quinta-feira, julho 26, 2012

Mas que as há... há!


Parte I

A Florentina acordou com uma valente dor de cabeça, e se não soubesse melhor diria que estava de ressaca. Mas ela não tinha bebido nada nessa noite, nem na anterior ou noutra qualquer. Pensando bem, a única amiga que ainda se dava ao trabalho de aturá-la era abstémia e portanto mesmo quando saíam juntas, a Florentina bebia pouco mais do que um ou dois Sumol de laranja. Sendo assim, aquela dor de cabeça só tinha uma explicação: estava uma visão do futuro a sair da sua tortuosa mente e era mais uma a fazê-la sentir completamente inútil porque ela não conseguia descodificá-las. Só há dois meses é que tinha começado a aperceber-se de que afinal não devia ignorar as coisas estranhas que sentia, e que ainda por cima era presciente - aparentemente uma qualidade rara independentemente do que o número de videntes nas feiras possa indicar. Mas ainda que não conseguisse perceber grande coisa das imagens fumadas que estavam a pulular-lhe o subconsciente, a dor de cabeça era tão forte que só podiam ser más notícias. Respirou fundo e abriu tentativamente um olho, mas a luz da janela não teve qualquer piedade e aquela amostra de coragem só piorou a dor de cabeça. A Florentina respirou fundo, fechou os olhos com força e voltou a deitar-se ao comprido com a cama. Se vinha aí uma tragédia, ela podia muito bem esperar pela hora de almoço.

Vinte minutos depois, e não ao som dos passarinhos que ela tinha programado como despertador mas sim ao som de George Michael - ‘cause I’ve got to have faith, faith, faith - a Florentina voltou a sentar-se na cama. Atendeu o telefone e nem se preocupou em ler o nome no ecrã, aquela música motivacional tinha sido escolhida pela Anabela, a sua melhor e única amiga, e também a professora de magia mais exigente do distrito e arredores.

“Bom dia! Como está a minha aluna favorita, além de atrasada?”
“Com uma dor de cabeça gigante e a desejar que a deixem dormir! E talvez a desejar também que só a acordem com uma bandeja de comida… croissants quentes de preferência.”
“Florentina, são nove horas da manhã! Mas essa dor de cabeça é alguma coisa com a qual eu me deva preocupar?…”
“Nove da manhã? A sério?! Mas não é essa a hora a que eu entro?”
“A menos que estejas de folga ou de baixa, é.”
“Já te ligo!”

A Florentina saltou da cama, agora sim estava acordada. Correu para a cozinha, misturou o café e o leite numa caneca e bebeu tudo frio para não perder tempo com o microondas. Tecnicamente a Florentina também conseguia controlar o fogo, mas a vontade de testar esse poder nunca tinha sido superior à probabilidade de aumentar brutalmente o prémio da apólice de seguros. Pegou na primeira peça de fruta que encontrou e meteu-a na mala juntamente com uns comprimidos para a dor de cabeça. Depois foi só pegar nas chaves de casa e do carro e sair do apartamento em direção à garagem. Só quando olhou para o espelho no elevador é que reparou que estava de saltos altos e de pijama. Fechou os olhos, disse umas palavrinhas que resultavam num feitiço simples - dos poucos que ela se atrevia a fazer sem usar um fato completo de kevlar - e quando voltou a abrir os olhos já tinha o ar de executiva que ela pretendia. A chatice é que o feitiço funcionava mais como miragem do que outra coisa, o feitiço a sério só se ensinava no segundo ano de introdução às técnicas de bruxaria. E sendo assim piorava a dor de cabeça que ela sentia porque tinha que estar continuamente a gastar energia para manter a ilusão.

O elevador chegou finalmente à garagem e a Florentina dirigiu-se ao seu Fiat Panda cor-de-laranja fabricado no longínquo ano de 1982. É verdade que o carro só era um conjunto único de peças porque diversos feitiços mantinham coesas as fechaduras, frisos, retrovisores e outras peças mais salientes. Também não estavam todas no seu devido lugar, mas a Florentina via o seu Fiat como um ‘work in progress’ - uma verdadeira homenagem à variação da expressão ‘Se não resolve o teu problema é porque não estás a usar fita-cola suficiente!’. Depois de várias tentativas para arrancar o carro, o Fiat lá se rendeu às evidências e rolou para a estrada sob protesto. A caminho da empresa, a Florentina ainda retocou a maquilhagem antes de telefonar à Anabela.

