Tentei falar primeiro, mas ele não me deixou:

- Tu nem me digas nada!!
- Só ia dizer que aposto que ias até casa em boxers se não estivéssemos em Dezembro. - E dei-lhe o meu melhor sorriso.
- Não imaginas o que me custou voltar para trás.
- Por acaso até imagino! Eu conheço-te um bocadinho... vá, um bocadinho assim muito pequenino!!

Ele deixou que me aproximasse e que o abraçasse.

- Estás tão frio!!
- É tudo o que tens para dizer-me? - E afastou-me. - O teu prédio é tão bom que a porta da rua não fecha e ia morrendo de frio no corredor.
- Não quero que vás embora assim.
- Não te preocupes, eu estou a vestir-me e só saio quando o casaco estiver abotoado até eu não conseguir respirar.
- Não era isso que eu queria dizer. Sim, eu sei que tu entendeste. Não te vás embora, fica cá comigo. É feriado, eu tenho aquecimento em casa e é Dezembro... ia convidar-te para fazermos a árvore de Natal? A sério, tinha planeado perguntar-te isso. Não a fiz antes porque pensei que talvez gostasses de participar?... Ou não...
- Tu estás mais embaraçada por perguntar-me isso do que sobre tudo o que te disse há pouco. Tu não sentes mesmo que me fazes sentir como se eu não existisse para ti?
- Tu existes, claro. Eu adoro estar contigo! Só não expresso isso com telefonemas, mails, cartas, sms, flores, sei lá! Eu penso em ti, mas não vejo a necessidade de dizer-te quando isso acontece. Eu acredito que penses em mim, não preciso que mo tenhas que dizer. Não me faz diferença.
- A mim faz-me.
- Desculpa. Até gostava de dizer que ia tentar mudar, mas não ia conseguir. A dada altura ia sentir-me muito estúpida por estar a pensar se devia dizer-te alguma coisa porque já passaram dois dias, se ficas chateado se não telefonar todas as noites... Prefiro só dizer quando me apetece, mesmo que não me apeteça muitas vezes. É qualquer coisa que não me entra no sistema. - E fiquei a admirar o chão, envergonhada das minhas escassas qualidades sociais.
- Tu és cá uma carga de problemas!... Tanto acho que te chateias comigo se eu estiver com outra, como acho que não te fazia diferença nenhuma. Tanto me apetece abraçar-te a noite toda como ir embora e nunca mais olhar para ti. Porque é que a ti parece tudo tão lógico e fácil e a mim é tão irracionalmente difícil??
- Não sei - encolhi os ombros - eu não sinto que é difícil. Sinto que é natural? Sinto que temos um ritmo próprio que não me apetece contrariar, saboreio as ondas quando elas vêm mas não fico chateada quando elas não vêm.
- Desconfio que não apanhei quase nada do que quiseste dizer.
- Tiras a árvore de Natal do sótão, se faz favor?
- A árvore?!... Mas quem é que te disse que eu ia ajudar-te?
- Mesmo que não ajudes depois, não consigo tirá-la sozinha.
- Estás a fazer-me sentir tão descartável de novo...
- Mas eu perguntei-te se querias ajudar-me? Disse-te que queria enfeitá-la contigo? Não entendo porque é que tornas tudo tão complicado.
- Fazes parecer tudo preto no branco. Agora mesmo até tive a sensação que tinhas razão. Não te preocupes, já passou.
- Ficas comigo então?
- O mais triste de tudo é que não consigo dizer que não. Não quando estou aqui em cima do escadote a olhar para ti de meias e com uma camisa demasiado larga para ser tua. Porque é que me fazes sentir tão impotente? Não consigo prever, planear ou alterar nada do que se passa entre nós.
- E porque é que isso tem que ser mau?
- Dá segurança, sabes? Bem, é Natal... suponho que pode ser que não seja assim tão mau.
- Podes dar-me uma lista de tudo o que queres que eu seja? Eu faço uma do que quero que tu sejas.
- Tens aspirações em relação a mim? Que choque!!
- Ha ha... traz lá a árvore. Claro que tenho, estou a pedir-te para enfeitares a minha árvore de Natal comigo, sabes o que isso significa?
- Sei, mas só porque tu és maluquinha pelo Natal. Quase que me fazes esquecer todas as arrelias que me trazes. Mas não esqueço!
- Sem problema... até podes tentar explicar-me o que queres de mim até deixares de ter fé. Eu sou toda ouvidos e mais se quiseres.
- Mas tu nunca desembaraças as luzes de Natal?!
- Bem, eu tento... mas depois desisto e compro sempre uma caixa nova...
- Vai ser um dia longo, vai vai...
- Vês, tem tudo lógica: estou contente por ter arrumado isso à parva no ano passado!!
- Hum?!
- Assim ficas mais tempo comigo.
- Ah, foi premeditado. És terrível...
- Eu sei!!

segunda-feira, novembro 03, 2008

Chuva

Estava um frio de rachar... mas fizeste-me sair de casa. A vontade de estar contigo era tão grande que nem dei pelo frio cortante quando atravessei a rua. Estava quase a chover e o negro cerrado da noite era apenas cortado por um nevoeiro suspeito. Confesso que senti-me tentada a voltar para trás e refugiar-me debaixo dos meus lençóis quentinhos. Mas tu apareceste bem à minha frente e sorriste, eu não tive a coragem de não retribuir. E que sorriso!... Chegaste de mansinho, aproximaste-te o suficiente e deste-me um beijo lento, quase que conseguia sentir os teus lábios a fazerem uma pressão crescente nos meus. Sorri apenas para ti e aqueceste-me a alma. Abraçaste-me com força, como uma velha conhecida, e deixei a minha cabeça encostada ao teu peito enquanto protegia os meus braços no calor entre nós. Senti-me protegida e amada. Que sensação quente e improvável numa noite gélida...

Senti algumas gotas de chuva no nariz e o encanto quebrou-se momentaneamente. Levantei a cabeça e olhei-te, sorrimos os dois, demos as mãos e corremos debaixo da chuva até um porto seguro. Apesar de saber que é irreal, consigo ver-nos a atravessar as ruas, a correr de mão dada enquanto a chuva cai à nossa volta. Vejo o nevoeiro cinzento iluminado em focos de laranja artificial dos candeeiros. Esqueci tudo e todos os cuidados que me ensinaram. A minha pele molhada deixava que a as tuas mãos deslizassem com mais facilidade pela minha cara, pescoço e ombros. Cheiravas lindamente e apetecia-me nunca parar de beijar-te. Sentia-me livre para fazer o que eu quisesse e não conseguia sequer conceber a ideia que podia perder-te. O meu corpo esmorecia se te sentisse longe. Desejava-te tanto que não deixava que te separasses de mim mais do que a distância dos meus lábios na tua pele.

Sempre que começa a chover em noites enevoadas e passeio por entre os candeeiros, a tua imagem fica a rodar na minha mente e aquece-me quando revivo aquelas sensações. Às vezes sonho que naquela noite te tinha dito o que significavas para mim, e que nunca quis que déssemos aquele beijo de despedida enquanto o sol nascia e as nuvens já tinham partido.