(...)
Ao fim de mês e meio, decidi que se ia morrer deprimida, ao menos ia sair das muralhas por uma vez que fosse. Cheguei decidida à sala do trono e informei o meu pai que ia dar um passeio fora das muralhas do castelo. Penso que ele até ia objectar porque ficou parado de boca aberta e com o dedo indicador da mão direita levantado, mas acabou por assentir com um gesto da cabeça, talvez por me ver simplesmente de pé. De qualquer modo, mandou preparar a carruagem mais segura que tínhamos e ainda enviou um corpo de 10 guardas. Pedi ao cocheiro, o sr Zé, para me levar a ver o mar... queria ver a zona mais bonita do reino com vista para o mar.
O mar era mais longe do que eu pensava. Meti a cabeça de fora da carruagem assim que saímos das muralhas e fui admirando o reino, os transeuntes e o mau cheiro. Ao fim de algum tempo, resignei-me a tapar o nariz e a respirar pela boca. Assim que saímos da zona populada, o mau cheiro dissipou-se, mas era tudo muito à base de árvores e pedras, chateei-me rapidamente. O tempo arrastava-se na curiosidade em conhecer o mar e a falta de alguém com quem falar, a Clara recusava-se a sair.
A carruagem eventualmente parou e eu saí, um bocado a medo. Fiquei arrepiada quando vi o mar pela primeira vez. Era lindíssimo! Cheirava melhor do que qualquer perfume que já me tinham vendido. Aproximei-me devagar, até deixar de existir terra debaixo dos meus sapatos, apenas areia onde me enterrei ligeiramente. Vi as ondas rebentarem e aos poucos fui perdendo o medo da espuma branca que ia e vinha. Fiquei hipnotizada durante bastante tempo naquela visão, enquanto os caracóis da peruca se desenrolavam ao vento. Só acordei quando reparei que o som das ondas me estava a dar vontade de usar a latrina, o mais rapidamente possível. Como era uma princesa, achei que podia evitar aliviar-me atrás de um arbusto e dirigi-me a uma cabana simpática que estava ali por perto. É curioso pensar que a cabana tinha uma vista melhor do que todas as janelas do castelo. Conforme me ia aproximando, reparei que havia alguém sentado à porta da cabana, estava virado para o mar e, portanto, de costas para mim. Corri (dentro dos possíveis) até à pessoa e, conforme ela me ouviu chegar (ou talvez a chiadeira dos dez guardas que vinham comigo), levantou-se num pulo e virou-se para nós. Assim que me viu, andou dois passos para trás e eu fiquei de boca aberta depois de um dramático “oh!”. Passados uns segundos de hesitação, e passada a fúria de o saber ali no reino e nunca ter tentado contactar-me, fiquei tão feliz que tentei chegar-me perto dele, mas ele insistia em afastar-se mais a cada passo que eu dava na direcção dele. Sem outro remédio, gritei ligeiramente:
- O que é que se passa? Não se lembra de mim?! Sou a princesa!
- Claro que lembro!... Mas o que faz aqui? - gritou ele.
- Vim à procura do mar!
- Do mar?!
- O que disse?... Temos umas coisinhas por esclarecer, não?! - Enchi os pulmões de ar - Mas primeiro que tudo, posso usar a latrina da cabana? É assim urgente, obrigada!
Passados uns momentos de confusão, ele sorriu (já me tinha esquecido que era um sorriso tão grande!) e assentiu. Quando eu voltei, passámos o resto da tarde a conversar. Eu estava deveras impressionada com o mar, na verdade, até me apetecia descalçar e sentir a areia molhada nos pés. Aprendi que o nome dele era Ricardo e que não descendia de nenhuma família real, aliás, só tinha ido ao palácio porque tinha um amigo qualquer, ele sim nobre, que gostava de jogar e perdeu o convite para o baile ao jogo. Eu não dizia praticamente nada porque face às aventuras dele, a minha vidinha de princesa era um tédio de morte. Mas gostava tanto de estar com ele que voltava dia após dia e aprendia imensas coisas novas: aprendi a descascar maçãs, a usar uma fisga, a pescar com uma linha e que não existem dragões (mas eu já suspeitava desta!). Ao fim de alguns meses e sem qualquer pedido de casamento da parte do Ricardo, enchi-me de coragem e disse ao meu pai que já tinha escolhido um marido para mim, mas que não era de sangue azul. Curiosamente, o meu pai ficou contente (suponho que não era o segredo melhor guardado do castelo), mas ao mesmo tempo, não gostou da ideia de ter que nomear outra pessoa para seu sucessor. Depois de lhe prometer que continuava a viver no castelo com ele, fui pedir a mão do Ricardo. Ele ficou bastante chocado com minha decisão, mas quando a voz dele voltou, deu-me um decidido “sim”! No entanto, tinha mais um pedido a fazer-lhe: queria uma festa grande e convidar muita gente dos vários reinos, assim uma despedida da realeza em grande!
A Clara fez um esforço enorme para se mostrar feliz por mim, e até vibrou com o meu vestido de noiva que toda a gente já conhecia... Os conselheiros do reino chegaram à decisão unânime de que eu estava maluquinha de todo, mas a cerimónia começou como estava prevista com a chegada do Ricardo muito elegante, até tinha perdido a barriga para o evento e tudo! Mas eu estava algo inquieta pela falta de um convidado em particular... Acabou por chegar, atrasadíssimo, mas chegou. Entrou no final da cerimónia e com estrondo tal que toda a gente se virou para trás. O Ricardo segurou-me a mão com medo que fosse algum outro pretendente e eu retribuí com um grande sorriso. Quando a Clara olhou para trás e o viu, não houve decência que ficasse de pé! Arregaçou o vestido, correu a nave toda em direcção à saída e saltou para os braços do sr malmequer como se não houvesse amanhã. O beijo que se seguiu valeu-lhes uma expulsão da cerimónia, mas teve direito a muitos risos cúmplices. Coitado do Pedro, esquecer a Clara é uma tarefa impossível, eu própria não fui capaz durante o planeamento do meu casamento.
O sr malmequer ficou connosco durante alguns dias até confessar que tinha renunciado ao trono, os pais não aceitavam aquele casamento. A única pessoa que estava do lado dele era a tal tia que tínhamos em comum e que o tinha acompanhado até ali. O sr malmequer crescia a olhos vistos na minha consideração, já a tia dele crescia aos olhos do meu pai que se desdobrava em atenções para com a senhora!
Ao fim de alguns dias de discussão com o meu pai, chegámos os dois a um acordo importante. A Clara seria reconhecida como legítima herdeira ao trono, e como tal, tinha direito ao trono que eu tinha renunciado. Como o Pedro era de sangue azul e tinha sido criado para ser rei, podia governar o reino melhor do que qualquer um de nós, além do meu pai. Quando demos as novidades à Clara e ao Pedro, eles choraram durante quase uma hora e, no meio de tantos soluços, não percebi nada do que eles disseram.
Passados alguns anos, posso dizer que o castelo está mais cheio de vida do que nunca! As três alas do castelo, que antigamente estavam vazias, fervilham de actividade. Eu fiquei numa, a Clara na maior... e o meu pai e a sua nova esposa na outra! É fenomenal ver o meu pai a brincar com os netos e as boas relações entre esta família ampliada de forma tão rápida. Toda a gente ajuda nos assuntos governamentais, mas a palavra final é sempre a do meu pai, seguida da do Pedro e da Clara. Aos fins-de-semana saímos sempre das muralhas, normalmente para um piquenique à beira-mar, onde nos descalçamos e corremos a tarde toda.
Arrisco-me a dizer que vivemos assim... felizes para sempre.
segunda-feira, janeiro 21, 2008
sábado, janeiro 19, 2008
Fairy Tale V: O Pedro (parte II)
(....)
Já era de manhã quando tudo acabou. As pessoas espalharam-se pela relva do jardim, exaustas. Eu tinha adormecido de cansaço, a chorar pela Clara, encostada ao meu pai. Ele cumpria a função de rei e de pai, continuava a comandar tudo através de gestos e sussurros para não me acordar. Acordei apenas quando ele me chamou em voz alta: "filha, acorda!". Esfreguei os olhos que ainda ardiam e olhei em volta, era a Clara! Vinha com uma manga descosida, o cabelo solto molhado, a maquilhagem desfeita, mas belíssima como sempre. A minha irmã.. viva!! Agarrei-me de tal forma a ela, que desconfio que podia ter-lhe deslocado uma costela ou outra.
- Calma, calma, está tudo bem!
- Estava tão preocupada contigo!