“Olá, já estou a caminho. Tu já chegaste?”
“Sim, cheguei agora mesmo e o teu chefe ainda não está cá. Com sorte ele nem dá pelo teu atraso!”
“Que boas notícias! Se ele chegar entretanto, podes empatá-lo um bocadinho até eu chegar?”
“Florentina…”
“Já sei: é ilegal usar magia para alterar a vontade própria de cada indivíduo.” A Florentina revirou os olhos no final da frase.
“Muito bem, agora vê se te despachas. E depois tens que dizer-me o que viste esta manhã!”
“Eu não vi nada, como sempre. Estou aí dentro de dez minutos, até já!”

Depois de cortar para a saída onde estava o edifício da empresa, a Florentina mostrou a identificação ao segurança que lhe devolveu um ar aborrecido e estacionou o carro bem longe da porta da entrada, já que os melhores lugares estavam destinados às pessoas importantes e aos madrugadores. Saiu do carro a correr, mas passou pelo atendimento público devagar porque já tinha experimentado por diversas vezes e da pior maneira quão polido podia estar aquele chão e chamou o elevador. A empresa tinha-se mudado há pouco tempo para um edifício novo que era mais alto do que o necessário e os elevadores demoravam uma eternidade a chegar onde quer que fosse. A Florentina trabalhava quase no topo do edifício porque o chefe dela era o vice-presidente da empresa. O elevador chegou por fim e colocou-se em andamento, mas ainda nem tinha chegado ao décimo andar quando o estômago da Florentina deu sinal de vida. Como tinha saltado a parte sólida do pequeno-almoço, a Florentina decidiu que a lentidão do elevador dava tempo para mordiscar a maçã que tinha trazido de casa, mas só quando a tirou da mala é que viu que afinal tinha trazido uma laranja. Suspirou e carregou no botão abaixo do que estava iluminado e que assinalava o andar onde trabalhava a Anabela.

“Olá Anabela! Achas que podes ajudar-me com esta laranja?”
“O que é que estás a fazer aqui em baixo? E porque é que trazes o pijama vestido??” A Florentina olhou para baixo e viu que o feitiço ainda estava ativo, portanto respondeu à amiga com uma careta por ter sido apanhada em falta.
“Vá lá, eu hoje já estava atrasada antes de entrar para o carro. Ajudas-me com esta laranja ou não?”
“Que mal te fez a laranja?”
“Não tenho maneira de comê-la.”
“Queres uma faca emprestada?”
“Não podes transformar isto num copo de sumo?” A Anabela suspirou e abanou a cabeça várias vezes, mas lá fez a vontade à amiga e a Florentina nem pensou duas vezes antes de beber o sumo todo de uma vez.
“Obrigada! Falamos melhor à hora do almoço?”
“Até logo!”

Desta vez a Florentina correu para as escadas que davam acesso ao andar de cima em vez de usar o elevador e tentou colocar um ar profissional e ocupado assim que se sentou à secretária. Foi com um grande alívio e sentimento de triunfo que viu o chefe sair do segundo elevador que tinha acabado de abrir portas. Como sempre, a Florentina deu-lhe o melhor sorriso que tinha enquanto ele se aproximava da secretária dela.

“Bom dia Florentina! Alguma novidade?”
“Nada Sr. Dr., ninguém cancelou nenhum encontro e as reuniões vão prosseguir à hora marcada.”

Depois de agradecer mentalmente várias vezes a existência de smartphones e da Internet, a Florentina permitiu-se a relaxar e foi em busca de água para tomar um ou dois comprimidos para a dor de cabeça. Agora que o stress estava a passar, as imagens de fumo estavam a assaltá-la de novo. Ficou uns momentos concentrada a tentar perceber o que as imagens mostravam, mas acabou por desistir e voltar para a secretária. Assim que se sentou, o telefone percebeu a deixa e começou a tocar.

