sábado, dezembro 24, 2011

Como as metanfetaminas eram o menor dos meus problemas

Primeiro que tudo, espero que tenham um excelente Natal! E para ajudar a passar o tempo até à meia-noite, resolvi partilhar hoje a história completa que segue do último post. É a maior história que escrevi até hoje e espero que arranjem coragem para lê-la! Ho ho

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Até para o ano! (E portem-se bem!)

Encontrado neste site 

domingo, dezembro 18, 2011

Prólogo

Cerrei os dentes com força e lutei para manter-me na terra do nunca enquanto a minha consciência puxava na outra direção. Infelizmente eu parecia estar a perder a batalha: a realidade estava a chegar com uma velocidade vertiginosa, e a minha cabeça doía tanto que eu tinha a certeza que se me mexesse ia rachar o crânio em dois. Continuei a luta interna para manter-me longe da lucidez, mas o cérebro não reconheceu a minha autoridade e a realidade veio à tona. Começou com uma pontada nos olhos e a dor que se seguiu foi tão inesperadamente forte que eu teria entrado em estado de choque se não estivesse ainda entorpecida pelo sono. Mas porque é que eu me sentia assim? Porque é que a minha cabeça doía tanto? Na verdade não me lembrava de grande coisa, mas não podia descartar aquela hipótese sempre válida: será que tinha bebido demais? Se sim, esta era a mãe das ressacas!...

Já que estava acordada, achei que o melhor era ficar quieta para não deslocar nada. No entanto, a curiosidade foi acumulando até ser mais forte do que a dor e, ainda de olhos fechados, tentei dobrar os dedos da mão direita e foi com alívio que compreendi que ainda me obedeciam. Ao mexer os dedos senti o chão frio... de cimento talvez? Este não era definitivamente o chão de madeira que me tinha custado os olhos da cara meter no quarto. Se calhar não tinha conseguido chegar ao quarto... será que estava na casa de banho? Os meus dedos não conseguiam encontrar as juntas entre os azulejos do chão, mas talvez. Resolvi fazer uma avaliação mental da minha situação: eu estava deitada de barriga para baixo e o meu braço esquerdo estava por baixo de mim, completamente adormecido. O lado esquerdo da minha cara também estava encostado ao chão e portanto toda a minha cara estava gelada, mas não tinha coragem para levantar a cabeça. Além disso, custava-me respirar fundo… será que tinha o nariz partido? Sempre era preferível a umas costelas em posições bizarras. Pouco a pouco consegui ignorar as dores que sentia e aventurei-me a abrir um olho - o que não estava contra o chão, portanto. Preparei-me mentalmente para a cegueira habitual induzida pela luz matinal ou pela lâmpada fluorescente da casa de banho, mas em boa verdade não vi nada. Ou estava cega ou com graves problemas de focagem. Ou na volta a luz estava apagada e eu conseguia ver perfeitamente. Sem coragem para mexer a cabeça, arrastei o braço direito e mexi os dedos à frente dos meus olhos. Havia ali um movimento qualquer sim. Quer dizer, não é que a minha mente fosse dizer-me outra coisa - mesmo que estivesse cega ia ser a última pessoa na Terra a reconhecer o facto. Resolvi tentar focar o chão e, ainda que sem grande sucesso, consegui notar algumas irregularidades. Seriam pedrinhas de cimento? A menos que tivesse levantado o chão sem dar conta, provavelmente não estava em casa. Hum... assim a coisa ficava mais complicada!

Voltei a concentrar-me em mim e, numa tentativa de avaliar danos, usei o único braço que me atrevia a mexer para analisar a topografia da minha cabeça. O cabelo estava lá, assim como vários inchaços e mais qualquer coisa que parecia ser sangue seco. Se a noite anterior não tivesse sido a melhor da minha vida, eu ia ficar extremamente lixada! Pouco a pouco algumas memórias vieram à tona e começaram a agrupar-se e a tomar forma: lembrei-me de estar com a Ana no carro, do laboratório, da polícia e do carro preto... O carro preto!! Consegui finalmente ar suficiente para gritar o mais alto que podia: “F*DA-SE!!!”. Ainda que a minha voz rouca tivesse saído quase num murmúrio, é incrível como uma palavrinha conseguia resumir tudo o que sentia.

O ataque de pânico tomou-a de surpresa e ela voltou a desmaiar. A poucos passos dali encontravam-se dois homens armados que ladeavam a cela e um outro mais afastado, perfeitamente imóvel, sentado num banco de cozinha. Olhava para o chão com os cotovelos apoiados nas coxas e suportava o queixo com a mão direita, o cabelo caído escondia-lhe a face. Sorriu ao ouvi-la praguejar, ela estava viva e apenas isso interessava.

sábado, junho 18, 2011

O Dia da Chuva Laranja: Parte X

A água começou realmente a ferver e algum do staff do festival desenrolou uma nova lona bastante menos resistente do que a que tinha estado anteriormente a suportar os caracóis. Esta só tinha que fechar o buraco e servir de tampa ao ‘tacho’.

“Elá, agora cheira mesmo bem!!”
“Sim, acho que o comandante é chef nos tempos livres. Viste como ele soube exatamente o momento em que se devia juntar o sal?”
“Não tens pena dos caracóis?”
“Eles não pareciam ter remorsos por ter destruído meia cidade...”
“Mas mesmo assim, atraí-los para uma armadilha e cozê-los?! Se calhar havia algum santuário de animais que podia ficar com eles ou assim...”
“Um santuário? Ó Madalena, isto é uma guerra a sério! E se não quiseres, eu fico com o teu prato.”
“Haha, que engraçadinho!”
“Escusas de tentar fazer sentir-me mal, eu vi-te a esconder um tupperware na mala!”
“Oh, mas isso é para levar à Rita e ao João! Também merecem provar um bocadinho, não?”

No centro de comando também haviam festejos perfumados pelo cheiro a orégãos que pairava no ar.

“Muitos parabéns meu comandante! Correu tudo lindamente!!”
“Sem dúvida! E este cheirinho... só faltam mesmo as minis!”
“Então e qual era o plano B? Uns dardos tranquilizantes ou assim para acalmar os bichos?”
“Hum, não... tivemos receio que os tranquilizantes afetassem o sabor e depois não havia petisco para ninguém. Ó António, o pessoal do Guiness sempre veio?”
“Sim, meu comandante. Estão agora mesmo lá em baixo a medir o ‘tacho’ mas já dizem que o recorde é nosso.”
“Então é oficial: esta é a maior ‘tachada’ de caracóis do mundo! O Festival do Caracol Saloio de Loures vai entrar para a História!! E para o Guiness!”
“Por acaso estes tipos não têm nada a ver com a cerveja, não?...”

Infelizmente o acontecimento nunca ficaria para a História, mas nessa altura toda a gente achava que sim e os festejos continuaram. O primeiro ‘grande’ problema com que se depararam foi o de cortar os caracóis: ainda que tivessem encolhido ligeiramente na cozedura, a carne de caracol é ligeiramente elástica e a dimensão absurda dos bichos não facilitou a tarefa em nada. Alguns não quiserem esperar e foram molhando as fatias de pão (também ele saloio) no molho acastanhado que ainda fumegava. Até que por fim chegou uma grua que levantou os caracóis à vez e foram servidos como ‘caracol no espeto’ ou ‘snail kebab’ para os turistas. A Madalena esperou pacientemente pela vez dela até conseguir uns bons bocados de caracol e preparou-se para abandonar a festa na companhia do Rodrigo.

“Que dia inacreditável!”
“Podes crer, mas tenho a leve sensação que ainda não acabou.”
“A sério? Eu espero sinceramente que estejas enganado porque estou tão cansada de tanta correria que só me apetece dormir!...”

Apanharam o autocarro de volta e fizeram o resto do caminho até casa da Rita a pé e de mãos dadas. Caminharam com cuidado porque o alcatrão e as pedras da calçada pareciam ter derretido e adquirido uma forma mais arredondada nas bordas com uma depressão ao meio por onde os caracóis tinham passado.

“Esta estrada parece o mar alto, quanto tempo demorarão a arranjar isto?”
“Ui, vai demorar com certeza... com a crise então, com sorte nunca mais passam carros aqui. Vendo pelo lado positivo: ganhámos zonas pedonais!”
“Bem, chegámos.” E olharam ambos para o prédio onde a Rita e o João se encontravam. “Ui, o prédio está mesmo com mau aspecto! Será que está em perigo de derrocada?”
“Penso que não, mas se fosse à Rita mudava a mobília pesada para o outro lado do apartamento.”
“Bem visto. Sobes?”
“Sim, mas sobe tu primeiro. Pareceu-me ver ali uma pessoa conhecida. Eu já subo, dá-me cinco minutos.”

E sem esperar resposta por parte da Madalena, o Rodrigo caminhou em passo apressado até ao banco onde estava alguém sentado que ele pensava reconhecer. E pois sim, parece que estavam exatamente à espera um do outro.