- O teu malmequer vestido de pássaro salvou-me... não sei como é que ele me encontrou, só acordei quando ele, não muito gentilmente, me despejou um balde de água pela cabeça abaixo.
- Isso explica o cabelo molhado! Mal posso esperar para lhe agradecer. Sabes onde ele está?
- Oh, já foi embora.
- Embora? Para onde? Mas ele nem pediu a minha mão em casamento!
- Não? Pensava que era isso que ele tinha vindo cá fazer.
- Também eu... então e o teu par verde?
- Ai, nem digas nada! Que homem! Olha, declarou-se-me umas dez vezes durante a noite... estou farta de o procurar e não o encontro. Ele tinha ido buscar umas bebidas quando o lustre caiu... que visão horrível, espero que não lhe tenha acontecido nada!
- Isso és tu preocupada com um homem pela primeira vez?
- Ora... não posso?
- Claro que sim! Mas conta-me mais coisas!
- Que posso eu contar? A noite não deu para nada... além disso, acho que ele não percebeu bem quem eu era.
- O meu par também me pareceu um bocadinho baralhado esta noite, deviam estar a adivinhar o que estava para vir. Mas ora, pode ser o começo de um grande amor na mesma!
- Amor de verdade num baile a fingir?
- É um começo?....
- És uma romântica incorrigível!
- Olha! O teu sr verde está ali!! - E apontei, como me dizem sempre para não fazer.
A Clara ia ficando pálida conforme o sr verde se aproximava dela, nunca a tinha visto assim. A pena do chapéu dele estava queimada e ainda deitava um fiozinho de fumo que me distraía. Ele dirigiu-se directamente à Clara:
- Princesa, estou tão feliz de a ver sã e salva!
Olhámos de lado uma para a outra. Eu não sabia bem o que dizer, mas face a tanta confusão para uma noite só, achei que era melhor esclarecê-lo.
- A princesa sou eu, ela é a Clara – suponho que ele só deu pela minha existência nesse momento.
- Clara? Mas então... não entendo o que se passou?
- Eu estava mascarada de realeza... - suspirou a Clara numa voz apagada.
- Ai que terrível engano!
- Terrível?... - intrometi-me.
- Pois, agora é que reparo que este vestido não é prateado e... sabe, eu sou daltónico e tudo isto das cores me confunde muito!
- Prateado?!... Não me diga que você é... - a minha cara abria-se num terror de antecipação.
- ... Pedro Miguel Ramos António Joaquim, encantado por conhecê-la... princesa.
Eu e a Clara olhámos uma para a outra e desatámo-nos a rir. Demorámos vários minutos até recobrar a compostura e começarmos a chorar. Acho que foi demasiada coisa para tão pouco tempo, o fogo, o sabermo-nos vivas, as descobertas de amores trocados.... acabámos a soluçar no ombro uma da outra, enquanto o verdadeiro sr malmequer nos olhava visivelmente chocado e sem saber se devia fugir enquanto era tempo.
- Eu a sonhar com o casamento... e ele não quer nada comigo, é contigo! - Fungava a Clara.
- E eu que achava que este era o outro e o outro tinha uns olhos tão bonitos!...
- Mas eu é que fico sem este!
- E eu quero o outro!!! - E recomeçámos a chorar que nem umas verdadeiras madalenas.
- Hum, Hum – Aclarou a voz - Desculpem interrompê-las minhas senhoras, mas isto é de facto um erro lamentável. Clara, lamento imenso... a noite foi, até mesmo depois do lustre cair e enquanto o erro se manteve, memorável... A melhor noite da minha vida, de facto! A senhora é lindíssima, mas eu não posso casar com uma senhora que não é da realeza, penso que entende. Lamento profundamente. Quanto a si, tenho a certeza que é boa pessoa, mas não posso manter a minha promessa e pedir-lhe a mão em casamento. Não depois de conhecer a senhora Clara. Estou um pouco abalado com tudo isto...
- Claro, compreendo perfeitamente. Deixo-vos agora porque tenho que ir falar com o meu pai... - apressei-me a dizer entre várias fungadelas e afastei-me à procura do “outro”, enquanto deixava os dois a sós por alguns momentos.
O sr malmequer ainda abraçou a chorosa Clara cujo choro tinha aumentado de volume, mas não vi muito mais porque o meu coraçãozinho também ameaçava descolar-se a qualquer momento. O castelo já estava praticamente vazio (de convidados, claro) e eu não sabia nada do passarito de olhos grandes cinzentos. Saber que ele não era meu pretendente tinha sido um golpe duro, e se ele era casado? Ou um espião de outro reino, agora cheio de informações? E como é que é possível que eu nunca o tenha tratado pelo nome, nem me apercebido da razão pela qual ele não percebia nada do que eu dizia... No entanto, o que me afligia mais era não fazer ideia de como o podia encontrar. Até a Cinderela tinha tido a decência de deixar um sapato! Vagueei pelos jardins do palácio e fiz a descrição do sr pássaro a toda a gente que encontrei, alguns mais do que uma vez, e ninguém fazia ideia de quem poderia ser.
Nas semanas que se seguiram, eu e a Clara parecíamos umas almas penadas. Não saíamos, não ríamos, mal falávamos... ficávamos deitadas no quarto a olhar para o tecto e a suspirar pela má sorte. Nem as cerejas que o meu pai mandava que alguém deixasse no meu quarto me abriam o apetite.
Já era de manhã quando tudo acabou. As pessoas espalharam-se pela relva do jardim, exaustas. Eu tinha adormecido de cansaço, a chorar pela Clara, encostada ao meu pai. Ele cumpria a função de rei e de pai, continuava a comandar tudo através de gestos e sussurros para não me acordar. Acordei apenas quando ele me chamou em voz alta: "filha, acorda!". Esfreguei os olhos que ainda ardiam e olhei em volta, era a Clara! Vinha com uma manga descosida, o cabelo solto molhado, a maquilhagem desfeita, mas belíssima como sempre. A minha irmã.. viva!! Agarrei-me de tal forma a ela, que desconfio que podia ter-lhe deslocado uma costela ou outra.
- Calma, calma, está tudo bem!
- Estava tão preocupada contigo!
- O teu malmequer vestido de pássaro salvou-me... não sei como é que ele me encontrou, só acordei quando ele, não muito gentilmente, me despejou um balde de água pela cabeça abaixo.
- Isso explica o cabelo molhado! Mal posso esperar para lhe agradecer. Sabes onde ele está?
- Oh, já foi embora.
- Embora? Para onde? Mas ele nem pediu a minha mão em casamento!
- Não? Pensava que era isso que ele tinha vindo cá fazer.
- Também eu... então e o teu par verde?
- Ai, nem digas nada! Que homem! Olha, declarou-se-me umas dez vezes durante a noite... estou farta de o procurar e não o encontro. Ele tinha ido buscar umas bebidas quando o lustre caiu... que visão horrível, espero que não lhe tenha acontecido nada!
- Isso és tu preocupada com um homem pela primeira vez?
- Ora... não posso?
- Claro que sim! Mas conta-me mais coisas!
- Que posso eu contar? A noite não deu para nada... além disso, acho que ele não percebeu bem quem eu era.
- O meu par também me pareceu um bocadinho baralhado esta noite, deviam estar a adivinhar o que estava para vir. Mas ora, pode ser o começo de um grande amor na mesma!
- Amor de verdade num baile a fingir?
- É um começo?....
- És uma romântica incorrigível!
- Olha! O teu sr verde está ali!! - E apontei, como me dizem sempre para não fazer.
A Clara ia ficando pálida conforme o sr verde se aproximava dela, nunca a tinha visto assim. A pena do chapéu dele estava queimada e ainda deitava um fiozinho de fumo que me distraía. Ele dirigiu-se directamente à Clara:
- Princesa, estou tão feliz de a ver sã e salva!
Olhámos de lado uma para a outra. Eu não sabia bem o que dizer, mas face a tanta confusão para uma noite só, achei que era melhor esclarecê-lo.
- A princesa sou eu, ela é a Clara – suponho que ele só deu pela minha existência nesse momento.
- Clara? Mas então... não entendo o que se passou?
- Eu estava mascarada de realeza... - suspirou a Clara numa voz apagada.
- Ai que terrível engano!
- Terrível?... - intrometi-me.
- Pois, agora é que reparo que este vestido não é prateado e... sabe, eu sou daltónico e tudo isto das cores me confunde muito!
- Prateado?!... Não me diga que você é... - a minha cara abria-se num terror de antecipação.
- ... Pedro Miguel Ramos António Joaquim, encantado por conhecê-la... princesa.
