Eu continuo o mesmo desde que o sr. Silvino me mandou construir, mas ninguém me vê assim. Lembro-me de cada pormenor do meu crescimento que ele supervisionava com extremo cuidado. Cada curva na pedra talhada, cada azulejo pintado à mão, cada rodapé de madeira, cada vidro colorido. Lembro-me da satisfação dele ao conhecer o primeiro andar, o andar onde ele e a noiva iam morar e que era totalmente distinto dos outros. Tinha um salão enorme com umas janelas que ocupavam praticamente a parede toda, penso que as janelas eram para deixar sair o calor e luzes dos bailes semanais e encontros de alta sociedade.
Como recordo esses tempos... gente e mais gente! Todas as noites aparecia alguém, todas as noites se lia qualquer coisa ou se ouvia um piano. As pessoas que passavam na rua olhavam-me de alto a baixo e sonhavam que um dia estariam protegidas pelas minhas paredes, embaladas na minha acústica. Lembro-me do primeiro bébé que nasceu cá em casa. O bébé chorava horas a fio, mas foi mais perturbador quando cresceu! Procurava fazer buracos em todos os rodapés e tirar-me alguns azulejos, mas quem sofreu mais foi a mobília... as cadeiras então! De qualquer modo, resistíamos e alegrávamo-nos de ver o futuro de quem ia cuidar de nós e proporcionávamos-lhe as melhores memórias que conseguíamos naqueles anos de vivência conjunta. Nunca uma cadeira se partiu com uma criança em cima, nunca uma escada deixou que alguém escorregasse. Mas chegou o dia em que o sr. Silvino morreu, a mobília foi desaparecendo, o século foi passando muito depressa e a fortuna amealhada esbanjou-se ainda mais depressa. Já não sei quem é realmente o meu dono, mas sei que me dividiram a alma e que estou partido em minúsculas caixinhas alugadas com o mínimo de conforto a pessoas que não me conhecem, nem querem conhecer.
As pessoas olham para mim e não vêem nada além da cor perdida dos meus anos e do cinzento escuro que é largado pelos escapes dos carros que passam à minha porta. Não há piano de noite, não há ninguém que me olhe e queira entrar. O salão já não existe, não há música, não há calor. As minhas paredes não têm com que se alimentar e vão ficando mais fracas. Ninguém vê os lindos acabamentos em pedra, nem o facto de cada azulejo ser único. Ninguém sabe os namoriscos que escondi e os que as varandas revelaram. Fingem que não me vêem sem cor e a cair a cada minuto que passa. Se se interessam, querem demolir-me porque neste local poderia estar um hotel ou um prédio novo, mais alto e que levasse mais gente. Ninguém se lembra do que sou, ninguém me vê.
Não fiques triste.
ResponderEliminarAlguém te viu e escreveu sobre ti.
:)
ResponderEliminar... profundamente bonito...
Mr Moon: :)
ResponderEliminarAurora: Qualquer dia acho que "obrigada" não chega como agradecimento, apesar de ser sempre grande e sincero!