“Eu sabia que ia voltar a ver-te! Queres explicar este ataque de caracóis gigantes? Mais um erro de cálculo?!”
“Não, por acaso eles eram a razão pela qual viemos ao vosso planeta. Na verdade, os caracóis eram quatro fugitivos muito procurados no Universo: há galáxias que oferecem um sistema solar pela captura de apenas um deles!”
“E o que vão fazer agora? Dar-nos quatro sistemas solares?”
“Nada disso! Não podemos anunciar-nos assim aos terrestres. Aliás, nós nem sabíamos que forma eles tinham adotado para se misturarem convosco. Algo me diz que não fizeram uma pesquisa muito aprofundada sobre o assunto...”
“Então e agora o que vão fazer? Ainda que pareça que somos os únicos à margem de tudo o que se passa no Universo, a verdade é que resolvemos o vosso problema num instante!”
“De facto... milénios e milénios atrás destes delinquentes e uma das civilizações mais atrasadas que conhecemos dá cabo deles em duzentos e quarenta e quatro minutos terrestres, sem contar com o tempo de cozedura.”
“Nunca descer à Terra sob a forma de petisco!”
“É uma boa lição a retirar do dia de hoje.” E esboçou o que o Rodrigo tomou por um sorriso. “Bem, agora parece que temos muito que limpar antes de ir embora!”
“Limpar? Como assim?”
“Temos que reconstruir prédios, pavimentar estradas, limpar as montanhas de camarão que ainda por aí andam, refazer calçadas... ainda por cima calçadas! Das coisas mais trabalhosas que nos podiam calhar na rifa! Enfim!... E claro, apagar as vossas memórias e todos os registos que existem sobre o dia de hoje.”
“Apagar-nos a memória? Porquê?? Nós prestámos um excelente serviço!”
“Sem dúvida, mas dias como este não podem ficar gravados na vossa memória. Como explicar a chuva de camarões cozidos ou os caracóis gigantes? Não há nenhuma resposta natural ou pelo menos que faça sentido à vossa ciência.”
“Mas o que é o pior que pode acontecer? Ninguém sabe que o que se passou tem mão extra-terrestre. Até podem aparecer umas quantas religiões adoradoras de caracóis por causa disto, mas nós até já lhes celebramos festivais!”
“É mais complicado do que isso. Mas não te preocupes, daqui a uns minutos já não vais ter essa preocupação.”
“Mas tem mesmo que ser assim? Eu não quero ter um buraco na memória!”
“Nada de buracos, vais pensar que passaste a tarde toda com os teus amigos no cinema. E que até chegaste a horas ao filme!”
“Não é justo! Então enfrentamos extra-terrestres perigosos, batemos um recorde do Guiness e ninguém se vai lembrar de nada disto? Que mal!”

E de repente o Rodrigo ficou sozinho no banco. Não tinha gostado nada daquela despedida. Lá se decidiu a ir até casa da Rita porque o extra-terrestre não ia voltar com certeza. Pensou na chuva de camarão, nos caracóis gigantes, no ranho corrosivo e na festa que ainda devia estar decorrer em Loures. Como seria ‘acordar’ e não recordar nada de um dia que tinha tudo para ser recordado? E contado aos netos e bisnetos? Abanou a cabeça ao entrar no edifício e nem reparou que a fachada estava intacta. Subiu as escadas e bateu à porta.

“Olá! Já arejaste tudo?”
“Sim, tudo arejado! E tu Rita, como te sentes? Estás melhor?”
“Melhor?... Sim, estou bem, como sempre. Não deveria?...”

O Rodrigo acenou com a cabeça e foi até à janela da sala. Espreitou e viu que tinha tudo voltado ao normal. Coçou a cabeça sem perceber muito bem o que se tinha passado... Será?...

“Então pá? Estás mesmo nas nuvens hoje!”
“Estou um bocado cansado, o dia foi agitado.” E sentou-se ao lado da Madalena com um braço por cima dela.
“Pois, ir ao cinema é super cansativo! Cá para mim, o que te cansou foi chegares a horas, não estás habituado a essas coisas!” E riram-se em conjunto.

A noite escura caiu depressa e ele ainda não tinha conseguido ordenar as ideias. Quase não falou e os amigos estavam a estranhá-lo, mas o Rodrigo só voltou a si quando pegou na mala da Madalena antes de acompanhá-la até casa.

“O que tens aqui dentro?” E sem esperar resposta, abriu a mala e tirou um tupperware.
“O que é isso? Como é que isso foi parar à minha mala?”
“É um tupperware com comida! Caracol cozido, para ser mais exato!”

Os outros três espreitaram para dentro do recipiente de plástico.

“Ena, que grandes caracoletas essas! Estiveram no festival ontem?”
“Eu não!”
“Eu estive!” E sorriu imenso por ter finalmente a confirmação: ele ia lembrar-se daquele dia de loucos!
“Cá para mim estiveste foi a dormir e a sonhar com caracóis, isso sim!”


FIM

sexta-feira, junho 17, 2011

O Dia da Chuva Laranja: Parte IX

A Madalena tinha acabado de subir as escadas que davam acesso à plataforma onde o Rodrigo se encontrava. Estavam ambos no recinto do Festival do Caracol Saloio em Loures.

“Tudo a postos?”
“Penso que sim... agora resta esperar, não é?”
“Que remédio!...”
“Sabes que mais? Está a dar-me a fome!”
“Podes crer, só de ler o folheto até fico a salivar: Feijoada de Caracoleta, Dobradinha de Caracoleta, Pataniscas de Caracol, Pimentos Assados com Caracoleta, Espetada de Caracoleta, Cogumelos Salteados com Caracoleta, Massada de Caracol, Quiche de Caracoleta, Caracoleta à Lagareiro, Chili de Caracoleta, Caracóis de Coentrada, Caracoleta à Bulhão Pato...”
“Queres matar-me de fome?”
“Incrível, não falta aqui nada! Achas que vamos poder experimentar isto tudo?”
“Não estou a ver porque não... Se sairmos vivos disto, no mínimo têm que oferecer-nos um bocado do petisco!”

Parou de falar um momento para observar o recinto e ficou impressionado com a quantidade de gente que já se tinha juntado ali. Todos traziam sacos bem cheios, tal como fora pedido, e pareciam prontos para a ação. A Madalena também não deixou de observar o facto.

“Ena, tanta gente a chegar! Achas que sabem todos ao que vêm?”
“Espero que sim, mas quando os artistas principais chegarem logo se vê quem fica.”

Depois de uns longos minutos de espera, ouviu-se finalmente o som característico de um megafone. “ATENÇÃO! Os caracóis já foram avistados e vêm nesta direção! Podem esconder-se todos e afastem-se da zona demarcada. Repito: é proibido transitar na zona demarcada!” O comandante da polícia afastou o megafone dos lábios e falou num tom natural ao colega que tinha acabado de chegar.

“Conseguiram reunir alfaces e couves suficientes? Está tudo a postos?”
“Sim, os vegetais estão num molho naquela zona da feira” e apontou para indicar o sítio a que se referia “e já não se encontra ninguém no local.”
“Muito bem! Agora é esperar que tudo corra de acordo com o planeado...”
“Os caracóis são mesmo surdos?”
“Os especialistas dizem que sim, mas também é verdade que não temos especialistas desta espécie de caracol em particular...”
“Bem, eu acredito que vai correr tudo bem. Vai ser o melhor festival de sempre, vamos ter imensa gente e uma enorme campanha publicitária gratuita!”
“Pois Zé, esperemos que o presidente se lembre de compensar a polícia depois disto!...”

Como se tivesse ouvido a deixa para entrar, um helicóptero de um conhecido canal de notícias aproximou-se do local onde o comandante Frederico e mais uns membros da polícia se encontravam.

“Bem, parece que a festa vai começar!”
“Será que a lona aguenta tempo suficiente?”
“Estamos prestes a descobrir, mas espero sinceramente que sim. Já agora, quem é que se lembrou de marcar a lona com um enorme ‘X’ a vermelho?”
“Não sei, mas ajuda a chamar a atenção, as pessoas estão a evitar essa zona como fosse a praga. Por outro lado, também ajuda a ter a certeza de onde vai acontecer o espetáculo e as pessoas podem procurar um lugar com boa visibilidade.”
“Boa visibilidade?! Para ver caracóis de dois metros??” Como ninguém teve coragem para responder, ele continuou a falar sozinho em voz baixa “devo ficar contente por ser um ‘X’ gigante e não um alvo gigante, ‘tá visto! Ai a minha vida! Espero que os caracóis também sejam cegos!...”

Os caracóis gigantes foram precedidos pelo som de metal a torcer e de um ou outro pequeno desmoronamento. E claro, vinham acompanhados da música de fundo que anunciava o apocalipse: o som típico das coisas ‘nhanhosas’ que fazem ‘nheca nheca’ ou ‘shlop shlop’; assim como o som de um caracol gigante a avançar mergulhado numa espécie de gosma esverdeada. Devagar mas sem nunca dar um passo atrás, o quarteto de elite avançava sem misericórdia e era cada vez mais notória a capacidade destruidora do ranho que os circundava. Não havia uma única infra-estrutura que ficasse ilesa à sua passagem e as pessoas começaram a perguntar-se se aquele ranho não seria radioativo. Antes que o pânico se instalasse e as pessoas começassem a fugir, eis que apareceu o primeiro caracol no recinto e bloqueou qualquer tentativa de fuga pela avenida principal. A primeira coisa que o comandante Frederico viu foram duas antenas coroadas com dois globos que pareciam ser os olhos da criatura.