Eu e a Clara olhámos uma para a outra e desatámo-nos a rir. Demorámos vários minutos até recobrar a compostura e começarmos a chorar. Acho que foi demasiada coisa para tão pouco tempo, o fogo, o sabermo-nos vivas, as descobertas de amores trocados.... acabámos a soluçar no ombro uma da outra, enquanto o verdadeiro sr malmequer nos olhava visivelmente chocado e sem saber se devia fugir enquanto era tempo.
- Eu a sonhar com o casamento... e ele não quer nada comigo, é contigo! - Fungava a Clara.
- E eu que achava que este era o outro e o outro tinha uns olhos tão bonitos!...
- Mas eu é que fico sem este!
- E eu quero o outro!!! - E recomeçámos a chorar que nem umas verdadeiras madalenas.
- Hum, Hum – Aclarou a voz - Desculpem interrompê-las minhas senhoras, mas isto é de facto um erro lamentável. Clara, lamento imenso... a noite foi, até mesmo depois do lustre cair e enquanto o erro se manteve, memorável... A melhor noite da minha vida, de facto! A senhora é lindíssima, mas eu não posso casar com uma senhora que não é da realeza, penso que entende. Lamento profundamente. Quanto a si, tenho a certeza que é boa pessoa, mas não posso manter a minha promessa e pedir-lhe a mão em casamento. Não depois de conhecer a senhora Clara. Estou um pouco abalado com tudo isto...
- Claro, compreendo perfeitamente. Deixo-vos agora porque tenho que ir falar com o meu pai... - apressei-me a dizer entre várias fungadelas e afastei-me à procura do “outro”, enquanto deixava os dois a sós por alguns momentos.
O sr malmequer ainda abraçou a chorosa Clara cujo choro tinha aumentado de volume, mas não vi muito mais porque o meu coraçãozinho também ameaçava descolar-se a qualquer momento. O castelo já estava praticamente vazio (de convidados, claro) e eu não sabia nada do passarito de olhos grandes cinzentos. Saber que ele não era meu pretendente tinha sido um golpe duro, e se ele era casado? Ou um espião de outro reino, agora cheio de informações? E como é que é possível que eu nunca o tenha tratado pelo nome, nem me apercebido da razão pela qual ele não percebia nada do que eu dizia... No entanto, o que me afligia mais era não fazer ideia de como o podia encontrar. Até a Cinderela tinha tido a decência de deixar um sapato! Vagueei pelos jardins do palácio e fiz a descrição do sr pássaro a toda a gente que encontrei, alguns mais do que uma vez, e ninguém fazia ideia de quem poderia ser.
Nas semanas que se seguiram, eu e a Clara parecíamos umas almas penadas. Não saíamos, não ríamos, mal falávamos... ficávamos deitadas no quarto a olhar para o tecto e a suspirar pela má sorte. Nem as cerejas que o meu pai mandava que alguém deixasse no meu quarto me abriam o apetite.
(continua)
quinta-feira, janeiro 17, 2008
Fairy Tale IV: O Pedro (parte I)
O meu último pretendente chegou na altura das festas grandes. Tínhamos imensos convidados no palácio e era a altura da minha festa preferida: o baile de máscaras. Era a festa que eu gostava mais porque o meu pai deixava de andar de olho em mim (até porque não sabia onde eu andava no meio de tanta gente) e a Clara usava os meus vestidos e pavoneava-se pela sala a convencer toda a gente que era uma imperatriz de um reino longínquo. Os homens então acreditavam religiosamente no que ela quisesse, acho que se ela dissesse que era uma rã transformada em princesa, eles também acreditavam... é por isto que gostamos deles, não é?
Mas voltando um pouco atrás, comecei a trocar cartas com o Pedro uns meses antes do baile de máscaras. Ele escreveu a contar-me que uma tia com quem temos conhecimentos em comum lhe tinha falado em mim e que estava muito interessado em conhecer-me. A nota interessante deste pretendente é que me enviava sempre uma flor cuidadosamente espalmada em todas as cartas. Achei que valia a pena conhecer o "sr malmequer", tal como a Clara o tinha baptizado. Combinámos que ele viria vestido de Robin dos Bosques (apesar de eu não fazer ideia do que isso seria exactamente) e eu disse que ia usar um vestido cor de prata e uma máscara cor-de-rosa com duas penas prateadas do lado direito.
A noite chegou por fim e eu mal conseguia respirar da excitação e do facto de ter o corpete mais apertado do que o habitual para um baile. Fiquei perto da entrada a acenar para todos os homens que entravam e houve um deles que não me causou qualquer dúvida, entrou vestido com um fato castanho, com uma mancha vermelha no peito, e umas mais claras a compor o resto do fato. Não sei porquê, "Robin" assentava-lhe de tal modo que eu não tive qualquer dúvida que estava ali o sr malmequer. Fiz sinal à Clara e fui atrás do meu pretendente.
- Muito bem vindo!
- Boa noite, minha senhora.
- Já me reconheceu? Máscara cor-de-rosa e duas penas de lado!
- Hum... por acaso não! Pensava que era essa a função da máscara...
- Ah e tem sentido de humor! Que bom! Sou eu, a princesa!
- A... princesa? Pensava que a princesa era aquela dama morena ali à entrada.
- Não, essa é a Clara! E sim, está a fazer-se passar por uma dama de sangue azul... e então, vamos dançar?
- Tem a certeza que quer dançar?.... Comigo?
- Claro que sim! Aposto que tem muita coisa para me contar, não é assim?
- Se a senhora assim o diz!...
E lá fui eu rodopiar nos braços do meu passarito que afinal era mais gordinho do que eu tinha imaginado sob a forma “malmequer”. Foi com grande alegria que reparei que ele não tinha qualquer problema na fala, nem atraía demasiados olhares femininos ou masculinos, mas parecia um bocado distraído porque não se lembrava de nenhum dos assuntos que tínhamos trocado nas cartas. Entretanto, a Clara andava a dançar alegremente com um senhor vestido de um modo peculiar, verde esfarrapado dos pés à cabeça e com um barrete cor-de-laranja com uma pena no topo. Achei que eles faziam um casal particularmente bonito, pareciam proporcionais um ao outro. E, o que me espantou mais, foi a maneira como a Clara o olhava. Era a noite de sorte para o cavalheiro de verde! Ao fim de algumas danças bem divertidas, o meu par perguntou-me se queria passear um pouco pelo jardim, ao que eu reagi com um entusiástico sim. É claro que sair do baile e da confusão para dar toda a minha atenção ao sr. Pedro era agradável! Mas tinha que manter a minha distância de dama respeitável, claro. Ele tirou a máscara da cara e eu fiquei de olhos arregalados, tinha à minha frente um homem mais bonito do que estava à espera. É certo que tinha uma barriguinha e que me tinha pisado mais de três vezes durante a dança, mas tinha imensas coisas giras para contar, um sorriso grande e uns olhos acinzentados enormes. Pareciam ser da cor da lua cheia e da minha máscara. Pegou-me na mão durante alguns minutos e eu senti o sangue a subir-me à cara, aposto que estava vermelha que nem um tomate. Como é que ele se atrevia a pegar na minha mão sem me pedir em casamento primeiro??
- Acho que é melhor não fazer isso. - E retirei a minha mão da dele.
- Porquê?
- Porque ainda não me declarou as suas intenções, o que o trouxe cá, tal como tínhamos combinado.
- O que me trouxe cá?.... Como assim?
- Ora, então o que é que o senhor veio fazer a este reino?
- O que é que eu vim cá fazer?... Mas ó minha senhora, eu já cá...
Nesse instante ouviu-se um certo estrondo na sala de baile e corremos os dois para lá. Havia um clarão enorme, uma confusão fenomenal e as pessoas gritavam “FOGO!” enquanto fugiam. Pareceu-me que o grande lustre do salão tinha caído no chão com um estrondo digno de um deus muito irado (pensando nisto agora, acho que a queda de um grande lustre era capaz de ser um grande momento numa peça de teatro!).
- Princesa, é melhor desviar-se que ainda é atropelada por esta gente!
- Não, a Clara está lá dentro! Tenho que ir lá!
- A Clara? Mas não pode! Repare bem na confusão que para ali vai!
Eu tentei entrar mas ele segurou-me com força. Apesar da confusão, senti-me protegida e perguntei-me se segurar numa mão era suficiente para pedido de casamento, o que era equivalente a ter alguém a segurar-nos de modo a impedir qualquer movimento da nossa parte?! Aposto que ficava com má fama até ao final da minha vida... uns 20 anos. Ao fim de poucos segundos, o cheiro a fumo, a quantidade de gente a gritar e a fugir causou-me imensa confusão. Comecei a chorar e tentei soltar-me para procurar a Clara.
