domingo, agosto 05, 2012

Mas que as há... há (Parte III)

A luz voltou uns segundos depois e foi seguida do 'plim' do elevador acabado de chegar. A Anabela e a Florentina continuavam no chão mas voltaram as duas a cabeça na direção do elevador. As portas ignoraram a respiração sustida das amigas e levaram o seu tempo a abrir. Lá de dentro saiu apressadamente o Adalberto de gatas e gravata a arrastar pelo chão.

“Florentina!”
“Adalberto!”

A Anabela não pôde deixar de abrir a boca de incredulidade ao ver aquelas duas personagens irem de encontro uma à outra de gatas. Viu-os levantarem-se atabalhoadamente até ficarem de joelhos e abraçarem-se efusivamente. Seguiu-se mesmo um inesperado beijo entre os dois e a boca da Anabela caiu mais uns centímetros com a duração apaixonada do beijo. Os olhos dela também são capazes de ter saído um pouco mais das órbitas do que o normal.

“Ah Florentina, pensei que nunca mais a via!”
“Estou tão contente por vê-lo são e salvo, Sr. Dr.! Eu sabia que tinha ficado preso no elevador, eu não lhe disse que era melhor descer pelas escadas?”
“E tinha toda a razão minha bela Florentina! Como sempre…” os olhos do Adalberto adquiriram uma névoa sonhadora "sabe que me lembro de si desde o primeiro dia em que a vi? Nunca mais me vou esquecer desse dia! A Florentina foi um verdadeiro raio de sol naquele dia chuvoso!”
“Eu entrei ao serviço em Junho durante uma vaga de calor?”
“Ah sim? Bem, tanto faz! Desde esse dia que a Florentina não me sai da cabeça! E hoje, preso dentro daquele elevador do demo, vi claramente que é importante para mim e para a minha vida. Diga-me minha doce Florentina, aceita casar comigo?”

O maxilar totalmente aberto da Anabela impossibilitava fisicamente que a boca dela caísse mais, mas em espírito o maxilar inferior bateu no chão. No entanto, em vez de ver as lágrimas de felicidade da amiga e de ouvir o “sim” que se antevia, só viu a Florentina tapar a boca com a mão direita e correr em direção à casa de banho. O Adalberto continuou de joelhos durante uns momentos, mas acabou por virar-se para a Anabela com um ar aflito. A Anabela não teve outro remédio senão levantar-se, aproximar-se de gatas do Adalberto e explicar que a amiga não estava a sentir-se muito bem - provavelmente alguma coisa que tinha comido - e que decerto não tinha nada a ver com o pedido de casamento. Acabou mesmo por explicar que problemas intestinais aliados ao sistema nervoso formam um duo capaz de deixar o Super-Homem de joelhos… à beira de uma sanita.

“Não se preocupe, dê-lhe cinco minutos que ela já volta.”
“Não seria melhor confirmar que está tudo bem?”
“Acredite que ela prefere que fiquemos os dois aqui.” A Anabela olhou à volta e viu algumas das coisas que tinham caído das secretárias e algumas rachas novas nas paredes do edifício. “Será que foi a bomba que rebentou há pouco?”
“Havia mesmo uma bomba?...”

A Florentina não deu tempo de resposta à Anabela porque chegou a correr, deslizou de joelhos até ao Adalberto, pegou nas mãos dele e gritou um entusiástico “Sim!!”. Depois de dar-lhes mais uns minutos para abraçarem-se um pouco mais e aceitado o convite para ser madrinha de casamento, a Anabela conseguiu finalmente que retomassem a descida. Tinham descido apenas um andar quando a Florentina recusou-se a descer mais.

“Então Florentina, estás mal disposta outra vez?”
“Tenho um mau pressentimento… acho que não devíamos descer.”
“Pressentimento? Ó minha querida, isso é dos nervos! Continuemos a descer que eu garanto que saímos daqui sãos e salvos, já falta tão pouco!”
“Ora calma lá, se a Florentina acha que não devemos descer, eu também não!”
“Como assim? Preferem ficar aqui paradas no meio da escada?”
“Paradas não, mas eu não saio por aí! Aliás, eu vou é voltar a subir!”
“Subir? Sem querer faltar ao respeito à minha futura esposa, essa ideia parece-me… peregrina, vá!”
“Como madrinha de casamento vou dar-lhe já aqui o meu primeiro conselho para um casamento feliz e duradouro: tome sempre em conta os pressentimentos da Florentina!”

E disto isto, as duas voltaram costas e recomeçaram a subir. O Adalberto coçou a cabeça sem saber o que fazer e decidiu abrir a porta do 4º andar só para ver como estavam as coisas do outro lado. Uma parede de fumo negro tomou-o completamente de surpresa, mas ele recuperou depressa o sangue frio e fechou a porta com força antes de correr atrás da sua futura noiva.

“Acho que a minha querida Florentina tem um olfato muito apurado!” A Anabela parou de correr porque a Florentina também tinha parado e voltou-se para o Adalberto.
“Porque diz isso?”
“Penso que há um incêndio nos andares de baixo, o quarto andar cheira imenso a fumo.”
“Será que a bomba rebentou no parque de estacionamento?... O alarme de fumo não devia estar a funcionar?!”
“Eu vou saltar por aqui.”