“Isto parece um filme de terror, mas um daqueles de mau gosto! Já viste bem aqueles olhos?!”
“Não é das coisas mais bonitas que vi, não. Mas não deixa de ser fascinante! Toda aquela gosma a escorrer, há ali pedaços daquela ‘nhanha’ que devem cair de metro, metro e meio, não?”
“E vista assim ampliada, a pele deles tem qualquer coisa daquele escamado dos dinossauros mas em cinzento, não tem?”

O comandante Frederico nem conseguiu esconder o nojo que aquela conversa estava a provocar-lhe, ele nem gostava de caracóis! Fez uma cara reprovadora que foi rapidamente entendida e calaram-se todos. A enorme concha castanha em espiral não tardou a aparecer e foi prontamente seguida por outras três conchas acompanhadas de mais seis pares de antenas e três pares de olhos. O melhor amigo do comandante, mortinho por meter o bedelho, tentou a sorte e quebrou o silêncio.

“É incrível como parecem caracóis de quintal. Pensei que tivessem um aspecto diferente... Mais ameaçador, talvez?”
“Já viste o estado em que ficam as coisas depois deles passarem? Queres mais ameaçador do que ter uma cidade destruída?! E não te esqueças: eles estão aqui em busca de vingança!!”
“E de alface também.” Notou um deles ao ver que o primeiro caracol tinha entrado na zona onde eles se encontravam e ia direito ao manjar que lhe estava destinado.
“Já só faltam três... e que a lona aguente até lá!”

Os três caracóis que faltavam acabaram por entrar no recinto e ficaram os quatro exatamente onde a polícia e toda a gente os queria: em cima do ‘X’ vermelho marcado na lona. Nenhum dos caracóis parecia apreensivo e o burburinho de fundo que tinha acompanhado toda a operação acabou abruptamente para dar lugar ao medo e até algum respeito pelos gastrópodes. Tal como o Rodrigo tinha previsto, algumas pessoas abandonaram os esconderijos e correram para casa, mas a maioria ficou. O único som que se ouviu durante alguns segundos foi o dos talos de alface a partirem ou de folhas de couve a serem arrastadas. Algumas pessoas deixaram de respirar tal era o suspense que pairava no ar. Até que a lona não resistiu mais debaixo daquele banho corrosivo e cedeu finalmente. Os caracóis nunca chegaram a ter hipótese e caíram pesadamente dentro do depósito de água. “AGORA!” Gritou o comandante Frederico através do megafone.

Ninguém se fez rogado e apareceram pessoas de todos os cantos e esconderijos possíveis no recinto do festival. Todos eles traziam pesados sacos às costas e uma grande vontade de acabar com aquela ameaça de uma vez por todas. Aproximaram-se com cuidado do ‘precipício’ que tinha engolido os caracóis e ainda que de vez em quando se vislumbrasse um ou outro olho na extremidade de uma antena, houve um urro de vitória seguido pelo arremesso em catadupa de milhares de condimentos para o buraco negro. As pessoas tinham trazido exatamente o que lhes tinha sido pedido: cebola picada, raminhos de orégãos, alhos pisados (infelizmente numa expressão literal), malaguetas, caldos Knorr, louro, sal e azeite. O comandante Frederico berrava ao megafone “ATENÇÃO: NADA DE SAL! O SAL É APENAS INTRODUZIDO DEPOIS DOS BICHOS MORREREM, SENÃO ELES RECOLHEM À CONCHA E NINGUÉM COME NADA!”

Os arcos de condimentos que caíam para o buraco acalmaram eventualmente, mas ninguém arredou pé porque a grande maioria também tinha trazido sal. O comandante resolveu descansar o megafone quando viu que toda a gente estava a seguir as suas instruções e aproveitou o momento para colocar-se a par das novidades.

“José, como está a questão do fogo? Conseguiram acendê-lo? Havia água suficiente no depósito?”
“Sim senhor, acabaram de informar-me que todas as paredes à volta do depósito de água estão a aquecer rapidamente e a água já atingiu os 40ºC. Não temos muita lenha para queimar, mas acho que vamos conseguir!”
“Nem que seja preciso queimar as mesas e os bancos corridos! Ninguém aqui precisa de comer sentado!”
“Sim senhor!”

A água estava a aquecer visivelmente e todo o recinto em redor do buraco que os próprios caracóis tinham ‘cavado’ estava a aquecer também. O ânimo dos lourenses não acalmava e não havia nenhum que desviasse os olhos daquela panela gigante... não fosse um deles fugir enquanto o diabo esfrega um olho!

“Será que já estão mortos?”
“Não sei, acho que a água ainda não ferve!”
“Já se pode juntar o sal?”
“Se calhar é psicológico, mas já me cheira a qualquer coisa!...”

E não era o único a salivar com a ideia do pitéu que se seguiria pois foi acompanhado de uma sincronizada sinfonia de barulhos estomacais.

quinta-feira, junho 16, 2011

O Dia da Chuva Laranja: Parte VIII

“Quem é que foi a mente brilhante que achou que vir para o terraço era boa ideia?!”
“Não te ouvi a sugerir nenhuma alternativa!”
“Na altura eu não sabia que o hospital tinha dezasseis andares!! Só andei perdido no rés-do-chão!... E a Rita coitada está ali a retomar o fôlego depois de subir isto tudo. E para quê? Nada! Daqui não chegamos a lado nenhum!”
“Acho que quem tem que retomar o fôlego é o João que carregou com a Rita porque tu não deixaste usar o elevador e nem sequer o ajudaste. Mas tens alguma ideia melhor? Ora partilha lá connosco, é o teu momento!”
“Humpf... Os elevadores nem sequer devem ser usados durante emergências!...”

A Rita e o João observavam o espetáculo, ainda que a uma certa distância do casal... não fosse o diabo tecê-las.

“Achas que eles vão sobreviver ao dia de hoje?”
“Se sim, daqui a uns anos recebemos o convite para o casamento. Afinal, o que mais pode acontecer?”
“Hum, é melhor não tentar o destino... ele hoje não tem sido nada simpático connosco!”
“Tens razão.” E afagou-lhe os caracóis. “E tu, como te sentes? Estás com muito melhor aspecto!”
“Pudera, não fiz nada! Tu carregaste comigo até cá acima... Mas sim, sinto-me melhor, até acho que estou a ficar com fome!”
“Ena, isso soa mesmo muito bem e o que não falta por aqui é camarão!”
“Oh por favor! Acho que nunca mais na vida vou comer camarão... sabes o que me apetecia mesmo?”
“O quê?”
“Caracoletas na chapa!”

O João parou por breves momentos a ‘mastigar’ as palavras da Rita, levantou-se e meteu-se no meio da Madalena e do Rodrigo. Aquela parvoíce tinha que acabar.

“A vossa atenção, por favor? Lembram-se de que estamos a fugir de quatro caracóis que, ainda que lentos, são gigantes?”
“Ah sim?”
“Sim... e eu tenho uma ideia! Aliás, foi a Rita que me deu a ideia. O que sabemos nós sobre caracóis?”
“São saborosos?”
“Têm um corrimento nasal horroroso?”
“São criaturas sensíveis.”
“Bom ponto, Rita! E mais?”
“Não ouvem.” A Madalena e a Rita olharam para o Rodrigo ao mesmo tempo.
“Não ouvem? A sério?”
“Sim, são surdos. São uns bichos herbívoros surdos e, tal como a Rita disse, são muito sensíveis e levam qualquer coisinha a mal.”
“Hum, se eu fosse surdo também era desconfiado...”
“Muito bem e se fosses um caracol, o que é que atacavas em primeiro lugar?”
“Uma horta?”
“Não, a nível de vingança!...”
“As tascas e os pires de caracóis?”
“Supermercados que vendem caracóis ao lado de amêijoas de qualidade duvidosa?”
“Vendedores de verduras contaminadas?”
“Acho que já sei!” E viraram-se todos para a Rita: “o Festival do Caracol Saloio de Loures!!”

Uma chama de esperança acendeu-se dentro de todos enquanto o João explicava o plano, agora que tinham um possível alvo dos caracóis. Era arriscado e ia depender de muita gente, mas valia a pena tentar! Entusiasmados com a ideia, mergulharam numa discussão animada onde tentaram limar as arestas do plano e acertar os detalhes mais confusos. Estavam tão embrenhados na conversa que só à terceira abanadela é que repararam que o edifício estava a mexer-se. A Madalena achou que tinha uma possível explicação para o facto.

“A baba dos caracóis é corrosiva! Deve estar a destruir os pilares do hospital... temos que sair daqui depressa!”
“E se voltássemos a entrar e descêssemos pelo túnel da roupa suja até ao primeiro ou segundo andar? Daí deve ser mais fácil sair ou saltar para algum lado!”
“Não só era um valente milagre que o túnel só tivesse roupa no fundo, como a esta hora a cave deve ser uma pasta líquida composta pelos mais variados materiais... babados, vá!”

O hospital abanou novamente e desta vez cedeu e inclinou ligeiramente.

“Bem, não há outra hipótese: temos que sair aqui por cima!”
“E que tal saltar para o edifício do lado? Com esta inclinação... bem, talvez dê se isto inclinar mais um bocado...”
“Não me parece que vá dar, mas aqui é que eu não fico!”