- Calma, calma! Pronto, eu vou lá buscá-la. É a senhora que estava mascarada de princesa, não era? Eu vou procurá-la, mas fique aqui!
- Eu fico. Despache-se!!
- Só depois de me prometer que não sai daqui a menos que o fogo venha nesta direcção! Prometa-me!
- Prometo, vá lá, está prometido! Ó homem despache-se!!
E lá fiquei eu a roer as unhas e a desejar que ninguém estivesse a olhar para poder roer as dos pés também. As coisas desenrolavam-se lentamente, como se eu pudesse ver a imagem num tempo estendido... as labaredas tentavam fugir pelos vidros estilhaçados, as pessoas gritavam por água e pediam mais baldes, a noite estrelada permanecia impávida por cima das nossas cabeças. Sentia-me à parte de tudo, o som chegava longe e parecia que os meus olhos não detectavam o movimento imediato. Tentava pensar na Clara, ao mesmo tempo que procurava o meu pai na multidão, apesar de ter a certeza que ele estava a salvo. No meio desta realidade sonhada, senti-me abanada quando ouvi um chamamento que conhecia há anos... Vi-o finalmente e corri para ele: "Pai, pai, pai!!!". Fiquei ali a abraçá-lo enquanto toda a gente acorria com baldes, a gritar ordens e num esforço conjunto para apagar o imenso fogo que projectava as nossas silhuetas tremidas num laranja vivo.
Mas voltando um pouco atrás, comecei a trocar cartas com o Pedro uns meses antes do baile de máscaras. Ele escreveu a contar-me que uma tia com quem temos conhecimentos em comum lhe tinha falado em mim e que estava muito interessado em conhecer-me. A nota interessante deste pretendente é que me enviava sempre uma flor cuidadosamente espalmada em todas as cartas. Achei que valia a pena conhecer o "sr malmequer", tal como a Clara o tinha baptizado. Combinámos que ele viria vestido de Robin dos Bosques (apesar de eu não fazer ideia do que isso seria exactamente) e eu disse que ia usar um vestido cor de prata e uma máscara cor-de-rosa com duas penas prateadas do lado direito.
A noite chegou por fim e eu mal conseguia respirar da excitação e do facto de ter o corpete mais apertado do que o habitual para um baile. Fiquei perto da entrada a acenar para todos os homens que entravam e houve um deles que não me causou qualquer dúvida, entrou vestido com um fato castanho, com uma mancha vermelha no peito, e umas mais claras a compor o resto do fato. Não sei porquê, "Robin" assentava-lhe de tal modo que eu não tive qualquer dúvida que estava ali o sr malmequer. Fiz sinal à Clara e fui atrás do meu pretendente.
- Muito bem vindo!
- Boa noite, minha senhora.
- Já me reconheceu? Máscara cor-de-rosa e duas penas de lado!
- Hum... por acaso não! Pensava que era essa a função da máscara...
- Ah e tem sentido de humor! Que bom! Sou eu, a princesa!
- A... princesa? Pensava que a princesa era aquela dama morena ali à entrada.
- Não, essa é a Clara! E sim, está a fazer-se passar por uma dama de sangue azul... e então, vamos dançar?
- Tem a certeza que quer dançar?.... Comigo?
- Claro que sim! Aposto que tem muita coisa para me contar, não é assim?
- Se a senhora assim o diz!...
E lá fui eu rodopiar nos braços do meu passarito que afinal era mais gordinho do que eu tinha imaginado sob a forma “malmequer”. Foi com grande alegria que reparei que ele não tinha qualquer problema na fala, nem atraía demasiados olhares femininos ou masculinos, mas parecia um bocado distraído porque não se lembrava de nenhum dos assuntos que tínhamos trocado nas cartas. Entretanto, a Clara andava a dançar alegremente com um senhor vestido de um modo peculiar, verde esfarrapado dos pés à cabeça e com um barrete cor-de-laranja com uma pena no topo. Achei que eles faziam um casal particularmente bonito, pareciam proporcionais um ao outro. E, o que me espantou mais, foi a maneira como a Clara o olhava. Era a noite de sorte para o cavalheiro de verde! Ao fim de algumas danças bem divertidas, o meu par perguntou-me se queria passear um pouco pelo jardim, ao que eu reagi com um entusiástico sim. É claro que sair do baile e da confusão para dar toda a minha atenção ao sr. Pedro era agradável! Mas tinha que manter a minha distância de dama respeitável, claro. Ele tirou a máscara da cara e eu fiquei de olhos arregalados, tinha à minha frente um homem mais bonito do que estava à espera. É certo que tinha uma barriguinha e que me tinha pisado mais de três vezes durante a dança, mas tinha imensas coisas giras para contar, um sorriso grande e uns olhos acinzentados enormes. Pareciam ser da cor da lua cheia e da minha máscara. Pegou-me na mão durante alguns minutos e eu senti o sangue a subir-me à cara, aposto que estava vermelha que nem um tomate. Como é que ele se atrevia a pegar na minha mão sem me pedir em casamento primeiro??
- Acho que é melhor não fazer isso. - E retirei a minha mão da dele.
- Porquê?
- Porque ainda não me declarou as suas intenções, o que o trouxe cá, tal como tínhamos combinado.
- O que me trouxe cá?.... Como assim?
- Ora, então o que é que o senhor veio fazer a este reino?
- O que é que eu vim cá fazer?... Mas ó minha senhora, eu já cá...
Nesse instante ouviu-se um certo estrondo na sala de baile e corremos os dois para lá. Havia um clarão enorme, uma confusão fenomenal e as pessoas gritavam “FOGO!” enquanto fugiam. Pareceu-me que o grande lustre do salão tinha caído no chão com um estrondo digno de um deus muito irado (pensando nisto agora, acho que a queda de um grande lustre era capaz de ser um grande momento numa peça de teatro!).
- Princesa, é melhor desviar-se que ainda é atropelada por esta gente!
- Não, a Clara está lá dentro! Tenho que ir lá!
- A Clara? Mas não pode! Repare bem na confusão que para ali vai!
Eu tentei entrar mas ele segurou-me com força. Apesar da confusão, senti-me protegida e perguntei-me se segurar numa mão era suficiente para pedido de casamento, o que era equivalente a ter alguém a segurar-nos de modo a impedir qualquer movimento da nossa parte?! Aposto que ficava com má fama até ao final da minha vida... uns 20 anos. Ao fim de poucos segundos, o cheiro a fumo, a quantidade de gente a gritar e a fugir causou-me imensa confusão. Comecei a chorar e tentei soltar-me para procurar a Clara.
- Calma, calma! Pronto, eu vou lá buscá-la. É a senhora que estava mascarada de princesa, não era? Eu vou procurá-la, mas fique aqui!
- Eu fico. Despache-se!!
- Só depois de me prometer que não sai daqui a menos que o fogo venha nesta direcção! Prometa-me!
- Prometo, vá lá, está prometido! Ó homem despache-se!!
E lá fiquei eu a roer as unhas e a desejar que ninguém estivesse a olhar para poder roer as dos pés também. As coisas desenrolavam-se lentamente, como se eu pudesse ver a imagem num tempo estendido... as labaredas tentavam fugir pelos vidros estilhaçados, as pessoas gritavam por água e pediam mais baldes, a noite estrelada permanecia impávida por cima das nossas cabeças. Sentia-me à parte de tudo, o som chegava longe e parecia que os meus olhos não detectavam o movimento imediato. Tentava pensar na Clara, ao mesmo tempo que procurava o meu pai na multidão, apesar de ter a certeza que ele estava a salvo. No meio desta realidade sonhada, senti-me abanada quando ouvi um chamamento que conhecia há anos... Vi-o finalmente e corri para ele: "Pai, pai, pai!!!". Fiquei ali a abraçá-lo enquanto toda a gente acorria com baldes, a gritar ordens e num esforço conjunto para apagar o imenso fogo que projectava as nossas silhuetas tremidas num laranja vivo.
(continua)
quarta-feira, janeiro 09, 2008
Fairy Tale III: o João
O João chegou com o cheiro a sal. O meu pai nunca aceitou nenhum dos meus vários pedidos para ver o mar. Dizia o que o diabo se escondia nas profundezas dos oceanos. Eu acho que o diabo não se ia sentir bem no mar, imagino-o sempre de tridente em punho e rodeado de fogo. Dentro de água, a modos que fica um pouco apagado, não? A deitar um fiozinho de fumo e a cheirar a porco queimado?... Confesso que nunca entrei nesta discussão com o meu pai, se o diabo vive na água tudo bem, eu também não gosto muito de tomar banho.
