quarta-feira, janeiro 09, 2008

Fairy Tale III: o João

O João chegou com o cheiro a sal. O meu pai nunca aceitou nenhum dos meus vários pedidos para ver o mar. Dizia o que o diabo se escondia nas profundezas dos oceanos. Eu acho que o diabo não se ia sentir bem no mar, imagino-o sempre de tridente em punho e rodeado de fogo. Dentro de água, a modos que fica um pouco apagado, não? A deitar um fiozinho de fumo e a cheirar a porco queimado?... Confesso que nunca entrei nesta discussão com o meu pai, se o diabo vive na água tudo bem, eu também não gosto muito de tomar banho.

Mas voltando ao sal, chegada dos heróis do novo mundo era sempre um grande reboliço cá no reino, primeiro porque era raro voltarem e depois porque vinha o João Carlos Figueira de Sebastião e Melo na comitiva, o ladrão tornado herói que mais suspiros arrancava às damas. Roubava tudo o que encontrava (incluindo a mulher alheia), até que foi preso e enviado para conquistar terras do novo mundo sob forma de perdão. Tornou-se então num herói muito popular e era dos nossos conquistadores melhor sucedidos, literalmente.

Eu estava muito curiosa, não só porque era a princesa e, portanto, ia recebê-lo no castelo e jantar com ele, mas também porque as minhas aias estavam tão delirantes que não paravam de desmaiar porque tinham o corpete demasiado apertado. E eis que foi o delírio total quando ele chegou, finalmente, às portas do castelo. O João era de facto um homem lindíssimo, tinha uma pele dourada como eu nunca tinha visto, era muito alto e musculado, parecia quase do tamanho do cavalo. Acabei por perceber que ele tinha um certo charme por si só, as senhoras (casadas ou não) suspiravam quando ele passava (mesmo a vários metros) e os respectivos maridos ou interessados faziam cara feia e rosnavam ameaças, mesmo quando ele não dizia nada. Na minha cabeça soava um intermitente “ena, uau, ena”.

Depois de nos sentarmos à mesa, entendi que o sr Melo não tinha uma linguagem lá muito desenvolvida. Era incapaz de manter uma conversa minimamente decente, mas tinha histórias fabulosas para contar. Fiquei com imensa vontade de conhecer o mundo para além mar, quer dizer, para começar talvez fosse melhor ver primeiro o mar e as suas tempestades. No final do jantar, lá tentei aproximar-me dele, apesar de ter que furar caminho por entre as minhas próprias aias (e sabe Deus como isso é difícil com estas saias!). Lá consegui chegar perto do homem e quase me esqueci do que tinha para dizer, ele era mesmo bonito! Depois de reunida muita concentração, disse-lhe que gostava muito que ele me acompanhasse num passeio no dia seguinte. Ele acenou que sim, mas que eu tinha que levar as minhas lindas aias para nos acompanharem! Houve um suspiro colectivo tremendamente alto e, desta vez, fui só eu que me senti ofendida.

Na manhã seguinte, estava super entusiasmada com a ideia de rever o João, mas sem vontade nenhuma de partilhar a atenção dele com as minhas aias. Ainda por cima, cada uma delas parecia-me particularmente bonita naquele dia. Lá reuni coragem e saí com aquele bando de galinhas até ao pátio. O João chegou com uma hora de atraso, o que ia provocando um ataque de histerismo em grupo. Vinha bastante ofegante e descomposto, mas com um sorriso pronto nos lábios que nos fez arrumar todas e quaisquer perguntas acerca do atraso. Eu tinha a carruagem pronta para o passeio (tinha pensado ir até perto do mar), mas os meus planos foram por água abaixo porque ele insistia que não tínhamos que sair do castelo, que os jardins eram lindos e que ele não os conhecia. Insistiu tanto que lá voltámos para trás, a contragosto.

O passeio até estava a correr bem e, apesar dele repartir a atenção pelo mulherio todo, falava mais vezes comigo. Descobri que ser princesa podia trazer-me a vantagem de ter a atenção de homens deslumbrantes que, de outro modo, nunca olhariam para mim duas vezes. A dado momento, ele perguntou-me se podia falar a sós comigo e afastámo-nos um pouco do grupo suspirante. Eu estava com um certo receio da escolha de palavras dele porque decoro não era sinceramente o forte do João, mas até achei que ele se estava a esforçar durante o passeio.