Infelizmente não podiam fazer nada porque o intervalo entre os dois edifícios era intransponível. De vez em quando sentiam que algo chocava contra o prédio, seria a concha de um dos caracóis? Esperaram e desesperaram por um novo movimento do edifício que finalmente chegou. As fundações voltaram a ceder e o prédio inclinou-se um pouco mais. Os rapazes estavam preparados e já à devida distância para ganhar balanço, e assim que perceberam que era aquele o momento certo, correram e saltaram para o edifício do lado. Tanto a Rita como a Madalena fecharam os olhos com força e só quando tiveram a certeza que o característico som de osso a partir não se ia fazer ouvir é que abriram os olhos para espreitar. Mas assim que os viram do outro lado, ganharam coragem e fizeram a mesma corrida antes do salto final. Os rapazes tentaram ajudá-las tanto quanto possível e proporcionaram dois ótimos colchões de queda. Assim que ficaram os quatro de pé, correram até à porta que dava acesso ao interior do edifício. A porta estava aberta e eles não se fizeram rogados. A Rita ainda não estava totalmente recuperada e precisou da ajuda do João para descer as escadas. O breve momento de adrenalina que tinha sentido ao saltar do terraço do hospital tinha desaparecido assim que ela tinha aterrado em cima do João.

Chegaram à rua esbaforidos, mas muito aliviados por ver o alcatrão e o passeio com as formais habituais e sem qualquer sinal viscoso. Depois de uma breve troca de ideias, o João ficou de levar a Rita a casa, apesar dos protestos dela, e passar pelo posto da polícia onde trabalhava um amigo dele. A Madalena seguiu com o Rodrigo que tentava contactar o tio, um grande amigo do presidente da câmara de Loures.

quarta-feira, junho 15, 2011

O Dia da Chuva Laranja: Parte VII

“Eu disse-te que devíamos ter virado à esquerda!”
“Mas o que é que tu sabes? Estavas praticamente inconsciente quando entraste aqui!”
“E mesmo assim parece que estava mais acordado do que tu!”
“Ah sim?”
“Sim, já passámos por este sinal de ‘obstetrícia’ umas três vezes e há mais de dez minutos que não vejo um gajo sem seres tu!”
“Bolas, estamos no rés-do-chão! Quão difícil pode ser encontrar a saída?!”

O Rodrigo, já definitivamente recuperado da medicação e do camarão mortífero, estava a sentir-se ligeiramente claustrofóbico. Não só o teto do hospital era muito baixo, como haviam ali demasiadas mulheres com graves problemas de retenção de líquidos. Assim, quando viu uma enfermeira ao longe e começou a acreditar que ainda podia sair daquele edifício demoníaco antes de fazer 50 anos, não pensou duas vezes e correu na direção dela. Assim que chegou perto da enfermeira e confirmou que não era uma miragem, não resistiu e deu-lhe um abraço sentido: a salvação tinha chegado!

“Rodrigo?!”

Aparentemente a salvação e a Madalena tinham chegado juntas.

“Madalena?!”
“Nem acredito nisto! Eu super preocupada contigo, a pensar que te tinha acontecido alguma coisa e tu andas a enganar-me com uma enfermeira?!”
“Ora calma lá, não é nada disso!” E virou-se para a enfermeira que ainda tinha nos braços “pois não?”
“Garanto que não! Eu nunca tinha visto este pacóvio na minha vida! E se não fizer o favor de largar-me agora mesmo, eu chamo o segurança!!”

Os braços do Rodrigo abriram-se automaticamente e ele colocou as palmas das mãos para a frente num gesto defensivo. Nem sabia de quem devia sentir mais medo: se do segurança que era capaz de ser grande, ou se da cara da Madalena que não augurava um feliz reencontro. Felizmente o João chegou e ele não teve que ser o primeiro a falar.

“Madalena!!! Que bom ver-te! Andamos aqui às voltas há imenso tempo e não há maneira de sairmos daqui!! O Rodrigo hoje não está nada bem e ainda por cima abraçou a enfermeira...” O Rodrigo lançou-lhe um ar assassino. “Err... Acho que ficou demasiado feliz por ver finalmente alguém que podia indicar-nos a saída?...”
“O Rodrigo tem boca, acho que ele não precisa que te desculpes por ele.”

O João encolheu-se num “uiii!” e numa bonita amostra da forte amizade que o unia ao Rodrigo, sorriu-lhe numa clara indicação de “estás por tua conta pá!”, enquanto cruzava os braços para apreciar melhor a cena que se seguiria.

“Ó Madalena, não te ponhas com coisas! Eu tive uma reação alérgica e o João trouxe-me ao hospital. A sério que eu não conheço aquela enfermeira de lado nenhum, eu só achei que ela ia ajudar-nos a sair daqui!”
“Eu quero saber porque é que me deixaste plantada à tua espera esta tarde sem nunca atender o telefone, isso sim! E a única justificação plausível era estares em coma!!”

O João suprimiu outro ‘ui’ em voz alta e decidiu que afinal não queria ver a cena nem ser testemunha dos maus tratos a que o Rodrigo ia ser sujeito. Voltou-se para ver se ainda apanhava a enfermeira e espreitou no quarto mais próximo. E, como sempre, esqueceu-se de tudo quando viu a Rita sentada numa cadeira ao canto do quarto. Só depois de esfregar os olhos três vezes é que decidiu que era mesmo ela e à quarta é que reparou que ela estava a soro.

“Rita! O que é que te aconteceu?”
“João? O que fazes aqui?”
“Vim trazer o Rodrigo, ele teve uma reação alérgica aos camarões.”
“Ah, a Madalena tinha razão em estar preocupada com ele então. Quando a encontrei estava fula à espera dele! Acho que o Rodrigo se esqueceu que tinham um encontro marcado ou qualquer coisa assim.”
“Nah, ele lembrava-se.”
“A sério? Então não apareceu por causa dos camarões?”
“Pois... Então mas deixa lá o Rodrigo, o que se passa contigo? Também és alérgica a marisco?”
“Não, acho que comi demasiados camarões! Estava muito mal disposta e a Madalena resolveu trazer-me até aqui. Ainda bem porque parece que estava a ficar desidratada...”
“Estás a sentir-te melhor?”

O João esqueceu-se completamente do saco de camarões que tinha na mão, deixou-o cair e não resistiu a pegar na mão da Rita. Ela sorriu com o impulso dele e não retirou a mão dela. Continuaram a conversar durante alguns minutos até que foram interrompidos pelo sinal de alarme do hospital. A intensidade das luzes baixou e os sinais de saída ficaram finalmente visíveis. O João apertou a mão da Rita com mais força e perguntou-se se a discussão entre o Rodrigo e da Madalena tinha escalado ao nível de disparar o alarme do hospital. A resposta não tardou porque entraram ambos de rompante no quarto, e qualquer um deles conservava a sua integridade física. Seguiu-se uma troca cúmplice de olhares entre os dois elementos do sexo feminino e, sem se aperceber, a Rita disse o que estava a pensar em voz alta.

“Os caracóis!”
“Caracóis?... Não te preocupes com os caracóis, estás linda como sempre!”

A Rita precisou de uns momentos para descodificar a frase do João e a Madalena abafou uma gargalhada. O Rodrigo continuava sem entender nada. No entanto, o momento de diversão não durou muito e o som estridente do alarme trouxe-os todos de volta à realidade hospitalar.

“Não são os caracóis dela, são os caracóis do apocalipse!”
“Quem?”

A ficha caiu primeiro na cabeça do Rodrigo que se apressou a pensar em voz alta. “Quatro caracóis que vêm destruir a Humanidade? Bolas, já não se pode confiar em ninguém!... E depois nós é que temos má fama! Como se provocar a destruição de um planeta por falhar uma reentrada fosse comparável a causar um ou outro complexo de Napoleão nalgum planeta! Incrível, mesmo!” e continuou a falar sozinho. Os três amigos entreolharam-se sem saber o que dizer ou fazer, mas como a situação pedia urgência, eles pura e simplesmente decidiram ignorar o Rodrigo (por unanimidade).

“Se os caracóis estiverem a atacar o hospital pela frente, qual é a melhor saída?”
“Se querem sair daqui, não sigam o João!”
“E ir para o terraço, não?”

Naquele momento, e até porque não há outra explicação racional para o facto, aquela pareceu uma boa ideia. Sendo assim, esperaram mais uns minutos para ver se o nível de pânico diminuía dentro do hospital ou se nem por isso. Talvez os caracóis desistissem de invadir o hospital? Os minutos de espera também davam tempo à Rita para ir recuperando.

A Madalena era sem dúvida a pessoa mais nervosa e estava constantemente a sair do quarto para avaliar a situação no corredor.

“Importas-te de ficar quieta?”
“Importo! Tu não mandas em mim!”
“Calma, vocês têm que acalmar-se!! Façam as pazes por agora, ok? Depois podem matar-se como quiserem, mas de momento quem precisa de atenção aqui sou eu e não vocês!” Respirou fundo e baixou o tom de voz “acho que o soro está quase a terminar. Podem chamar uma enfermeira para tirar-me isto do braço?”