Mas voltando ao sal, chegada dos heróis do novo mundo era sempre um grande reboliço cá no reino, primeiro porque era raro voltarem e depois porque vinha o João Carlos Figueira de Sebastião e Melo na comitiva, o ladrão tornado herói que mais suspiros arrancava às damas. Roubava tudo o que encontrava (incluindo a mulher alheia), até que foi preso e enviado para conquistar terras do novo mundo sob forma de perdão. Tornou-se então num herói muito popular e era dos nossos conquistadores melhor sucedidos, literalmente.
Eu estava muito curiosa, não só porque era a princesa e, portanto, ia recebê-lo no castelo e jantar com ele, mas também porque as minhas aias estavam tão delirantes que não paravam de desmaiar porque tinham o corpete demasiado apertado. E eis que foi o delírio total quando ele chegou, finalmente, às portas do castelo. O João era de facto um homem lindíssimo, tinha uma pele dourada como eu nunca tinha visto, era muito alto e musculado, parecia quase do tamanho do cavalo. Acabei por perceber que ele tinha um certo charme por si só, as senhoras (casadas ou não) suspiravam quando ele passava (mesmo a vários metros) e os respectivos maridos ou interessados faziam cara feia e rosnavam ameaças, mesmo quando ele não dizia nada. Na minha cabeça soava um intermitente “ena, uau, ena”.
Depois de nos sentarmos à mesa, entendi que o sr Melo não tinha uma linguagem lá muito desenvolvida. Era incapaz de manter uma conversa minimamente decente, mas tinha histórias fabulosas para contar. Fiquei com imensa vontade de conhecer o mundo para além mar, quer dizer, para começar talvez fosse melhor ver primeiro o mar e as suas tempestades. No final do jantar, lá tentei aproximar-me dele, apesar de ter que furar caminho por entre as minhas próprias aias (e sabe Deus como isso é difícil com estas saias!). Lá consegui chegar perto do homem e quase me esqueci do que tinha para dizer, ele era mesmo bonito! Depois de reunida muita concentração, disse-lhe que gostava muito que ele me acompanhasse num passeio no dia seguinte. Ele acenou que sim, mas que eu tinha que levar as minhas lindas aias para nos acompanharem! Houve um suspiro colectivo tremendamente alto e, desta vez, fui só eu que me senti ofendida.
Na manhã seguinte, estava super entusiasmada com a ideia de rever o João, mas sem vontade nenhuma de partilhar a atenção dele com as minhas aias. Ainda por cima, cada uma delas parecia-me particularmente bonita naquele dia. Lá reuni coragem e saí com aquele bando de galinhas até ao pátio. O João chegou com uma hora de atraso, o que ia provocando um ataque de histerismo em grupo. Vinha bastante ofegante e descomposto, mas com um sorriso pronto nos lábios que nos fez arrumar todas e quaisquer perguntas acerca do atraso. Eu tinha a carruagem pronta para o passeio (tinha pensado ir até perto do mar), mas os meus planos foram por água abaixo porque ele insistia que não tínhamos que sair do castelo, que os jardins eram lindos e que ele não os conhecia. Insistiu tanto que lá voltámos para trás, a contragosto.
O passeio até estava a correr bem e, apesar dele repartir a atenção pelo mulherio todo, falava mais vezes comigo. Descobri que ser princesa podia trazer-me a vantagem de ter a atenção de homens deslumbrantes que, de outro modo, nunca olhariam para mim duas vezes. A dado momento, ele perguntou-me se podia falar a sós comigo e afastámo-nos um pouco do grupo suspirante. Eu estava com um certo receio da escolha de palavras dele porque decoro não era sinceramente o forte do João, mas até achei que ele se estava a esforçar durante o passeio.
- Sabe, isto de ser aventureiro é óptimo! Conhecemos imensas coisas, nomeadamente mulheres que é o que mais nos interessa longe de casa, sabe?
- Hum... - acenei ligeiramente com a cabeça sem saber muito bem o que devia dizer.
- As pessoas respeitam-nos! Mas também há aquela altura da vida em que um homem tem que assentar, percebe? E eu gostava de assentar o mais rapidamente possível! E de preferência com uma...
- Uma...?
Não tive tempo para ouvir o resto do que ele queria dizer porque entrou um homem esbaforido, a correr na nossa direcção, e trazia um machado com ele. Assim que o João o viu, desatou a fugir. Eu fiquei parada, sem saber o que fazer e só quando ouvi: “afaste-se princesa! Anda cá meu sacana!! Agora já não tem piada meteres-te com as mulheres dos outros, não é??” é que entendi o que se passava e desatei a correr atrás do homem a pedir-lhe que se acalmasse em nome do rei. Atrás de nós seguiam mais alguns homens que se tinham juntado ao coro de indignados e que eram, por sua vez, seguidos pelas minhas aias chorosas e a gritar alto para não fazerem mal ao sr. João. Não sei se consigo explicar a confusão que se seguiu, mas a Clara disse-me que estava a estender roupa e que viu o João a correr como se a vida dele dependesse disso (e realmente dependia) e uma procissão afogueada atrás dele. O grupo de homens vociferava: “anda cá meu traste!”, “ai se não fossem as senhoras aqui!”, “agora já não te chegas perto, não é?”, “pára de correr!!”, “eu já te mostro o que é ser homem!!”, tinham as caras bem vermelhas de cólera, mas também do esforço da maratona. Um pouco mais atrás, o grupo de mulheres gritava chorosamente por piedade, perdão e outras coisas: "se calhar são vocês que não dão conta do recado!", "faz-me um filho!", "deixem lá o homem em paz", "ó Joaquim, perdoa-me!", no intervalo de muita arfadela à custa dos corpetes. Estávamos todos a correr em círculo porque os jardins eram grandes, mas tinham os seus limites e o João tinha literalmente fogo no rabo. Continuámos nisto até que perdemos todos o fôlego, menos o João que tinha mais razões para correr do que nós e que escapou. Acho que este episódio vai ser daquelas histórias que vai “correr” de boca em boca as futuras gerações.
Seguiu-se uma audiência com o meu pai, onde foram contabilizadas cerca de trinta traições, o que eu achei fenomenal porque o João tinha chegado no dia anterior. Alguns homens queriam que o papa lhes concedesse o anulamento do casamento, outros queriam ter o direito a casar de novo com outra mulher, outros queriam simplesmente linchar o João. As mulheres casadas ou prometidas pediam perdão, outras choravam pelo amante fugido e outras tantas fungavam de pena porque ele nunca tinha chegado a tocar-lhes sequer (eu confesso que me sentia mais inclinada para este grupo). A Clara divertia-se à grande com a confusão instalada e o meu pai decidiu, ao saber da existência de 32 bastardos até ao momento, enviar a tropa real atrás do João, apesar dos protestos femininos. Ninguém arredou pé da sala do trono (excepto para usar as latrinas) até que o capitão da guarda real reentrou no castelo e anunciou que o João tinha embarcado numa nau que tinha partido naquela tarde. As notícias trouxeram um misto de reacções, houve suspiros de alívio, asneiras de quem se sentia por vingar e eu confesso que me juntei à Clara, por fim, a rir que nem uma perdida. Jantámos um pouco mais tarde do que o costume e com muitos convidados à mesa. A pouco e pouco fomos bebendo e esquecendo o João e a confusão que ele tinha criado em dois dias.
A parte mais chata é que passados nove meses tivemos dificuldade em encontrar parteiras para atender a todos os pedidos, mas graças ao João (o que lhe valeu outro perdão real), o reino rejuvenesceu e nasceram mais bebés naquele ano do que em todos os que se seguiram.
Mas voltando ao sal, chegada dos heróis do novo mundo era sempre um grande reboliço cá no reino, primeiro porque era raro voltarem e depois porque vinha o João Carlos Figueira de Sebastião e Melo na comitiva, o ladrão tornado herói que mais suspiros arrancava às damas. Roubava tudo o que encontrava (incluindo a mulher alheia), até que foi preso e enviado para conquistar terras do novo mundo sob forma de perdão. Tornou-se então num herói muito popular e era dos nossos conquistadores melhor sucedidos, literalmente.
Eu estava muito curiosa, não só porque era a princesa e, portanto, ia recebê-lo no castelo e jantar com ele, mas também porque as minhas aias estavam tão delirantes que não paravam de desmaiar porque tinham o corpete demasiado apertado. E eis que foi o delírio total quando ele chegou, finalmente, às portas do castelo. O João era de facto um homem lindíssimo, tinha uma pele dourada como eu nunca tinha visto, era muito alto e musculado, parecia quase do tamanho do cavalo. Acabei por perceber que ele tinha um certo charme por si só, as senhoras (casadas ou não) suspiravam quando ele passava (mesmo a vários metros) e os respectivos maridos ou interessados faziam cara feia e rosnavam ameaças, mesmo quando ele não dizia nada. Na minha cabeça soava um intermitente “ena, uau, ena”.