- Sabe, isto de ser aventureiro é óptimo! Conhecemos imensas coisas, nomeadamente mulheres que é o que mais nos interessa longe de casa, sabe?
- Hum... - acenei ligeiramente com a cabeça sem saber muito bem o que devia dizer.
- As pessoas respeitam-nos! Mas também há aquela altura da vida em que um homem tem que assentar, percebe? E eu gostava de assentar o mais rapidamente possível! E de preferência com uma...
- Uma...?

Não tive tempo para ouvir o resto do que ele queria dizer porque entrou um homem esbaforido, a correr na nossa direcção, e trazia um machado com ele. Assim que o João o viu, desatou a fugir. Eu fiquei parada, sem saber o que fazer e só quando ouvi: “afaste-se princesa! Anda cá meu sacana!! Agora já não tem piada meteres-te com as mulheres dos outros, não é??” é que entendi o que se passava e desatei a correr atrás do homem a pedir-lhe que se acalmasse em nome do rei. Atrás de nós seguiam mais alguns homens que se tinham juntado ao coro de indignados e que eram, por sua vez, seguidos pelas minhas aias chorosas e a gritar alto para não fazerem mal ao sr. João. Não sei se consigo explicar a confusão que se seguiu, mas a Clara disse-me que estava a estender roupa e que viu o João a correr como se a vida dele dependesse disso (e realmente dependia) e uma procissão afogueada atrás dele. O grupo de homens vociferava: “anda cá meu traste!”, “ai se não fossem as senhoras aqui!”, “agora já não te chegas perto, não é?”, “pára de correr!!”, “eu já te mostro o que é ser homem!!”, tinham as caras bem vermelhas de cólera, mas também do esforço da maratona. Um pouco mais atrás, o grupo de mulheres gritava chorosamente por piedade, perdão e outras coisas: "se calhar são vocês que não dão conta do recado!", "faz-me um filho!", "deixem lá o homem em paz", "ó Joaquim, perdoa-me!", no intervalo de muita arfadela à custa dos corpetes. Estávamos todos a correr em círculo porque os jardins eram grandes, mas tinham os seus limites e o João tinha literalmente fogo no rabo. Continuámos nisto até que perdemos todos o fôlego, menos o João que tinha mais razões para correr do que nós e que escapou. Acho que este episódio vai ser daquelas histórias que vai “correr” de boca em boca as futuras gerações.

Seguiu-se uma audiência com o meu pai, onde foram contabilizadas cerca de trinta traições, o que eu achei fenomenal porque o João tinha chegado no dia anterior. Alguns homens queriam que o papa lhes concedesse o anulamento do casamento, outros queriam ter o direito a casar de novo com outra mulher, outros queriam simplesmente linchar o João. As mulheres casadas ou prometidas pediam perdão, outras choravam pelo amante fugido e outras tantas fungavam de pena porque ele nunca tinha chegado a tocar-lhes sequer (eu confesso que me sentia mais inclinada para este grupo). A Clara divertia-se à grande com a confusão instalada e o meu pai decidiu, ao saber da existência de 32 bastardos até ao momento, enviar a tropa real atrás do João, apesar dos protestos femininos. Ninguém arredou pé da sala do trono (excepto para usar as latrinas) até que o capitão da guarda real reentrou no castelo e anunciou que o João tinha embarcado numa nau que tinha partido naquela tarde. As notícias trouxeram um misto de reacções, houve suspiros de alívio, asneiras de quem se sentia por vingar e eu confesso que me juntei à Clara, por fim, a rir que nem uma perdida. Jantámos um pouco mais tarde do que o costume e com muitos convidados à mesa. A pouco e pouco fomos bebendo e esquecendo o João e a confusão que ele tinha criado em dois dias.

A parte mais chata é que passados nove meses tivemos dificuldade em encontrar parteiras para atender a todos os pedidos, mas graças ao João (o que lhe valeu outro perdão real), o reino rejuvenesceu e nasceram mais bebés naquele ano do que em todos os que se seguiram.

3 comentários:

  1. Hehe Isso é que é uma boa política de natalidade...
    Começo a pensar que te devia contratar para fazeres o meu trabalho de Narrativa... ;)

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  2. O João era um valente... e as gajas do reino eram todas muito férteis, abençoadinhas! :)

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  3. Aurora: Se pagares bem... lol

    Ana: Adorei o "abençoadinhas", valeu uma gargalhada como deve ser! Obrigada! ;)

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