- Rui, não achas que a lua está estranha hoje?
- Estranha? Como assim?
- Não sei, está assim... estranha.
Ele deitou-me um daqueles olhares como quem diz que eu já ia a um psiquiatra. Sem mais palavras, entregou-me meio quilo de favas e eu saí da loja. Já cá fora, fiquei a admirar a lua. Sentia que havia qualquer coisa diferente, mas ainda não sabia o quê. Passou a Ana e, quando dei por mim, já lhe estava a perguntar o que ela achava da lua nessa noite.
- Parece-me igual às outras noites todas, quer dizer, nas outras noites em que está lua cheia. Mas sabes o que é estranho? A Ermelinda já não se vai casar!
- A Ermelinda não se vai casar?... - Repeti para ver se percebia quem era a Ermelinda, mas a Ana não se conteve na ânsia de despejar a história toda.
- É incrível, não é? E o Rui parecia um rapaz tão certinho!
- O Rui? O da mercearia?
- Mas em que planeta é que tu vives? O Rui do talho! Achas mesmo que a Ermelinda ia ter alguma coisa com o da mercearia?
- Hum... mas...
- E não é que ele andava este tempo todo com outra? E não é uma qualquer, é a Rosa! A melhor amiga da Ermelinda! Incrível, pediu-a em casamento e pouco depois meteu-se com a Rosa que parece que não resistiu ao charme dele e teve vergonha de contar à Ermelinda o que se passava. O certo é que deixaram andar este tempo todo e só a uma semana do casamento é que ela descobriu! E da pior maneira, que pouca vergonha!
Eu sentia-me um bocado atordoada. Com algum esforço até era capaz de saber quem era o Rui do talho, mas a Ermelinda e a Rosa... quem seriam? Tentei acabar com a conversa ali.
- Então pronto, agora o Rui casa-se com a Rosa e não há mais drama.
- Rosa? Mas qual Rosa! Depois daquela confusão toda com a Ermelinda, ele acabou por por confessar que andava com várias mulheres porque não conseguia assumir que estava apaixonado pelo Paulo!
- Pelo Paulo?...
- Sim, o padrinho de casamento dele, dá para acreditar?? Afinal parece que já se sabia porque na festa da Carolina eles andaram desaparecidos durante alguns minutos e alguém foi dar com eles na casa-de-banho e...
- Eh lá! Pois bem, espero que o Paulo e o Rui sejam muito felizes mas eu tenho que ir para casa e fazer o jantar...
- Não sei, parece que o pai do Paulo disse que o deserdava se a história com o Rui fosse verdade e...
- Até logo!
Respirei fundo e caminhei depressa para longe da Ana. Continuava a achar que a lua estava estranha, mas a vida daquelas pessoas que eu não conhecia era capaz de ser mais estranha. Um pouco mais à frente estava alguém a chorar baixinho, sentado no canto de um banco... iluminado apenas pelo luar.
- Desculpe, sente-se bem? Precisa de alguma coisa?
- Oh, não me apercebi que estava alguém aqui! - Secou as lágrimas depressa.
- Está magoado? Precisa de um médico?...
- Oh, não! Muito obrigado pela preocupação. Nem sei porque estou a chorar. Não sei se é de tristeza ou se é de alegria, mas sei que é de alívio!
- Ah, sendo assim... acho que o deixo em paz – Nunca tinha visto um homem chorar.
- Oh não, desculpe-me porque nem a conheço, mas importa-se de me fazer companhia durante um bocadinho?
Olhei para as favas, sentei-me ao lado dele e suspirei de resignação. Ficámos uns minutos em silêncio, o que até nem era desconfortável. Alguns pirilampos fizeram-nos companhia, nunca tinha visto pirilampos ali, e deixei-me estar à espera que ele falasse ou me desse "ordem" para retirar. Até que por fim, ele falou. Uma voz estranhamente clara para quem tinha estado a chorar.
- Sabe, eu ia casar-me amanhã.
- Chama-se Rui? - O meu coração disparou em alarme.
- Não... chamo-me Pedro, porquê?
- É que acabaram de contar-me uma história algo inacreditável sobre um Rui e uma Ermelinda. Sinceramente, estou satisfeita que não seja o tal Rui...
- A minha ex-noiva andava a trair-me com o meu melhor amigo.
- Tenho que confessar que é a segunda versão dessa história que oiço esta noite.
- A sério?
- Sim, a tal com a Ermelinda e o Rui. Mas explique-me lá porque é que poderia estar a chorar de alegria e alívio?
- Apercebi-me que não estava apaixonado e que não conseguia ir para a frente com o casamento. Nisso, ela aparece-me lavada em lágrimas porque anda metida com o Paulo, o meu ex-melhor amigo. - Tossi ligeiramente ao ouvir o nome. - Eu sei que é estúpido, mas sinto-me traído porque ele era o meu melhor amigo e nunca me contou nada. Por outro lado, sinto-me um bocado rejeitado apesar de não querer casar com ela.
- Suponho que o nosso ego fica um bocadinho ofendido! - E pisquei-lhe o olho.
- Isso! - Ele sorriu. - E de alegria porque sinto-me estranhamente livre para viver a vida nova que acabei de construir para mim... e que me parece muito melhor do que a que estive prestes a ter!
- Mas então parece-me que tem uma história com final feliz! Quer dizer, esse tal de Paulo deve ter perdido um amigo, mas de resto ninguém perdeu muito, não é? Uma vida novinha em folha é uma coisa que não se pode oferecer a qualquer um!
- Tem razão, sabe que só me fez sorrir desde que se sentou aqui? Obrigado.
Sorri. Já há algum tempo que não sentia este calor da satisfação por fazer algo bem feito.
- Já vi que gosta de favas!
- É verdade, quase ninguém gosta, mas eu gosto. E hoje estava a apetecer-me algo fora do comum e lembrei-me das favas!
- Também gosto. A minha ex-noiva é que não gostava e eu deixei de comer. Acho que vou pôr isso como um objectivo para a minha nova vida: comer favas!
- Apesar de ser um objectivo estranho, acho que o estômago é um bom sítio para começar.
- Pergunto-me se ela está agora com o Paulo, se eles estão felizes juntos... Suponho que sim, embora com algum peso na consciência, espero.
- Claro que sim, as pessoas não são assim tão insensíveis! Também gostava de saber se o Rui e a Ermelinda de quem me falaram vão ser felizes.
- É assim tão difícil? Eu já estou feliz só de pensar em comer favas.
- Bem, o caso dele é mais complicado. Mas olhe, quer estas? Parece-me que vão fazê-lo muito mais feliz a si do que a mim!
- Oh, não posso aceitar! Já me aturou o bastante e isso é mais do que eu poderia pedir.
- Quando me sentei não sabia bem ao que vinha, mas afinal conversar consigo é muito fácil! Hoje deu-me para sentir-me diferente, desde que o sol se pôs achei que havia algo no ar.
Sorrimos um para o outro e deixámo-nos estar em silêncio até que ele falou:
- Sabe, parece-me que a lua está estranha hoje.