A Madalena olhou para o corredor vazio de qualquer tipo de vida que se pudesse ver a olho nu e suspirou. “Acho que termos que ser nós a tirar-te isso.” A Rita cerrou os dentes com força.

terça-feira, junho 14, 2011

O Dia da Chuva Laranja: Parte VI

“Não podemos ficar aqui a olhar, temos que fazer alguma coisa Madalena!”
“E queres fazer o quê? Picar cebola?!”
“Haha!... Olha o que está a acontecer por onde eles passam! O ranho deles é tóxico ou quê? Está a desfazer a cidade!!”
“Bem, eu tenho que ir ver do Rodrigo... E não há maneira de ter rede!”
“É melhor ficarmos aqui em cima, é mais seguro.”
“Então não eras tu que querias um bocadinho de ação?!”
“Sim, mas não era propriamente para ir ter com o Rodrigo, era para destruir aqueles caracóis gigantes antes que eles destruam a minha casa!”

Os caracóis, que como toda a gente sabe são criaturas sensíveis que levam facilmente estas coisas a peito, sentiram a animosidade da Rita e começaram a subir a parede do prédio, devagar. Ou então foi apenas um infeliz encadeamento de acontecimentos vagarosos que levou a que um dos caracóis começasse a subir a parede do prédio.

“Madalena, eles vêm aí!!”
“Temos que ir lá para baixo depressa! Cada caracol tem o quê? Dois metros? Vão subir isto num instante!”
“Com ou sem contar com os cornos?”
“Antenas!!”

As duas correram para a porta de saída do terraço e desceram apressadamente as escadas do prédio. Havia demasiada coisa estranha a acontecer e não tiveram coragem para experimentar o elevador, mais valia não tentar a sorte.

“E o que fazemos assim que chegarmos lá abaixo?”
“Procuramos o Rodrigo!”

A Rita nem conseguiu protestar. Assim que chegaram ao rés-do-chão, a Madalena aproximou-se da porta num movimento muito ‘ninja’ e espreitou para a rua pelo vidro da porta. A costa estava livre, quer de caracóis gigantes quer de pessoas, e ela fez sinal à Rita para avançar. Sem fazer muito barulho (qual seria o grau de audição de um caracol?), abriram a porta e fugiram em direção à casa do Rodrigo. Ou pelo menos na direção contrária à dos caracóis.

“Tens a certeza que sabes ir ter a casa dele?”
“Sim... é por ali!”

A Rita escusou-se a comentar como aquele ‘sim’ soava a ‘acho que sim ou talvez não’. Aliás, não lhe apetecia comentar nada porque estava a ficar extremamente mal disposta e o melhor era ficar de boca fechada. Passados alguns minutos, a Madalena notou que a amiga estava a ficar para trás. Abrandou o ritmo e apesar de querer continuar a correr, acabou mesmo por parar e verificar o que se passava.

“Rita, estás bem?”
“Não me sinto nada bem...”

E como se tivesse esgotado as forças todas para dizer aquilo, a Rita deixou-se cair e sentou-se no chão. Ficou encolhida a agarrar a barriga e a balançar-se devagarinho de trás para a frente.

“Rita!!! O que tens? O que é que estás a sentir?”
“Não sei... estou super mal disposta. Terá sido o camarão?... Se calhar estava envenenado!”
“Quantos comeste?”
“Todos os que me deram?”
“Ó Rita!!... Ai ai, é melhor levar-te a um hospital primeiro! Sabes se existe algum aqui perto?”

A Rita não estava com muita vontade de ir para o hospital, só queria mesmo que a deixassem ali sozinha a curtir a má disposição.

“Hospital? Não sei se é uma urgência assim tão grande... Se calhar se ficar aqui quieitinha isto passa.”
“Duvido, não estás com boa cara e ficar aqui não me soa nada bem!”
“Qual é o mal?”
“Os caracóis do apocalipse e o ranho corrosivo, lembras-te?!”
“Apocalipse? Haha Bom nome!... Ai... não devia rir-me. Oh, por acaso não tens um saco de plástico à mão?...”
“Não, e não quero mesmo saber da tua opinião! Vamos procurar-te um hospital e não há mais conversas!”
“Mas eu não quero sair daqui!”
“Eu também não perguntei o que querias. Vá, de pé! Apoia-te em mim e diz-me onde fica o hospital mais próximo.”

A cara da Rita estava a sofrer uma metamorfose cromática e alternava entre o vermelho do esforço, o bege natural da pele e o verde da fermentação dos camarões. Com muito esforço, a Madalena lá conseguiu levantá-la e tentou carregar a maior parte do peso da amiga (e dos camarões) para avançarem o mais rapidamente possível.

Ao fim de uns minutos, a Rita já tinha parado para vomitar três vezes e a cara dela parecia ter finalmente escolhido o verde como cor permanente. Assustada e extremamente cansada, a Madalena deixou a amiga num banco e tentou procurar sozinha o hospital. Apesar de achar que a amiga estava a delirar e que não havia nenhum hospital ali perto, continuou a procurar num raio razoável e ia tropeçando de alegria quando viu o característico sinal retangular azul com o conhecidíssimo ‘H’ branco. Sentiu logo as forças a voltarem e foi a correr buscar a Rita que também se animou ao saber das notícias, pelo menos a cara dela tinha evoluído favoravelmente de um verde-verde para um verde-amarelo. Uma mudança subtil que muito encorajou a Madalena a arrastá-la até ao hospital.

“Estamos quase lá! Estás a ver? É aquele edifício que faz esquina!”
“Aquele cheio de gente??”
“Não te preocupes, aposto que eles abrem alas assim que te virem!”
“Assim que me virem?... Estou assim tão mal?!”
“Desculpa, não era isso que eu queria dizer!”

A verdade é que a quantidade absurda de gente à entrada do hospital parecia estar ali mais à espera de notícias do que propriamente a aguardar vez para tratamento. Assim que viram as duas raparigas, e principalmente assim que viram a Rita, as pessoas afastaram-se e abriram um corredor direto à receção do hospital. Conseguiram entrar com relativa facilidade - um milagre mesmo - e uma velhota apontou-lhes a máquina de tirar senhas (talvez com medo que elas lhe passassem à frente?). A Madalena sentou a amiga e concentrou-se na dura tarefa que tinha pela frente: descodificar qual a senha certa a tirar. Enquanto isso, uma enfermeira saiu de trás do balcão e entregou à Rita um balde que ainda trazia a esfregona.

“Acabaram-se as arrastadeiras e só sobram os baldes” e empurrou-lhe o balde para a mão. “Mas em caso de necessidade, era preferível que conseguisses chegar à casa-de-banho.”
“Err... obrigada. E a esfregona?”
“É para limpares o que sujares.”
“Mas o balde não tem água?...” A enfermeira ainda se deu ao trabalho de encolher os ombros antes de ir-se embora.

segunda-feira, junho 13, 2011

O Dia da Chuva Laranja: Parte V

O Rodrigo voltou-se quando sentiu que alguém tinha entrado no quarto. Sorriu para o João e voltou-se de novo para o extra-terrestre que já não estava lá.

“Bem, acabei de ver umas coisas incríveis!! Sabias que as cabeças de camarão podem ter velocidade suficiente para abrirem buracos na pele? E ficarem presas o suficiente para nem conseguires tirar a puxar pelos bigodes? Ah e os bigodes a saírem dos narizes dos putos? Isto é incrível! Nunca pensei que um hospital pudesse ser tão educativo!” Os olhos do João brilhavam com as memórias de todo o conhecimento recém adquirido. “Então e tu? Como te sentes? Já acordaste de vez?”
“Não sei... achas que o subconsciente sabe coisas que nós não sabemos? Assim coisas que lemos e achamos que esquecemos mas que ficam cá?”
“Já vi que não!... Mas vou dar-te o desconto por causa da medicação que te deram.”
“Estava aqui alguém comigo quando entraste?”
“Não, tens estado sempre sozinho. Mas se continuares assim, eu prometo que digo aos médicos que sofreste uma concussão!...”
“Se calhar... sabias que os signos dependem da constelação onde o sol está quando nasce?”
“Não fazia ideia e também não vou perguntar a que propósito vem isso... vou mas é ligar a televisão para ver o que se passa lá fora.”

A televisão funcionava e apesar da habitual ‘chuva’ de que todas as televisões dos serviços públicos parecem sofrer, era claro que o assunto do dia era a chuva de camarão. Os pescadores estavam muito preocupados com o futuro da profissão e a União Europeia tinha suspendido toda e qualquer pesca de camarão até futuros desenvolvimentos.

“Pergunto-me se é desta que fico enjoado de camarão?...”
“Devias, até porque és alérgico.”
“Pelo menos posso dizer que provei camarão do céu!...”
“... E que achaste que estava insosso?”
“Acho que Ele devia trocar de serviço de catering.”

O João não evitou uma gargalhada.

“Bem, estou a ver que estás praticamente de volta. O que é uma ótima notícia porque o médico disse-me que quando te sentisses melhor podias ter alta imediatamente, parece que o hospital está a rebentar pelas costuras.”
“Há assim tantos alérgicos a marisco?”
“Aparentemente sim, mas tirando tu que foste o único idiota que comeu de facto um camarão, nenhum outro caso de alergia precisou de ocupar uma cama! Há muitos ferimentos causados pela queda de camarões a alta velocidade e há gente em macas no corredor à espera de camas.”
“Ok, não batas mais no ceguinho! Eu já me sinto bem e podemos ir embora.”
“E essa tua alergia só se manifesta por ingestão? É que ainda há muito camarão espalhado no chão... achas que podes andar lá fora sem problema?”
“Se eu sobrevivi ao teu saco de camarão à entrada do quarto, palpita-me que sobrevivo à rua.”

