quinta-feira, agosto 02, 2012

Mas que as há... há (Parte II)

Durante a breve descida, a Florentina deixou escapar um “Duh!” enquanto refazia o feitiço e desta vez enterrou-o bem fundo no subconsciente para ter a certeza de que não voltava a perdê-lo, afinal o dia prometia ser cheio de surpresas e ela não podia aparecer de pijama sempre que se assustasse. Começou a chamar pela amiga antes de abrir a porta que a separava da zona do escritório. Nas escadas não se ouvia som nenhum que não fosse gente a descer apressadamente, mas agora ouvia perfeitamente algumas sirenes.
“Ah, finalmente! Já estava mesmo para descer sem ti! Os meus colegas já foram todos para baixo.” A Florentina passou pela Anabela sem olhar para ela. “Florentina? Onde vais?”
“Só um momento Anabela, quero ver como estão os elevadores.”
“Os elevadores? Mas não sabes que não se podem usar…”
“Sei, mas o Adalberto feito parvo meteu-se no elevador porque não queria descer os degraus todos.”
“Não sei o que vês nele.”
“Nem eu, mas parece que ele tinha razão e vai conseguir chegar lá abaixo, já está a chegar ao décimo andar. Ora vamos lá!”

As duas amigas começaram a descer os degraus praticamente em corrida, era óbvio que eram as últimas a abandonar o barco e a ideia de ficar para trás não agradava a nenhuma delas.

“Parece que estão a levar a ameaça a sério!”
“Ainda bem, é preferível não estar cá ninguém do que irmos todos pelos ares!”
“Que pensamento tão alegre Florentina!”
“O dia de hoje não começou lá muito bem e eu não estou a sentir-me particularmente saudável…”
“Já estás cansada? Mas ainda mal começámos!”
“Não achas que está muito calor aqui?”
“Calor? Ó Florentina eu não estou a sentir nada, tu não me assustes! Eu não quero morrer queimada! Ao menos que me deixem de forma a que possam meter-me maquilhagem antes de começar a fazer tijolo…”
“Puff… uma bruxa queimada, onde é que já se viu isso?!”

A Florentina não tinha vontade de falar mas queria mostrar à amiga que estava bem. Mas quando começou a suar a sério abrandou a descida e ao fim de uma dúzia de degraus acabou mesmo por sentar-se num deles.

“Então? O que tens?” A Florentina tentou sorrir mas o sorriso saiu muito amarelo. “Agora estou oficialmente preocupada contigo!”
“Estou cheia de calor e a minha barriga não está nada bem… acho que foi o sumo de laranja em cima do leite!”

A Anabela olhou para a amiga sentada nos degraus, a cara da Florentina tinha agora tons esverdeados e estava dobrada sobre a barriga, claramente em sofrimento. A Anabela não sabia como reagir e acabou por sentir um misto de pena, pânico e alguma vontade de rir porque a situação era demasiado caricata.

“Bem, apoia-te em mim e vamos descer os degraus que faltam até ao próximo andar. As casas de banho de lá são decentes, podes estar descansada.”

A cara da Florentina variava entre o amarelo e o verde quando chegou à entrada da casa de banho. A Anabela não queria ficar a ouvir os sons que iam seguir-se, mas também não queria abandonar a amiga. Portanto deixou a porta meio entreaberta enquanto escutava os sons habituais intercalados por uns líquidos mais explosivos e o som de ar a sair à força. Depois de algumas tentativas para manter o controlo, a Anabela teve que tapar a boca com as mãos para abafar o riso mas não foi muito bem sucedida.

“Anabela? Vai-te embooooora! Livra-te de ficar aí a gozar comigo enquanto… ai!”

A Anabela voltou a rir à gargalhada com a nova sequência de sons mas desta vez fechou a porta da casa de banho e esperou que a amiga arranjasse coragem para sair. E só quando ficou mesmo sozinha é que se lembrou que a situação não tinha piada nenhuma e que tinham que sair dali depressa. Não quis apressar a amiga, mas roeu as unhas todas até que a porta da casa de banho deu sinal de vida e ela saltou de encontro à amiga.

“Estás melhor? Espero que sim porque temos mesmo que sair daqui!”
“Não estou completamente bem, mas estou melhor. Vamos lá a isto.”

Para voltar às escadas tinham que passar pelos elevadores e a Florentina não resistiu e espreitou em que andar estava o elevador da direita.