Depois de nos sentarmos à mesa, entendi que o sr Melo não tinha uma linguagem lá muito desenvolvida. Era incapaz de manter uma conversa minimamente decente, mas tinha histórias fabulosas para contar. Fiquei com imensa vontade de conhecer o mundo para além mar, quer dizer, para começar talvez fosse melhor ver primeiro o mar e as suas tempestades. No final do jantar, lá tentei aproximar-me dele, apesar de ter que furar caminho por entre as minhas próprias aias (e sabe Deus como isso é difícil com estas saias!). Lá consegui chegar perto do homem e quase me esqueci do que tinha para dizer, ele era mesmo bonito! Depois de reunida muita concentração, disse-lhe que gostava muito que ele me acompanhasse num passeio no dia seguinte. Ele acenou que sim, mas que eu tinha que levar as minhas lindas aias para nos acompanharem! Houve um suspiro colectivo tremendamente alto e, desta vez, fui só eu que me senti ofendida.
Na manhã seguinte, estava super entusiasmada com a ideia de rever o João, mas sem vontade nenhuma de partilhar a atenção dele com as minhas aias. Ainda por cima, cada uma delas parecia-me particularmente bonita naquele dia. Lá reuni coragem e saí com aquele bando de galinhas até ao pátio. O João chegou com uma hora de atraso, o que ia provocando um ataque de histerismo em grupo. Vinha bastante ofegante e descomposto, mas com um sorriso pronto nos lábios que nos fez arrumar todas e quaisquer perguntas acerca do atraso. Eu tinha a carruagem pronta para o passeio (tinha pensado ir até perto do mar), mas os meus planos foram por água abaixo porque ele insistia que não tínhamos que sair do castelo, que os jardins eram lindos e que ele não os conhecia. Insistiu tanto que lá voltámos para trás, a contragosto.
O passeio até estava a correr bem e, apesar dele repartir a atenção pelo mulherio todo, falava mais vezes comigo. Descobri que ser princesa podia trazer-me a vantagem de ter a atenção de homens deslumbrantes que, de outro modo, nunca olhariam para mim duas vezes. A dado momento, ele perguntou-me se podia falar a sós comigo e afastámo-nos um pouco do grupo suspirante. Eu estava com um certo receio da escolha de palavras dele porque decoro não era sinceramente o forte do João, mas até achei que ele se estava a esforçar durante o passeio.
- Sabe, isto de ser aventureiro é óptimo! Conhecemos imensas coisas, nomeadamente mulheres que é o que mais nos interessa longe de casa, sabe?
- Hum... - acenei ligeiramente com a cabeça sem saber muito bem o que devia dizer.
- As pessoas respeitam-nos! Mas também há aquela altura da vida em que um homem tem que assentar, percebe? E eu gostava de assentar o mais rapidamente possível! E de preferência com uma...
- Uma...?
Não tive tempo para ouvir o resto do que ele queria dizer porque entrou um homem esbaforido, a correr na nossa direcção, e trazia um machado com ele. Assim que o João o viu, desatou a fugir. Eu fiquei parada, sem saber o que fazer e só quando ouvi: “afaste-se princesa! Anda cá meu sacana!! Agora já não tem piada meteres-te com as mulheres dos outros, não é??” é que entendi o que se passava e desatei a correr atrás do homem a pedir-lhe que se acalmasse em nome do rei. Atrás de nós seguiam mais alguns homens que se tinham juntado ao coro de indignados e que eram, por sua vez, seguidos pelas minhas aias chorosas e a gritar alto para não fazerem mal ao sr. João. Não sei se consigo explicar a confusão que se seguiu, mas a Clara disse-me que estava a estender roupa e que viu o João a correr como se a vida dele dependesse disso (e realmente dependia) e uma procissão afogueada atrás dele. O grupo de homens vociferava: “anda cá meu traste!”, “ai se não fossem as senhoras aqui!”, “agora já não te chegas perto, não é?”, “pára de correr!!”, “eu já te mostro o que é ser homem!!”, tinham as caras bem vermelhas de cólera, mas também do esforço da maratona. Um pouco mais atrás, o grupo de mulheres gritava chorosamente por piedade, perdão e outras coisas: "se calhar são vocês que não dão conta do recado!", "faz-me um filho!", "deixem lá o homem em paz", "ó Joaquim, perdoa-me!", no intervalo de muita arfadela à custa dos corpetes. Estávamos todos a correr em círculo porque os jardins eram grandes, mas tinham os seus limites e o João tinha literalmente fogo no rabo. Continuámos nisto até que perdemos todos o fôlego, menos o João que tinha mais razões para correr do que nós e que escapou. Acho que este episódio vai ser daquelas histórias que vai “correr” de boca em boca as futuras gerações.
Seguiu-se uma audiência com o meu pai, onde foram contabilizadas cerca de trinta traições, o que eu achei fenomenal porque o João tinha chegado no dia anterior. Alguns homens queriam que o papa lhes concedesse o anulamento do casamento, outros queriam ter o direito a casar de novo com outra mulher, outros queriam simplesmente linchar o João. As mulheres casadas ou prometidas pediam perdão, outras choravam pelo amante fugido e outras tantas fungavam de pena porque ele nunca tinha chegado a tocar-lhes sequer (eu confesso que me sentia mais inclinada para este grupo). A Clara divertia-se à grande com a confusão instalada e o meu pai decidiu, ao saber da existência de 32 bastardos até ao momento, enviar a tropa real atrás do João, apesar dos protestos femininos. Ninguém arredou pé da sala do trono (excepto para usar as latrinas) até que o capitão da guarda real reentrou no castelo e anunciou que o João tinha embarcado numa nau que tinha partido naquela tarde. As notícias trouxeram um misto de reacções, houve suspiros de alívio, asneiras de quem se sentia por vingar e eu confesso que me juntei à Clara, por fim, a rir que nem uma perdida. Jantámos um pouco mais tarde do que o costume e com muitos convidados à mesa. A pouco e pouco fomos bebendo e esquecendo o João e a confusão que ele tinha criado em dois dias.
A parte mais chata é que passados nove meses tivemos dificuldade em encontrar parteiras para atender a todos os pedidos, mas graças ao João (o que lhe valeu outro perdão real), o reino rejuvenesceu e nasceram mais bebés naquele ano do que em todos os que se seguiram.
segunda-feira, janeiro 07, 2008
Fairy Tale II: O Bernardo
Eu e a Clara estávamos extasiadas para conhecer o pretendente Bernardo. Este senhor tinha enviado a carta mais rococó de que há memória neste reino. Uns floreados incríveis que me levaram três dias para identificar apenas a primeira letra da carta. Decidimos logo que eu nunca me poderia casar com alguém chamado Bernardo de Santa Maria Vasconcelos e Melo da Silva Rodrigues e Pereira. No entanto, o meu pai estava maravilhado por saber que o senhor era rico e tinha um caso de gémeos na família, alguma tia em terceiro ou quarto grau. Assim que ele chegou, confesso que me faltou o ar. A minha ideia de alguém com aquele nome era pelo menos uma certa dose de cabelos brancos, uma barriga de gestação de 14 meses e um falar muito afectado, além de sapatos com o bico enrolado, o que está completamente fora de moda!!
Qual o meu espanto (só o meu, a Clara continuou impassível) quando entrou um moço novo no castelo, galante e que se apresentou como sendo o esperado Bernardo. Eu confesso que arregalei os olhos quando vi que não lhe faltava um dente sequer! Tinha olhos da cor dos meus e cabelo louro ligeiramente ondulado. "Uau!" exclamou a minha vozinha interior. Passei a tarde a sorver tudo o que ele dizia, apesar de não perceber metade. Efectivamente tínhamo-nos enganado porque o Bernardo não tinha voz nasalada, mas era "sopinha de massa" e cuspia ligeiramente tudo o que estava num raio de cinco dedos. Eu estava maravilhada e limpava gentilmente as pequenas gotículas de saliva que teimavam em atravessar a mesa que nos separava.