O João sorriu um pouco embaraçado e foi até à beira da cama para ajudar o amigo a levantar-se. Assim que comprovou que o Rodrigo conseguia comportar-se como um perfeito bípede, o João foi buscar o saco de camarão e desligou a televisão sem reparar que estavam a passar novas e bizarras notícias a partir de um helicóptero da ‘Caras’.

“Se calhar era melhor telefonares aos teus pais? Para avisar que está tudo bem?”
“Esqueci-me do telemóvel em casa.”
“Queres que eu telefone?”
“Não sei o número de cor. E falando nisso, por acaso não tens por aí o número da Madalena? É que fiquei de encontrar-me com ela esta tarde... e sou capaz de estar ‘ligeiramente’ atrasado.”
“Não tenho o número dela não, mas posso perguntar à Rita.” E tirou o telefone do bolso. “Afinal não, ainda não há rede.”
“A Madalena vai matar-me!”
“E com razão!... Mas pronto, vamos lá fazer isto por ordem: primeiro vamos a tua casa para falares com os teus pais e depois telefonas à Madalena. De atrasado já não passas e pode ser que a rede volte entretanto.”
“Parece-me um bom plano, mas queria fazer outra coisa primeiro.”
“O quê?”
“Em que andar é que estão os putos com os bigodes de camarão a sair do nariz?”
“Ah! Boa escolha! Ora segue aqui o ‘João GPS’: vou mostrar-te imagens inéditas...!”

domingo, junho 12, 2011

O Dia da Chuva Laranja: Parte IV

A Rita ainda não tinha acabado de engolir o último camarão que lhe tinham dado quando as pessoas à volta dela entraram em debanda. “Bem, parece que é desta que podemos finalmente ver o que se passa à nossa volta sem incluir o buço de ninguém!” O ar divertido da Rita contrastava grandemente com o semblante carregado da Madalena. “Se calhar devia tê-la obrigado a comer qualquer coisa para ver se ela se distraía do Rodrigo” pensou. Ignorou finalmente a amiga e saiu debaixo do abrigo para espreitar a ponte. A Madalena seguiu-a automaticamente. A Rita caminhou até meio da ponte com cuidado para não escorregar nas várias cabeças de camarão que cobriam o chão e espreitou o rio por cima do muro.

“Oh, não se vê camarão nenhum! Pensava que o rio ia estar coberto de camarões!...”
“Que eu saiba o camarão cozido não flutua...”
“Hoje os peixes vão ter um banquete!” Parou um bocado a pensar no que tinha dito e concluiu “este pensamento é um bocado canibal, não é?”

A Madalena encolheu os ombros e voltou a tentar telefonar ao Rodrigo. A Rita desistiu de estar empoleirada no muro e olhou à volta. A esplanada parecia deserta e os empregados entretinham-se a varrer o camarão do chão. De repente a Rita sentiu um ligeiro tremor de terra e a primeira reação que teve foi olhar para cima para ver o que se seguiria no menu... Pão torrado com manteiga seria uma boa opção!

“Sentiste?”
“O quê?”
“O chão tremeu.”
“Não senti nada.”
“Olha, de novo!! Sentiste agora?”
“Hum, é possível... acho que senti qualquer coisa. O que é que será que vem a seguir? Esta tarde parece saída de um mau episódio dos Ficheiros Secretos!”

A Rita fechou os olhos para concentrar-se e assim que sentiu um novo abalo não teve qualquer dúvida.

“Está a passar-se alguma coisa do outro lado da ponte.”
“Como assim?”
“Não é só o chão que estremece, ouve-se qualquer coisa do outro lado e o barulho está a aumentar. Acho que é melhor irmos para casa! Madalena, deixa a porra do telefone em paz e corre, a sério! Vem aí mais qualquer coisa e não é comida com certeza!”

Sem saber porquê, mas como resposta automática à urgência da amiga, a Madalena meteu o telemóvel sem rede no bolso das calças e correu atrás da Rita. Entraram no prédio e em vez de parar no segundo andar, a Rita continuou a subir. A Madalena seguiu-a sem fazer perguntas e só pararam para recuperar o fôlego quando a Rita abriu a porta que dava acesso ao terraço.

“O que achas que vamos ver aqui de cima?”
“Nada de muito mau, espero.”

A Rita foi até ao parapeito e espreitou: lá estava a esplanada e a ponte, o chão estava coberto de pintinhas cor-de-laranja. Parecia tudo calmo e ordenado, portanto olhou para a outra margem com mais cuidado e viu que alguns prédios estavam a abanar.

“Olha ali ao fundo Madalena! Vês? Há uns prédios que estão a abanar!”
“Acho que tens razão... estou a ver qualquer coisa sim. E mais abaixo? São pessoas?”
“Hum, não consigo ver bem. Se calhar são!... Parece um formigueiro em movimento.”
“Acho que são pessoas a correr e não tarda chegam aqui!”
“Parece-me seguro dizer que não estão a fugir de camarões cozidos.”
“Rita! Isto é a sério, como podes brincar com isto? Está a passar-se qualquer coisa de muito grave! Olha... estão quase a chegar à ponte!”
“Eu sei que é a sério, se não fosse eu tu ainda estavas ali!”

E perante o silêncio da Madalena, a Rita permitiu-se a desfrutar de um raro momento de glória. Mas o momento de realização pessoal não durou muito porque foi substituído pela aflição assim que aquela massa de gente invadiu a ponte. As pessoas estavam devidamente aterrorizadas com qualquer coisa e corriam sem rumo certo, esbracejavam muito e gritavam por socorro. Pelo menos ninguém parecia estar ferido... Também gritavam coisas sobre o fim do mundo, e muitas outras impossíveis de discernir.

“O que é que eles estão a dizer?”
“Não faço ideia, acho que acaba em ‘sóis’? Será ‘faróis’?”
“Não compreendo nada... eh lá, assim é muito peso na ponte!! Está demasiada gente a atravessar ao mesmo tempo! E se a ponte cai?!”

De facto a ponte vacilava com o peso extra e soltavam-se já vários sedimentos dos arcos de pedra que sustinham a ponte. As pessoas ignoravam os sinais de perigo e continuavam a atravessá-la numa correria desenfreada. Felizmente a ponte aguentou-se estoicamente e decidiu que aquele não era um bom dia para cair. As duas amigas abraçaram-se efusivamente e não evitaram uns pulinhos de alegria quando o último corredor passou. A ponte não tinha caído e estavam todos a salvo!

“Ah, construções romanas!! Toma lá isto Siza Viera: quero ver-te a construir uma assim!”
“Hehe, estão todos bem! Que alívio! Que grande ponte!! Devia ser considerada património da Humanidade!”
“E já levava uma demão de pintura como sinal do nosso agradecimento!”

Os elogios continuaram alto e bom som e se a ponte fosse mais modesta até podia ter corado de satisfação. Os pulinhos também se prolongaram até que a Madalena caiu em si.

“Mas então... as pessoas estão a fugir do quê?”

Num movimento sincronizado, as duas assomaram ao parapeito e olharam para baixo. Ambas deixaram cair o queixo ao mesmo tempo, de novo num movimento perfeito que lhes garantia o ouro olímpico na queda de queixos sincronizada. Incrédulas, não conseguiam desviar o olhar das quatro figuras gigantes que se aproximavam vagarosamente da ponte. A Rita aclarou a garganta e conseguiu fechar o maxilar o suficiente para dizer:

“Lembras-te de eu ter dito que não podia ser outro ataque de comida? Esquece.”
“Podemos mandar a ponte pelos ares?”

O Dia da Chuva Laranja: Parte III

“Ah, estás acordado... finalmente!”
“João! Epá, nem vais acreditar no sonho que tive! Estava a chover camarão e eu... que cheiro é este?”
“É o meu saco de camarão ali à entrada do quarto misturado como cheiro de desinfetante hospitalar. Não foi um sonho Rodrigo, estás mesmo num quarto de hospital a recuperar do momento acéfalo em que decidiste comer um camarão!”
“Ainda estou a sonhar? Bolas! Este sonho nunca mais acaba...”

O João não evitou um ar exasperado e saiu do quarto para arejar as ideias e talvez apanhar mais camarão. Assim que abandonou o quarto, a cortina da cama ao lado do Rodrigo abriu-se e uma cara cinzenta escura que parecia feita de rocha espreitou timidamente por trás da cortina, como se a verificar que a costa estava livre.