“Anabela? Passa-se qualquer coisa com os elevadores.”
“O quê?”
“Este está encravado entre o 5º e o 6º andar.” Os olhos da Anabela moveram-se para os dígitos e esperou uns segundos antes de assegurar-se de que realmente o elevador não se mexia.
“Achas que o Adalberto chegou a sair?”
“Acho que não…”
“Bem, também não podemos ajudá-lo.”
“Podemos sim!” A Florentina correu para uma das muitas secretárias vazias, levantou o auscultador e esperou por um sinal vida do outro lado.
“Deixa-me adivinhar, o Rogério não está a atender o telefone.” A Florentina deitou-lhe a língua de fora.
“Ok, ganhaste! Vamos lá descer isto e entretanto eu tento usar o telemóvel para ver se me passam a alguém que possa ajudar o Adalberto.”
“O serralheiro das minas e armadilhas!”

A Florentina revirou os olhos e começou a descer as escadas depressa para acompanhar a amiga enquanto tentava ligar para o 112. O problema é que só tinha rede quando passava encostada ao fim do edifício. Ou seja, a cada volta das escadas só tinha rede em metade do caminho e a pessoa do outro lado ainda não tinha percebido nada do que ela estava a tentar dizer. Acabou por desistir, não por falta de esperança mas porque ouviu aquele som intestinal capaz de trazer lágrimas a um homem grande e mau. O som que indica que a partir dali não há salvação a menos que haja um trono de porcelana num raio de dois metros. E a Florentina não teve outro remédio senão correr até à casa de banho do andar que se seguia. E voltou a parar de emergência no andar abaixo desse. E nos outros três.

Depois de demasiadas paragens, a Anabela estava nervosamente sentada nas escadas junto à porta que indicava o 5º andar e pensava seriamente se a sua sobrevivência não era mais importante do que aquela amizade. A Florentina era de longe a melhor feiticeira que ela tinha conhecido em anos de profissão e a única que conseguia canalizar tanta magia de uma vez, mas também era tão trapalhona que precisava permanentemente de ajuda, o que chegava a ser frustrante. Mas a Anabela punha as mãos no fogo (ou num sítio que doesse menos) em como ia conseguir transformar a Florentina na maior bruxa da década. Além disso, era a Florentina que via o futuro e se ela sentia que tinha que parar em todas as casas de banho do edifício, provavelmente o futuro dela não passava pela transformação forçada em estilhaços humanos. Por outro lado, estava a começar a cheirar a chamuscado e isso não era bom sinal até para quem não via o futuro.

“Anabela?”
“Sim?…”
“Achas que podes ajudar-me com o elevador?”
“Qual é o problema desta vez?”
“Estou a tentar abrir a porta porque o Adalberto está preso aqui dentro, consigo ouvi-lo a pedir ajuda! Ele já sabe que estamos aqui para ajudá-lo.”

A Anabela respirou fundo, colocou as mãos na anca e, depois de lançar um olhar furioso à Florentina, colocou-se de frente para o elevador e viu finalmente uma mancha preta marcada no metal da porta. Pelo menos o cheiro a chamuscado estava identificado e não era nenhum fogo. Mas mesmo que não tivesse visto a mancha, bastava olhar para o estado das pontas do cabelo da Florentina que estavam encaracoladas para lá da salvação para perceber o que se tinha passado.

“O que é que fizeste?”
“Estava a tentar abrir as portas para ele poder sair.”
“E a mancha?”
“Hum… eu achei que se calhar um feitiço de força extra podia ajudar-me a conseguir abrir as portas do elevador…”
“E…”
“E apareceram chamas nos meus dedos, eu assustei-me e apontei à porta. Mas não funcionou!” As lágrimas estavam a chegar aos olhos da Florentina e as palavras saíam soluçadas.
“Estou a ver que foi uma sorte não teres fundido as duas portas!”

A Florentina não disse mais nada e estava à beira de um ataque de nervos. Se havia coisa a que ela não reagia bem era às críticas sobre a falta de jeito dela para controlar a magia. E para piorar a coisa, toda a gente confirmava o potencial enorme que ela tinha e dia após dia a única coisa que ela via era que não tinha jeito nenhum! Tanto potencial deitado pelo cano abaixo… A Florentina estremeceu ligeiramente quando a palavra ‘cano’ atravessou o seu subconsciente. A Anabela viu que estava a acontecer e tentou remediar a situação.

“Ó não fiques assim, controlaste-te muito bem! Podias ter começado um incêndio ou assim…”

Assim que ouviu as palavras em voz alta, a Anabela percebeu que tinha perdido um bom momento para estar calada e as lágrimas da Florentina que ainda não tinham saído começaram a rolar a alta velocidade. Mas antes que qualquer uma delas pudesse fazer o que quer que fosse, um estrondo enorme ecoou no edifício que abanou fortemente. As duas bruxas caíram ao chão e protegeram os ouvidos com as mãos, mas ambas sabiam que ia seguir-se um zumbido maçador. A Anabela tentou lembrar-se dos procedimentos de segurança em caso de terramoto mas estava tão assustada que nem conseguia pensar, e a Florentina pedia baixinho que o elevador não caísse no fosso. Nisto, as luzes daquele andar apagaram-se.

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