No final da tarde, o meu pai convidou-o a conhecer o jardim comigo e com as minhas aias. Conseguia ouvir as três a suspirar a cada palavra sem "s" pronunciada naquela voz melosa. Quando começava alguma sucessão de palavras "difíceis", cada uma delas levantava ligeiramente o leque e emitia um risinho nervoso e extremamente irritante. Eu fingia que o ouvia porque nem conseguia concentrar-me, tal era a certeza que estava ali a minha alma gémea. A Clara insistia que havia algo de errado e eu dizia-lhe que ela não estava habituada a ter menos atenção que eu! Que este era o meu cavaleiro andante! Já tinha pedido a minha mão em casamento sem olhar para mais nenhuma dama. Eu estava convencida do amor eterno que sentia pelo Bernardo e até andava a praticar o meu nome acabado em "...Silva Rodrigues e Pereira". A única coisa que me preocupava era se no dia do casamento ele tinha que dizer o nome completo virado para mim... o "Santa" e "Silva" causavam-me alguma inquietação já que não podia levar o leque.
A poucos dias da boda e com o castelo em alvoroço, eu dormia cada vez menos com tanta excitação. Quando a costureira me trouxe o vestido de noiva, não fui capaz de o despir e fartei-me de rodopiar pelo quarto a sentir-me a mulher mais bonita do mundo. Durou até a Clara começar com um questionário: "mas ele já tentou agarrar a tua mão?", "beijar-te?", "aproximar-se de ti?". Revi mentalmente os últimos dois meses e realmente não havia qualquer indício de tentativa de proximidade, mas isso era decerto porque ele era muito pudico, apressei-me a explicar. Fiquei a moer nas perguntas da Clara e, como não tinha sono, resolvi dar um passeio nocturno para arejar. Já cá fora, ouvi umas vozes "oh meu amor, que bom é sentir-te novamente!".. chuac... chuac... "Xiu, vem aí alguém!". Eu estava acostumada aos encontros nocturnos e “secretos” da gente do palácio (visto toda a gente parecer ter vida privada menos eu), portanto não liguei. No entanto, conforme me afastava, algo me dizia que não devia ir já para o quarto. Simulei os passos para a saída, descalcei-me e lá voltei eu, vestida de noiva, sem fazer barulho para me esconder atrás de um pilar. Esperei que a conversa retomasse: "Como é possível que não acredites no que sinto depois de tudo o que estou a fazer para estar mais perto de ti?"
Soou um alarme cá dentro... aquela voz era demasiado familiar. Tentei sair do pátio porque já não queria ouvir mais nada, mas parei quando senti que as duas figuras caminhavam na minha direcção. Encolhi-me o mais possível e sustive a respiração. "Sabes que o rei espera descendência rápida, não sabes?", "Sei sim, não me fala noutra coisa... já nem sei que mais fazer para manter a distância dele e da filha dele, qualquer dia fico com a boca seca de tanto cuspir!". Foi a gota de água! "BERNARDO!!!" - gritei a plenos pulmões. A Clara apareceu vinda não sei de onde com uma tocha e metade das pessoas da casa acudiram à varanda para não perder o espectáculo. Aí estava eu, descalça, vestida de noiva, a chorar q nem um bebé e, agora sim, a cuspir a cara do meu ex-noivo com lágrimas, saliva e outros fluidos corporais que saem do nariz: "COMO FOSTE CAPAZ? EU FARIA TUDO POR TI! E... TU TRAIS-ME COM.... O LUÍS????"...
Não vale a pena entrar em detalhes sobre o que se passou em seguida. E assim acabou o meu noivado com o Bernardo, o homem dos perdigotos conscientes.
Qual o meu espanto (só o meu, a Clara continuou impassível) quando entrou um moço novo no castelo, galante e que se apresentou como sendo o esperado Bernardo. Eu confesso que arregalei os olhos quando vi que não lhe faltava um dente sequer! Tinha olhos da cor dos meus e cabelo louro ligeiramente ondulado. "Uau!" exclamou a minha vozinha interior. Passei a tarde a sorver tudo o que ele dizia, apesar de não perceber metade. Efectivamente tínhamo-nos enganado porque o Bernardo não tinha voz nasalada, mas era "sopinha de massa" e cuspia ligeiramente tudo o que estava num raio de cinco dedos. Eu estava maravilhada e limpava gentilmente as pequenas gotículas de saliva que teimavam em atravessar a mesa que nos separava.
No final da tarde, o meu pai convidou-o a conhecer o jardim comigo e com as minhas aias. Conseguia ouvir as três a suspirar a cada palavra sem "s" pronunciada naquela voz melosa. Quando começava alguma sucessão de palavras "difíceis", cada uma delas levantava ligeiramente o leque e emitia um risinho nervoso e extremamente irritante. Eu fingia que o ouvia porque nem conseguia concentrar-me, tal era a certeza que estava ali a minha alma gémea. A Clara insistia que havia algo de errado e eu dizia-lhe que ela não estava habituada a ter menos atenção que eu! Que este era o meu cavaleiro andante! Já tinha pedido a minha mão em casamento sem olhar para mais nenhuma dama. Eu estava convencida do amor eterno que sentia pelo Bernardo e até andava a praticar o meu nome acabado em "...Silva Rodrigues e Pereira". A única coisa que me preocupava era se no dia do casamento ele tinha que dizer o nome completo virado para mim... o "Santa" e "Silva" causavam-me alguma inquietação já que não podia levar o leque.
A poucos dias da boda e com o castelo em alvoroço, eu dormia cada vez menos com tanta excitação. Quando a costureira me trouxe o vestido de noiva, não fui capaz de o despir e fartei-me de rodopiar pelo quarto a sentir-me a mulher mais bonita do mundo. Durou até a Clara começar com um questionário: "mas ele já tentou agarrar a tua mão?", "beijar-te?", "aproximar-se de ti?". Revi mentalmente os últimos dois meses e realmente não havia qualquer indício de tentativa de proximidade, mas isso era decerto porque ele era muito pudico, apressei-me a explicar. Fiquei a moer nas perguntas da Clara e, como não tinha sono, resolvi dar um passeio nocturno para arejar. Já cá fora, ouvi umas vozes "oh meu amor, que bom é sentir-te novamente!".. chuac... chuac... "Xiu, vem aí alguém!". Eu estava acostumada aos encontros nocturnos e “secretos” da gente do palácio (visto toda a gente parecer ter vida privada menos eu), portanto não liguei. No entanto, conforme me afastava, algo me dizia que não devia ir já para o quarto. Simulei os passos para a saída, descalcei-me e lá voltei eu, vestida de noiva, sem fazer barulho para me esconder atrás de um pilar. Esperei que a conversa retomasse: "Como é possível que não acredites no que sinto depois de tudo o que estou a fazer para estar mais perto de ti?"
Soou um alarme cá dentro... aquela voz era demasiado familiar. Tentei sair do pátio porque já não queria ouvir mais nada, mas parei quando senti que as duas figuras caminhavam na minha direcção. Encolhi-me o mais possível e sustive a respiração. "Sabes que o rei espera descendência rápida, não sabes?", "Sei sim, não me fala noutra coisa... já nem sei que mais fazer para manter a distância dele e da filha dele, qualquer dia fico com a boca seca de tanto cuspir!". Foi a gota de água! "BERNARDO!!!" - gritei a plenos pulmões. A Clara apareceu vinda não sei de onde com uma tocha e metade das pessoas da casa acudiram à varanda para não perder o espectáculo. Aí estava eu, descalça, vestida de noiva, a chorar q nem um bebé e, agora sim, a cuspir a cara do meu ex-noivo com lágrimas, saliva e outros fluidos corporais que saem do nariz: "COMO FOSTE CAPAZ? EU FARIA TUDO POR TI! E... TU TRAIS-ME COM.... O LUÍS????"...
Não vale a pena entrar em detalhes sobre o que se passou em seguida. E assim acabou o meu noivado com o Bernardo, o homem dos perdigotos conscientes.
sábado, janeiro 05, 2008
Fairy Tale, I
Bem, eu sou uma princesa. Talvez não seja exactamente aquilo que se espera de uma princesa, mas o meu pai é rei, eu sou mimada, temos o nosso pequeno reino e nunca me aventurei para lá das muralhas. Até tenho longos cabelos encaracolados e olhos claros. Quer dizer, os longos caracóis pretos que tenho caídos nas costas são, na verdade, uma peruca. Não é que tenha ficado careca desde que nasci, mas tenho que rapar o cabelo por causa dos piolhos. Na verdade adoro a sensação de frescura quando tiro a peruca antes de me deitar, acredito que um dia as princesas vão poder ter cabelo curto. O meu pai diz que eu só vaticino disparates, mas eu cá tenho as minhas ideias.