“Ah, finalmente sozinho! Como te sentes?”
“Bem, obrigado. Conheço-te de algum lado? Parece-me difícil esquecer alguém que tem um olho na testa, além dos dois normais... mas nunca se sabe.”
“De facto somos perfeitos desconhecidos, mas eu estava preocupado com a tua alergia...”
“Como é que isso funciona?”
“O quê?”
“Os três olhos. A imagem final não fica ligeiramente desfocada para cima ao combinar as três imagens? Hum, se calhar não... afinal eu pareço sair-me bem com dois olhos e não faço ideia porque é que só vejo a dobrar quando estou cheio de sono ou bêbedo...”
“Confesso que é a primeira vez que me fazem essa pergunta, mas se ajudar à explicação, este olho aqui em cima não funciona no espetro visível mas sim no infravermelho.”
“Ena, que fixe! Este sonho está a ficar cada vez melhor: és um extra-terrestre! E de que planeta vens?”
“Bezen, conheces?”
“Nunca ouvi falar. É aqui perto? Via Láctea ou assim?”
“É longe... acho que as nossas galáxias nem primas em quinto grau poderiam ser...”
“E como é o teu planeta? É como a Terra?”
“Não, é mais como aquele prateado que está aqui mais perto.”
“A Lua? Mas a Lua nem é um planeta, é um satélite!”
“Vocês e as manias das grandezas! E chamar planeta ‘anão’ ao vosso Plutão, será que não pensaram que poderiam ofender alguém?”
“Em nossa defesa, não sabíamos que existia ninguém para ofender! Além disso, Plutão era um satélite de Neptuno... Tem lógica que não possa ascender à classe planeta ‘normal’, não é?”
“Não sei porquê! E pelas pegadas que vimos no flyby pela Lua, diria que nem todos os humanos acham a Lua pequena demais para habitá-la. Até já começaram nas decorações: há algumas maquinetas por lá, uma bandeira e mais algumas coisas... infelizmente também parece que encontrámos um cemitério de sondas espatifadas.”
“Pois... o começo da exploração espacial foi difícil!”
“Planetas gigantes, planetas anões, satélites, anãs vermelhas, gigantes azuis... até parece que estão a falar dos tamanhos de roupa! Não vejo qual a necessidade disso, até porque comparados com a Lua os humanos são pouco mais do que um ponto perdido no pó...”
“Isso é um bocado deprimente...”
“Bem, estou a dispersar. Eu vim aqui para saber de ti e já vi que estás bem, portanto vou andando.”
“Espera! Saber de mim? Porquê?”
“Os cálculos que fizemos para a reentrada não estavam tão precisos como nós pensávamos e criámos alguma perturbação nesta dimensão...”
“Perturbação? Como chuva de camarão... cozido?”
“Parece que sim... Mas garanto que a situação está a ficar controlada! Estamos a avaliar os estragos que provocámos e a corrigir as situações mais graves. Alguns feridos ligeiros e arranhões mais feios por causa das cabeças de camarão, despistes nas estradas, valetas entupidas e um ou outro animal que pode ter comido demais e vai sofrer algumas consequências nos próximos dias... Enfim, nada que se aproxime dos rebentos de soja alemães. E eu fiquei de verificar os casos de alergias.”
“Como eu.”
“Sim, foste o caso mais grave. Não houve mais ninguém que tivesse tentado comer camarão sabendo que era alérgico.”
“A minha tia bem me diz que eu sou teimoso porque sou Touro.”
“Touro? Como assim?”
“Sim, é o meu signo... astrologia?”
“Hum, tentei perceber isso uma vez, mas não entendi. Sei que é uma religião com mais de dois mil anos que associa a data em que as pessoas nascem à constelação onde o Sol nasce nessa mesma data.”
“Já sabes mais do que eu.”
“Mas não compreendo. O Sol já não nasce nas constelações onde nascia há dois mil anos.”
“Hum, que não tinha lógica já eu sabia, mas quem sabe daqui a uns trinta mil anos a coisa não acerta?”
“E porque é que não acertam já?”
“Então e o pessoal que ganha a vida com isso? Já viste o que é chegar e dizer: ‘Parece que temos aqui uns cálculos errados e agora anda tudo dois signos para a direita, desculpem lá qualquer coisinha’? Era o fim do mundo em cuecas!”
“Também nunca entendi essa expressão. Mas há mais coisas que não compreendo, como a vossa divisão do tempo que a Terra demora a dar uma volta ao Sol...”
“Um ano?”
“Sim, dividir em doze meses onde cada mês tem os dias escolhidos à sorte e depois emendam a contagem errada a cada quatro anos, saltando cada cem a menos que seja múltiplo de quatrocentos... É muito complicado para uma coisa tão simples!! Bastava fazer a conta certa e dividir, não?”
“Assim soa a complicado! Mas também não entendo as estações, afinal, quatro estações só acontecem nalguns países. E Portugal não tarda é um país tropical! O que é um azar do caraças porque se me dessem a escolher ficava sempre na Primavera...”
“O vosso dito satélite natural está a atrasar a rotação da Terra... imagino que daqui a uns milhões de anos as coisas sejam diferentes.”
“A Lua parada parece-me bem!”
“Porquê?”
“Epá, aquilo da maré baixa não está com nada! Ter que andar quilómetros para ir tomar banho não é bem! Espero que acabe de rodar quando estiver maré cheia no Algarve. Isso sim era planeamento de valor!...”
“Esta é a conversa mais surreal que eu já tive com um ser humano e olha que ao fim de tantos séculos não é dizer pouco!!”
“Posso fazer mais uma pergunta?”
“Se posso ver o futuro? Se posso conceder-te um desejo? Ou levar-te a conhecer o resto do Universo?”
“Não... é que a tua cara parece mesmo uma rocha! Alguma vez aconteceu acordares com um caranguejo a passear por aí?...”

quinta-feira, junho 09, 2011

O Dia da Chuva Laranja: Parte II

“Mas onde é que aquela alma andará?” perguntava-se a Madalena, farta de esperar pelo Rodrigo. Inclinou-se no muro de pedra que ladeava a ponte sobre o rio e tentou pensar numa coisa que não envolvesse nenhum ato de sadismo contra o Rodrigo. Olhou para o rio e reparou que estava quase cheio, este ano nem havia falta de água apesar do calor que se fazia sentir. Aliás, o rio corria tão livremente que até dava a ideia que tinha a consistência natural da água, só a cor a lama é que estragava as aparências. A Madalena voltou a suspirar e levantou os olhos, sempre era preferível apreciar o azul do céu. E assim que levantou a cabeça, torceu o nariz. Afinal o céu não era azul e não tinha nada boa cara, aquelas nuvens não auguravam nada de bom!... Principalmente no que tocava à integridade física do Rodrigo.

Olhou à volta e decidiu que o melhor era sentar-se na esplanada à espera. “Mas porque é que os rapazes nunca sabem dizer que estão atrasados? Custa muito telefonar ou mandar sms? Que raio de mania!...” Mas desta vez ela não ia dar o braço a torcer. Não ia ser ela a telefonar e a perguntar onde ele é que se tinha enfiado, não queria começar outra discussão e estragar o resto da tarde... ainda que a chuva parecesse querer estragá-la de qualquer maneira. Pediu um sumo de laranja e ficou a observar o chão à espera das primeiras gotas e dos círculos mais escuros que não tardariam a aparecer no passeio.

“Madalena?...”
“Hum? Ah, olá Rita! Por aqui? Pensava que ias ao cinema esta tarde?”
“Era esse o plano, mas acho que vou desistir... Vem aí uma trovoada das antigas!”
“Pois, está a pôr-se bonito, está!” E olhou de novo para as nuvens antes de focar a atenção na amiga. “Incrível... sou só eu ou o céu está a ficar cor-de-laranja?...”

Olharam as duas para cima assim que soou o primeiro trovão e imediatamente antes de começar a chover camarão. Camarão cozido. A Madalena levantou-se num impulso e aproximou-se do poste do guarda-sol para ficar mais resguardada do ataque de marisco celestial. A Rita imitou-a pouco depois.

“Ó Madalena chega-te para lá!”
“Ai, cuidado! Já me pisaste duas vezes!!”
“Desculpa, mas que raio? Esta chuva aleija!”

Encolheram-se as duas debaixo do grande guarda-sol da esplanada e não tiveram que esperar muito até que outras pessoas lhes fizessem companhia. O som dos camarões a caírem no tecido por cima da cabeça delas ritmava o momento. Ninguém falava porque aquela ‘chuva’ tinha tomado toda a gente de surpresa e criava alguma consternação. No entanto, o momento de silêncio não durou muito e acabou numa cacofonia quando toda a gente decidiu falar ao mesmo tempo. Alguns decidiram passar também à ação: os mais corajosos, que pareciam coincidir com os que tinham os pés molhados, começaram a apanhar os camarões que jaziam no chão para observar com mais cuidado, como para comprovar que não era uma ilusão ótica.

“Está a chover camarão!”
“Leste-me o pensamento.”
“Não era difícil. Ai, que coisa! Pronto, agora tenho mesmo que telefonar... raios partam o rapaz! Tenho que ser sempre eu a dar o braço a torcer!”
“Telefonar a quem?”
“Ao Rodrigo! Ele devia ter-se encontrado aqui comigo há mais de meia hora e não há maneira de aparecer! Mas com esta chuvada de camarão... tenho que telefonar para saber se ele está bem.”
“E então? Ele já é crescidinho, aposto que consegue defender-se dos bigodes de um camarão!”
“Não consegue não! Ele é alérgico a marisco...”
“Ah pois é, já não me lembrava disso! Nem sei como fui esquecer-me depois da cena que foi na marisqueira... nunca mais tive coragem para voltar lá e olha que os percebes eram muito bons! E os burriés... e as sapateiras...” e perdeu-se num ar sonhador.
“E este gajo continua sem atender o telefone, aposto que se esqueceu dele em casa!... Quando ele chegar já vai ver o que é bom para a tosse!”
“Se chegar.”
“Bolas Rita, que pensamento mórbido, hem?”
“Estava a brincar contigo! Desculpa, já vi que a relação é séria! Já falas como se estivessem casados há uns anos e preparados para as bodas de prata!” E riu-se da própria piada. “Por falar nisso, há quanto tempo é que estão juntos?”
“Dois meses... Nada, isto não dá nada: toca toca e ninguém atende! Que nervos!”
“Dois meses? Bem... suponho que assim já sabem qual vai ser o cenário daqui a uns anos.”

