domingo, outubro 28, 2007

Ninguém me vê

Eu continuo o mesmo desde que o sr. Silvino me mandou construir, mas ninguém me vê assim. Lembro-me de cada pormenor do meu crescimento que ele supervisionava com extremo cuidado. Cada curva na pedra talhada, cada azulejo pintado à mão, cada rodapé de madeira, cada vidro colorido. Lembro-me da satisfação dele ao conhecer o primeiro andar, o andar onde ele e a noiva iam morar e que era totalmente distinto dos outros. Tinha um salão enorme com umas janelas que ocupavam praticamente a parede toda, penso que as janelas eram para deixar sair o calor e luzes dos bailes semanais e encontros de alta sociedade.

Como recordo esses tempos... gente e mais gente! Todas as noites aparecia alguém, todas as noites se lia qualquer coisa ou se ouvia um piano. As pessoas que passavam na rua olhavam-me de alto a baixo e sonhavam que um dia estariam protegidas pelas minhas paredes, embaladas na minha acústica. Lembro-me do primeiro bébé que nasceu cá em casa. O bébé chorava horas a fio, mas foi mais perturbador quando cresceu! Procurava fazer buracos em todos os rodapés e tirar-me alguns azulejos, mas quem sofreu mais foi a mobília... as cadeiras então! De qualquer modo, resistíamos e alegrávamo-nos de ver o futuro de quem ia cuidar de nós e proporcionávamos-lhe as melhores memórias que conseguíamos naqueles anos de vivência conjunta. Nunca uma cadeira se partiu com uma criança em cima, nunca uma escada deixou que alguém escorregasse. Mas chegou o dia em que o sr. Silvino morreu, a mobília foi desaparecendo, o século foi passando muito depressa e a fortuna amealhada esbanjou-se ainda mais depressa. Já não sei quem é realmente o meu dono, mas sei que me dividiram a alma e que estou partido em minúsculas caixinhas alugadas com o mínimo de conforto a pessoas que não me conhecem, nem querem conhecer.

As pessoas olham para mim e não vêem nada além da cor perdida dos meus anos e do cinzento escuro que é largado pelos escapes dos carros que passam à minha porta. Não há piano de noite, não há ninguém que me olhe e queira entrar. O salão já não existe, não há música, não há calor. As minhas paredes não têm com que se alimentar e vão ficando mais fracas. Ninguém vê os lindos acabamentos em pedra, nem o facto de cada azulejo ser único. Ninguém sabe os namoriscos que escondi e os que as varandas revelaram. Fingem que não me vêem sem cor e a cair a cada minuto que passa. Se se interessam, querem demolir-me porque neste local poderia estar um hotel ou um prédio novo, mais alto e que levasse mais gente. Ninguém se lembra do que sou, ninguém me vê.

segunda-feira, outubro 08, 2007

Um terraço chamado desejo

É normal sonhar acordada, mas tenho tendência para recuar uma série de anos e parar no mesmo momento do meu passado. Nós, o terraço da minha antiga casa e a falta de luz que nos propiciava uma vista espectacular da noite estrelada (que nós não aproveitámos muito... astronomicamente falando). Sempre que me deixo afundar nesta memória, sinto os sonhos e a realidade a esbaterem-se, sinto toda a curiosidade que tinha por ti a voltar, rodear-te e a alterar a minha percepção de ti e de tudo o que nos envolvia. O ambiente destilava um suave odor a magia, pura e simplesmente por te ter comigo.

O meu subconsciente ondula em torno de ti. Sinto as emoções a voltarem como se nunca tivessem partido e sinto-me a deslizar para quem era, estremeço a cada toque mais subtil ou suspiro mais profundo. Sinto-me etérea na teia de sentimentos que me provocas. É como se estivesse presa a esta sensação sem poder fazer nada para me libertar, mas ao mesmo tempo estou livre e delicadamente suspensa no ar pelas asas invisíveis que me dás. Mas pouco antes estava triste e isso ainda me consumia vagarosamente na tua presença. Desejei que conseguisses sorver essa tristeza quando (se) finalmente me beijasses. E beijaste, não foi um atabalhoado primeiro beijo, foi um beijo comprido e a sério, cheio de vontade. O meu primeiro beijo como nos filmes. Pouco tempo depois, seguraste-me e fizeste-me subir as escadas até ao terraço sem nunca tirares os teus olhos de mim. Colocaste-me entre ti e o parapeito e aproximaste-te até o teu corpo tocar completamente no meu. Num lapso de confusão afastei a cabeça por reflexo, mas fechei os olhos de prazer quando me beijaste o pescoço. Senti os teus braços a percorrer o meu corpo todo e deixei-te fazer o que quiseste. Segurei o cabelo para te facilitar a descoberta do pescoço e costas, mas sei que apesar da entrega não fiz mais do que o indispensável, parecia uma boneca de trapos nas tuas mãos. Deixei-me ser seduzida, voou tudo. Ficámos apenas nós e eu deixei de me preocupar com o que quer que acontecesse. Deixei-te fazer tudo, achei que aquela noite era só uma noite. Lembro-me da camisa aberta com um puxão teu, da luz fraca que incidia nos nossos corpos e as marcas cor de prata que a saliva deixava para trás. Lembro-me de verdadeiramente adorar o modo como olhavas para mim, ser objecto do teu desejo era digno do meu maior sonho.

Despedi-me de ti com um beijo cheio de intenção que não sei se percebeste. Tremia de prazer ainda, não estava a pensar sequer. Despedi-me sem palavras, apesar de depois ter sonhado com mil e um fins diferentes onde acabo eventualmente por dizer algo, uma declaração, uma piada, algo inteligente, algo estúpido, algo que desse a entender que percebia o que se ia passar a seguir. Algo que marcasse a despedida do que, naquela altura, parecia ser mais loucura nocturna e muito desejo reprimido do que um marco na minha vida. Naquela ignorância de descoberta infantil, nunca pensei que aquela noite me fosse marcar para sempre.

E cá estou eu, a percorrer com a imaginação e os meus dedos tudo o que queria reviver dessa noite... continuo a querer ser o teu objecto de desejo.