“Bom dia, daqui fala a assistente do Dr. Adalberto. Em que posso ser-lhe útil?”
“Bom dia Florentina, é o Rogério da segurança. Oiça-me com atenção: temos ordens para retirar toda a gente do edifício e estamos a começar pelos andares de cima. Por questões de segurança, está proibido o uso dos elevadores!”
“Estão a evacuar um edifício de quarenta andares? Mas quantos degraus é que eu vou ter que descer de saltos altos?!… Esqueça lá esta pergunta e diga-me sinceramente: o que é que se passa?”
“Recebemos uma ameaça de bomba e segundo a polícia temos que levar isto a sério. Desculpe mas tenho que desligar e avisar os restantes andares.”

O telefone começou a emitir o sinal de perda de ligação e a Florentina ficou a olhar para o auscultador sem saber muito bem o que fazer. Demorou uns segundos a voltar à realidade, mas assim que conseguiu interiorizar a emergência, levantou-se de um salto para avisar o chefe do que se estava a passar. Foi a primeira vez que entrou no escritório dele sem bater à porta e pedir licença.

“Dr. Adalberto peço imensa desculpa por esta interrupção, mas o Rogério da segurança acabou de avisar-me que houve uma ameaça de bomba e temos que sair daqui o mais depressa possível! Ah e não podemos usar os elevadores.”

Não havia dia que o Adalberto não gostasse de ver a Florentina. Era o sorriso dela a razão pela qual ele metia cada vez menos baixas e tinha mesmo deixado de inventar desculpas para ficar na cama nos dias de Inverno mais chuvosos. E foi essa assiduidade não planeada que acabou por conseguir-lhe promoção atrás de promoção. Mas agora ele estava deveras desconcertado pela entrada inesperada da Florentina, não só porque ela pedia sempre licença antes de entrar mas acima de tudo porque ela tinha um pijama vestido. Era claro que ela estava agitada porque esbracejava muito enquanto dizia qualquer coisa que ele não conseguia descodificar pois não conseguia desviar os olhos do pijama às riscas azuis e brancas.

“Calma, a Florentina parece muito transtornada! Sente-se aqui que eu vou buscar-lhe um copo de água.”
“Mas o Dr. Adalberto não ouviu nada do que eu disse?!”
“Distraí-me quando a vi entrar de pijama. Quer começar a explicação por aí?”

A Florentina olhou para baixo e a cara dela passou por várias tonalidades que foram do extremo embaraço ao de sem pinga de sangue. Ainda pensou em refazer o feitiço, mas assim ia distraí-lo ainda mais e o importante agora era conseguir que ele saísse do edifício.

“Não se passa nada comigo doutor, eu já explico porque é que estou de pijama mas temos mesmo que sair daqui! Houve uma ameaça de bomba e o edifício está a ser evacuado!”
“Mas porque é que a Florentina não começou logo por aí?”

Apesar do Adalberto não ter dado tempo à Florentina para responder, a verdade é que ela mordeu o lábio para não dizer alto o que estava a pensar e apressou-se a segui-lo.

“Temos que ir pelas escadas, os elevadores estão altamente desaconselhados em caso de emergência!”
“Desaconselhados? Mas este prédio tem quarenta andares! Não está à espera que eu desça os andares todos e ainda chegue vivo lá abaixo, pois não? Para isso mais vale que a bomba rebente já!” Dito isto, o Adalberto carregou no botão do elevador que obedientemente abriu portas. “Vê? Está a funcionar e tudo. Ora cá vamos nós, senhoras primeiro!”
“A sério que não acho isto nada prudente! E ainda tenho que ir lá abaixo ver como está a Anabela. Venha comigo, eles ainda cortam a eletricidade e depois…”
“Portanto é melhor descer já. Vem ou fica?”

A Florentina ficou a abanar a cabeça e o Adalberto encolheu os ombros antes de pressionar botão marcado com um zero. Depois das portas fecharem, a Florentina certificou-se que o elevador tinha descido dois andares antes de correr para as escadas à procura da Anabela.

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