Cerrei os dentes com força e lutei para manter-me na terra do nunca enquanto a minha consciência puxava na outra direção. Infelizmente eu parecia estar a perder a batalha: a realidade estava a chegar com uma velocidade vertiginosa, e a minha cabeça doía tanto que eu tinha a certeza que se me mexesse ia rachar o crânio em dois. Continuei a luta interna para manter-me longe da lucidez, mas o cérebro não reconheceu a minha autoridade e a realidade veio à tona. Começou com uma pontada nos olhos e a dor que se seguiu foi tão inesperadamente forte que eu teria entrado em estado de choque se não estivesse ainda entorpecida pelo sono. Mas porque é que eu me sentia assim? Porque é que a minha cabeça doía tanto? Na verdade não me lembrava de grande coisa, mas não podia descartar aquela hipótese sempre válida: será que tinha bebido demais? Se sim, esta era a mãe das ressacas!...
Já que estava acordada, achei que o melhor era ficar quieta para não deslocar nada. No entanto, a curiosidade foi acumulando até ser mais forte do que a dor e, ainda de olhos fechados, tentei dobrar os dedos da mão direita e foi com alívio que compreendi que ainda me obedeciam. Ao mexer os dedos senti o chão frio... de cimento talvez? Este não era definitivamente o chão de madeira que me tinha custado os olhos da cara meter no quarto. Se calhar não tinha conseguido chegar ao quarto... será que estava na casa de banho? Os meus dedos não conseguiam encontrar as juntas entre os azulejos do chão, mas talvez. Resolvi fazer uma avaliação mental da minha situação: eu estava deitada de barriga para baixo e o meu braço esquerdo estava por baixo de mim, completamente adormecido. O lado esquerdo da minha cara também estava encostado ao chão e portanto toda a minha cara estava gelada, mas não tinha coragem para levantar a cabeça. Além disso, custava-me respirar fundo… será que tinha o nariz partido? Sempre era preferível a umas costelas em posições bizarras. Pouco a pouco consegui ignorar as dores que sentia e aventurei-me a abrir um olho - o que não estava contra o chão, portanto. Preparei-me mentalmente para a cegueira habitual induzida pela luz matinal ou pela lâmpada fluorescente da casa de banho, mas em boa verdade não vi nada. Ou estava cega ou com graves problemas de focagem. Ou na volta a luz estava apagada e eu conseguia ver perfeitamente. Sem coragem para mexer a cabeça, arrastei o braço direito e mexi os dedos à frente dos meus olhos. Havia ali um movimento qualquer sim. Quer dizer, não é que a minha mente fosse dizer-me outra coisa - mesmo que estivesse cega ia ser a última pessoa na Terra a reconhecer o facto. Resolvi tentar focar o chão e, ainda que sem grande sucesso, consegui notar algumas irregularidades. Seriam pedrinhas de cimento? A menos que tivesse levantado o chão sem dar conta, provavelmente não estava em casa. Hum... assim a coisa ficava mais complicada!
Voltei a concentrar-me em mim e, numa tentativa de avaliar danos, usei o único braço que me atrevia a mexer para analisar a topografia da minha cabeça. O cabelo estava lá, assim como vários inchaços e mais qualquer coisa que parecia ser sangue seco. Se a noite anterior não tivesse sido a melhor da minha vida, eu ia ficar extremamente lixada! Pouco a pouco algumas memórias vieram à tona e começaram a agrupar-se e a tomar forma: lembrei-me de estar com a Ana no carro, do laboratório, da polícia e do carro preto... O carro preto!! Consegui finalmente ar suficiente para gritar o mais alto que podia: “F*DA-SE!!!”. Ainda que a minha voz rouca tivesse saído quase num murmúrio, é incrível como uma palavrinha conseguia resumir tudo o que sentia.
O ataque de pânico tomou-a de surpresa e ela voltou a desmaiar. A poucos passos dali encontravam-se dois homens armados que ladeavam a cela e um outro mais afastado, perfeitamente imóvel, sentado num banco de cozinha. Olhava para o chão com os cotovelos apoiados nas coxas e suportava o queixo com a mão direita, o cabelo caído escondia-lhe a face. Sorriu ao ouvi-la praguejar, ela estava viva e apenas isso interessava.