Porque é que eu nunca saí das muralhas em vinte e três anos? Bem, para começar, o meu pai sempre me disse que fora das muralhas vivem dragões e gigantes. Eu nunca vi nenhum e não conheço ninguém que tenha visto, começo a achar que ele me pregou a peta do século logo a seguir à fada dos dentes, mas pelo sim pelo não... Além disso, nunca me contaram a história de nenhuma princesa de espada em punho a matar dragões, são sempre os cavaleiros, montados em belos cavalos brancos, que fazem as coisas que sujam mais (incluindo à mesa). Mas se os dragões existirem, espero que nenhum deles goste de carne mal passada... Por falar em cavaleiros, do lado de lá também estão homens e confesso que esta coisa toda dos pretendentes me amedronta um bocado, especialmente porque o meu pai já construiu três alas diferentes para a futura descendência e acha que o facto de eu permanecer solteira é pura e simplesmente a hecatombe que se seguiu ao aparecimento do Robin dos Bosques.
É claro que tenho vários pretendentes, não pelos meus lindos olhos mas basicamente porque sou rica e tenho um título de rei para "oferecer", por assim dizer. Ultimamente, com o vai e vem de pretendentes, apercebi-me que estou na curva descendente da nossa esperança média de vida. Não é que me sinta mais velha, mas não tenho muitos mais anos por viver. Os pretendentes é que são sempre mais do mesmo. Nobres que não têm onde cair mortos e se fingem interessadíssimos numa pessoa que nunca viram antes e tão pouco tentaram perceber como reconhecer-me antes de chegar (as minhas actuais três aias têm uma certa colecção de declarações à custa desses senhores e uma ex-aia casou mesmo!). Os que têm dinheiro, vêm à procura de uma bela donzela... e quando me vêem, demoram-se menos do que o conselheiro quando vem pedir fiado para pagar as dívidas de jogo e é corrido pela mulher à vassourada (ela é a cozinheira do castelo e já se sabe, as paredes têm ouvidos).
A minha maior ajuda no campo de despachar os pretendentes, sem que o meu pai tenha tempo de exercer o seu poder paternal, é a Clara. A Clara é uma criadita negra da minha idade que o meu pai encontrou à porta da nossa casa quando eu também era bebé. A minha mãe morreu na noite em que a Clara chegou e o meu pai interpretou isso como um sinal. Eu e a Clara crescemos juntas e, apesar da diferença abismal da minha "educação" e da dela, somos praticamente irmãs. A Clara não é bem negra, tal como o nome indica. Vê-se claramente que alguns dos conquistadores do novo mundo estão a ser também eles conquistados pelos "povos inferiores". Provavelmente a Clara tem mais educação que eu, não sabe tocar piano nem ler, mas sabe comportar-se melhor na presença das visitas, tem coragem para sair do castelo e tem uma pose que não deixa nenhum homem indiferente. Costuma andar com o traje de criada que eu invejo a cada segundo. Vestidos práticos a lembrar-me constantemente do corpete apertado e daquela monstruosa armação de madeira para dar roda à saia. Essa mesmo construção que nos impede de sentar comodamente, ocupar apenas um lugar no balcão do teatro, aproximar-nos de alguém ou até entrar numa porta mais apertada.
Além de ser a minha melhor amiga, a Clara é a mais bela moça dentro das muralhas do castelo e, provavelmente, do reino. Não é que ela fizesse por se mostrar, todos os dias aparecia vestida da mesma maneira, com as duas tranças caídas e aqueles olhos verdes enormes. Ela não andava... dançava no ar! Eu divertia-me a ver a cara do meu pai enquanto os pretendentes se declaravam e nem olhavam para mim, não desviavam o olhar da Clara desde que ela entrava até sair do salão! Os mais ousados pediam-me para aparecer nalgum baile e faziam questão de notar que as nossas criadas também estavam convidadas para ajudar à festa! Enfim, com a ajuda da Clara consegui despachar todos os pretendentes que quis... os muito velhos, os muito gordos, os muito altos ou demasiado baixos, os demasiado chatos ou demasiado inteligentes. Afinal, ler uma página inteira de um livro ainda era tarefa capaz de me ocupar um dia. E felizmente, o meu pai não precisava de me fazer nenhum casamento por conveniência.
Porem, três dos meus vários pretendentes conseguiram desviar-nos da rotina no castelo: o Bernardo, o João e o Pedro. Apareceram assim... por ordem alfabética e tudo!
Porque é que eu nunca saí das muralhas em vinte e três anos? Bem, para começar, o meu pai sempre me disse que fora das muralhas vivem dragões e gigantes. Eu nunca vi nenhum e não conheço ninguém que tenha visto, começo a achar que ele me pregou a peta do século logo a seguir à fada dos dentes, mas pelo sim pelo não... Além disso, nunca me contaram a história de nenhuma princesa de espada em punho a matar dragões, são sempre os cavaleiros, montados em belos cavalos brancos, que fazem as coisas que sujam mais (incluindo à mesa). Mas se os dragões existirem, espero que nenhum deles goste de carne mal passada... Por falar em cavaleiros, do lado de lá também estão homens e confesso que esta coisa toda dos pretendentes me amedronta um bocado, especialmente porque o meu pai já construiu três alas diferentes para a futura descendência e acha que o facto de eu permanecer solteira é pura e simplesmente a hecatombe que se seguiu ao aparecimento do Robin dos Bosques.
É claro que tenho vários pretendentes, não pelos meus lindos olhos mas basicamente porque sou rica e tenho um título de rei para "oferecer", por assim dizer. Ultimamente, com o vai e vem de pretendentes, apercebi-me que estou na curva descendente da nossa esperança média de vida. Não é que me sinta mais velha, mas não tenho muitos mais anos por viver. Os pretendentes é que são sempre mais do mesmo. Nobres que não têm onde cair mortos e se fingem interessadíssimos numa pessoa que nunca viram antes e tão pouco tentaram perceber como reconhecer-me antes de chegar (as minhas actuais três aias têm uma certa colecção de declarações à custa desses senhores e uma ex-aia casou mesmo!). Os que têm dinheiro, vêm à procura de uma bela donzela... e quando me vêem, demoram-se menos do que o conselheiro quando vem pedir fiado para pagar as dívidas de jogo e é corrido pela mulher à vassourada (ela é a cozinheira do castelo e já se sabe, as paredes têm ouvidos).
A minha maior ajuda no campo de despachar os pretendentes, sem que o meu pai tenha tempo de exercer o seu poder paternal, é a Clara. A Clara é uma criadita negra da minha idade que o meu pai encontrou à porta da nossa casa quando eu também era bebé. A minha mãe morreu na noite em que a Clara chegou e o meu pai interpretou isso como um sinal. Eu e a Clara crescemos juntas e, apesar da diferença abismal da minha "educação" e da dela, somos praticamente irmãs. A Clara não é bem negra, tal como o nome indica. Vê-se claramente que alguns dos conquistadores do novo mundo estão a ser também eles conquistados pelos "povos inferiores". Provavelmente a Clara tem mais educação que eu, não sabe tocar piano nem ler, mas sabe comportar-se melhor na presença das visitas, tem coragem para sair do castelo e tem uma pose que não deixa nenhum homem indiferente. Costuma andar com o traje de criada que eu invejo a cada segundo. Vestidos práticos a lembrar-me constantemente do corpete apertado e daquela monstruosa armação de madeira para dar roda à saia. Essa mesmo construção que nos impede de sentar comodamente, ocupar apenas um lugar no balcão do teatro, aproximar-nos de alguém ou até entrar numa porta mais apertada.
Além de ser a minha melhor amiga, a Clara é a mais bela moça dentro das muralhas do castelo e, provavelmente, do reino. Não é que ela fizesse por se mostrar, todos os dias aparecia vestida da mesma maneira, com as duas tranças caídas e aqueles olhos verdes enormes. Ela não andava... dançava no ar! Eu divertia-me a ver a cara do meu pai enquanto os pretendentes se declaravam e nem olhavam para mim, não desviavam o olhar da Clara desde que ela entrava até sair do salão! Os mais ousados pediam-me para aparecer nalgum baile e faziam questão de notar que as nossas criadas também estavam convidadas para ajudar à festa! Enfim, com a ajuda da Clara consegui despachar todos os pretendentes que quis... os muito velhos, os muito gordos, os muito altos ou demasiado baixos, os demasiado chatos ou demasiado inteligentes. Afinal, ler uma página inteira de um livro ainda era tarefa capaz de me ocupar um dia. E felizmente, o meu pai não precisava de me fazer nenhum casamento por conveniência.
Porem, três dos meus vários pretendentes conseguiram desviar-nos da rotina no castelo: o Bernardo, o João e o Pedro. Apareceram assim... por ordem alfabética e tudo!
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