O Adalberto e a Anabela olharam confusos um para o outro até perceberem que tinha sido a Florentina a falar. Voltaram-se os dois para o espaço que ela tinha ocupado momentos antes e gritaram em uníssono “Nãaaaao!” quando a Florentina se atirou da janela. Correram os dois para parapeito e viram que a Florentina não tinha adquirido uma consistência gelatinosa, mas estava sã e salva apoiada num dos vários toldos que tinham sido montados na semana antes para dar sombra aos gabinetes daquele lado do edifício. A Florentina estava obviamente de perfeita saúde e a falar ao telemóvel.

“A minha futura esposa tem nervos de aço!”

A Anabela olhou para o Adalberto e não pôde deixar de sorrir ao ouvir o orgulho na voz dele, afinal, quantos chefes é que apreciavam devidamente os subordinados? Passados uns minutos, os dois viram chegar um grupo de bombeiros com uma lona circular. A Florentina atrapalhou-se um pouco a mexer-se em cima do toldo, mas acabou por saltar para a lona. Entretanto o fumo dos andares debaixo que chegava à janela onde eles estavam já era mais que muito e a Anabela não hesitou em subir ao parapeito e atirar-se com cuidado para não falhar o toldo. Mas como bruxa treinada que era, não resistiu em mascarar o próprio peso e tornar-se tão leve quanto possível - não podia enganar a gravidade, mas podia ajudar o toldo.

Chegou finalmente a vez do Adalberto que era muito mais pesado do que a Anabela e a Florentina e ele tinha plena consciência do facto. Subiu ao parapeito da janela, mas o equilíbrio era periclitante e só piorava com a certeza de que o toldo não ia aguentar com o peso dele. O Adalberto olhou em volta mas o fumo e algumas labaredas já visíveis não lhe davam nenhuma outra hipótese de salvação e ele deixou-se cair. O mergulho no vazio seria traduzido numa valente chapa se ele caísse dentro de água, mas sendo um toldo acabou mesmo por rasgar com o peso do Adalberto e ele caiu para o toldo que estava por baixo. O segundo toldo ainda não tinha sido colocado à prova, mas acabou também por rasgar-se ao fim de alguns segundos e o mergulho do Adalberto terminou em cima da capota de um carro. Os bombeiros rodearam-no rapidamente e levaram-no numa maca. Apesar de nenhum deles correr perigo de vida, os três sobreviventes foram levados para o hospital como medida de precaução.

Já no hospital, a Florentina acabou por ficar a soro porque estava extremamente desidratada. O Adalberto não tinha partido nada mas tinha um pulso ligado e segurava um saco de gelo na testa com a outra mão - podia dizer-se que não estava ansioso por acordar cheio de dores no dia seguinte. A Anabela nem arranhada estava, mas ficou a fazer companhia à Florentina juntamente com o Adalberto. Estavam os três em amena cavaqueira até ouvirem um leve toque na porta do quarto e viraram-se todos ao mesmo tempo nessa direção.

“Dão-me licença?”

E sem esperar por nenhum sinal de que podia entrar, o inspetor Álvaro entrou no quarto, abriu o bloco de notas e parou aos pés da cama da Florentina. Apresentou-se aos três e começou a tomar notas do relato que lhe faziam sobre o que se tinha passado, mas prestou muito mais atenção à Anabela do que às palavras que estavam a chegar-lhe aos ouvidos.

“Então e Sr. Inspetor, já se sabe quem colocou a bomba no edifício?”
“Ora essa, trate-me por Álvaro!” No mesmo tom familiar, o inspetor mostrou uma fila de dentes brancos à Anabela. “Sim, o bombista entregou-se assim que percebeu que tinha a morada errada e foi aí que demos o alerta.”
“Morada errada? E ele não sabia desativar a bomba?”
“Pois isso já não lhes sei dizer, mas parece que a bomba era entendida para a pastelaria ‘Viúva António e herdeiros’ e não para a empresa onde trabalham. No entanto, era uma bomba de fabrico artesanal e apesar dos danos causados aos carros, a estrutura do edifício nunca esteve em causa. O fogo é que podia ter causado danos maiores…” O inspetor virou-se para a Anabela e completou com um ar muito profissional: “especialmente se vocês não têm saltado.”

Após alguns segundos em que os sobreviventes deram graças por estar vivos, o cérebro do Adalberto foi o primeiro a entrar em funcionamento: “Pastelaria? Mas como é que alguém troca uma empresa que ocupa um edifício de quarenta andares com uma pastelaria?!”

O inspetor desviou finalmente o olhar da Anabela para fitar o Adalberto, mas não respondeu. Acabou apenas por sorrir, entregar um cartão pessoal à Anabela e sair do quarto. A estranheza da situação criou um incómodo silêncio, mas a Florentina decidiu que era altura de desviar o assunto para algo mais alegre.

“Estou a ver que o Rogério tem concorrência!”
“Oh, eu e o Rogério estávamos a dar um tempo de qualquer forma.”
“Vocês não acham estranha esta história da pastelaria?”
“Achar acho, mas não sei se quero dar-me ao trabalho de pensar nisso. Estamos todos bem e é isso que interessa!”
“E temos que começar a planear o casamento!”
“Decidir o dia, escolher o local, escolher os convites, comprar as flores, escolher o menu…”

Enquanto as mulheres se perdiam na animada discussão dos preparativos, o Adalberto levantou-se e saiu do quarto do hospital sem abrir a boca. Com sorte ainda apanhava o inspetor… Se bem que ele estava a começar a desconfiar que aquele homem não era inspetor nenhum.

Sem comentários:

Enviar um comentário