Tentou picar mais a amiga mas acabou por desistir porque a Madalena estava demasiado ocupada a chamar nomes quer ao telefone quer ao Rodrigo. Encolheu-se um pouco mais contra o poste que suportava o guarda-sol porque cada vez chegavam mais pessoas que ela nunca tinha visto (e muito menos cheirado a curta distância) para partilhar o improvisado abrigo. Colocou-se em bicos de pés e tentou espreitar para ver se a chuva tinha intenções de abrandar.

“Será que esta chuva de camarão é como aquela chuva de sapos nos Estados Unidos? Um mini-furacão que passou num lago e sugou os sapos?”
“Ó Rita, mas tu achas mesmo que este camarão veio de um lago?!”
“E porque não?!”
“Porque este camarão está cozido?!”
“Como é que sabes isso?” E arrependeu-se logo de ter perguntado porque algumas das pessoas à volta dela estavam nesse momento a comer os ditos camarões ou a chupar as cabeças com acentuado prazer. Não só estavam cozinhados como pareciam estar bons de tempero. Algumas pessoas pararam de mastigar quando ouviram a pergunta dela e fitaram-na com interesse.
“Já alguma vez viste camarão cor-de-laranja no mar?”
“...”
“Ó Rita, o camarão tem naturalmente uma cor azulada e parece transparente dentro de água, o que ajuda à sobrevivência. Cor-de-laranja é capaz de ser um tom um bocadinho berrante para quem quer passar despercebido.”
“Está certo. Quando eu sair daqui e voltar a a encher os pulmões de ar puro, vou provar um.” Nem tinha terminado a frase quando várias mãos lhe puseram meia-dúzia de camarões debaixo do nariz. “Err, obrigada!” Com as faces um pouco mais próximas da cor do camarão, aceitou todos quantos lhe ofereceram e começou a descascá-los para passar o tempo. “Queres um?”

quarta-feira, junho 08, 2011

O Dia da Chuva Laranja: Parte I

Ao Diogo pela frase que me inspirou a escrever isto e à Aurora por tudo e mais alguma coisa! E cá vai disto:

"O tempo está esquisito."
"Agora que falas nisso, escureceu de repente, não foi?" e olhou para cima. "Está tão cinzento... Hum, estão a aparecer manchas cor-de-laranja?!"

O Rodrigo mal tinha terminado a frase quando as nuvens decidiram que estavam fartas de carregar peso alheio e deixaram-no cair. No entanto, por entre as habituais gotas gordas de chuva haviam umas com uma forma deveras peculiar, já para não falar na cor.

"Eh lá, mas o que é isto?!"
"Cheira a... camarão?!”
"Pois, é camarão. Mas não era bem isso que eu queria dizer". Coçou a cabeça numa tentativa de meter os neurónios em fila indiana. "Era mais: olha, está a chover camarão! Hum, acho que perdi a linha de raciocínio" e fechou os olhos.
"Estás a sentir-te bem?"
"Estou a ver se acordo porque este sonho está a ficar deveras parvo!"
"Sonho? Mas tu estás acordado!…"
"Não estou não!… Au!! Para que é que foi isso?"
"O beliscão foi para provar que estavas acordado, a dor e a mancha vermelha que tens agora no braço são para provar que estamos no mundo real."
"Mas ó João, tu achas mesmo que eu vou lutar contra o meu próprio subconsciente? Vou esperar que isto passe e que o despertador toque."
"Aqui o João tem a certeza que está a chover camarão e vai ali refugiar-se debaixo daquela varanda porque os bigodes dos bichos aleijam!"
"Por acaso as cabeças estão a cair a uma velocidade incrível! Mesmo estando a sonhar, é melhor ir contigo porque já vi que as dores são demasiado realistas..."
"Mas qual sonhar, pá? Está mesmo a chover camarão! A ver se arranjo um saco de plástico..."
"Para quê?" E cuidadosamente apanhou um camarão do chão, separou a cabeça do resto do corpo e começou a descascá-lo. "Hum, isto de chover camarão já cozido foi bem pensado."
"O que é que estás a fazer?!"
"A provar o camarão, o que é que te parece?” Acabou de descascar o camarão e meteu-o na boca perante o olhar incrédulo do amigo. Degustou a iguaria durante uns segundos e comunicou o veredicto final: “Acho que está ligeiramente insosso."
"Mas ficaste parvo de repente ou quê?! Tu és alérgico a marisco!!"
"Estou a sonhar por isso não posso ser alérgico a nada. Além disso, não é camarão de Espinho nem de Moçambique, é camarão do céu! O médico nunca referiu nenhuma alergia a este tipo de camarão."
"Espero que o teu sonho se tenha lembrado de dar-te um anti-histamínico, senão vou ser eu a levar-te ao hospital" e continuou a apanhar o camarão para um saco de plástico. Passados alguns minutos, a voz do Rodrigo juntou-se ao ritmo do camarão a cair.
"Hum... por acaso estou a sentir-me um bocado esquisito. Será que é desta que vou acordar?"
"Ah! Vais acordar com certeza, mas enquanto isso vens comigo ao hospital porque a tua cara está a ficar mesmo bonita!!"
"Tenho manchas? Bolas, que sonho mais realista! A minha garganta também está a ficar esquisita..."

O João tentou disfarçar o pânico que sentia cada vez que olhava para a cara do amigo: as variações do tom de pele e de forma pareciam saídas de um filme sem orçamento para efeitos especiais decentes. Olhou à volta para ver se podia pedir ajuda a alguém mas a rua estava deserta, provavelmente tinham ido todos para uma zona mais aberta apanhar camarão. E o raio do telemóvel teimava em não dar sinais de vida!... Seria da tempestade de camarão? Viria maionese a seguir?! Obrigou-se a deixar de pensar em coisas parvas e empurrou o Rodrigo na direção do hospital. Será que os camarões tinham inutilizado alguma antena? Ou seria demasiada gente pendurada na rede a enviar fotografias da chuva de camarão? Lançou um último o olhar ao amigo antes de começar numa grande correria e tentou concentrar-se: “Primeiro chegas ao hospital e pedes ajuda, depois podes pensar no que te apetecer!... Podes inclusivamente pensar na Rita num dia em que se tenha esquecido de vestir completamente e chegue à escola em roupa interior. Humpf! O hospital!! Concentra-te, por favor!”

sábado, maio 21, 2011

Viver no Momento

Hoje adormeci enquanto estava a ler. No meu sonho entraste no apartamento sem fazer barulho, pousaste as chaves na mesa e foste pé ante pé até ao quarto. Deitaste-te ao meu lado, fizeste-me umas festas no braço e beijaste-me na face que não estava escondida pela colcha. Não tiraste logo os lábios e esfregaste-os devagar como fazes sempre. Será para sentir a suavidade da pele?… E eu sorri na expectativa de ver-te. Uns momentos depois, e ainda a sorrir, abri os olhos. Vi-o a milímetros da minha cara e o susto fez-me cair da cama.

Já me imaginei mil vezes a contar-te isto e em todas as versões desmanchas-te a rir quando te conto esta parte. Não consigo ver-te a reagir de outra forma ao saber que eu caí mesmo da cama abaixo. E imagino-te a rir à gargalhada enquanto descrevo como foi explicar-lhe porque é que me assustei ao ver a cara dele. Acho que te ris do ridículo da situação e por saberes que estava a sonhar contigo. Ou pelo menos de um dos dois.

Ele também se riu depois de ajudar-me a levantar e acho que não notou como a minha atitude mudou radicalmente. Não sabia o que fazer nem dizer, fingi que ouvia o que ele estava a contar-me e pensava em como podia ver-te. Só te queria a ti. Queria ver o teu sorriso nesses lábios tão finos que nem chamam a atenção. Ou espero que não chamem? Nem eu sei o que quero, só o que me apetece. Apetece-me falar contigo enrolada no teu colo até o sol nascer. Apetece-me tanto passar tempo contigo, até pode ser em silêncio. Sabias que na semana passada ele telefonou-me para ir jantar fora? Estive o jantar todo a observar o pessoal à minha volta enquanto evitava olhar em frente. E só quando senti o alívio de entrar no carro e ir embora sozinha é que finalmente a ficha caiu e eu percebi o que se passava. Ele pediu-me em casamento e eu aceitei. E agora?...

segunda-feira, fevereiro 07, 2011

O Queijo Suíço

Se calhar alguns reconhecerão este texto porque ando às voltas com ele desde 2008. Já mudei tanta vez a história que já nem sei muito bem como começou! Ainda que tenha a plena consciência de que consigo voltar a mudar tudo se me deixarem, decidi hoje que estava farta de andar com esta história atrás e resolvi publicá-la aqui. Ainda vou arrepender-me, mas cá fica. É a primeira história que tem um tamanho considerável, portanto fica o aviso: são 70 páginas!!

Quem achar que aguenta o desafio, faça o favor de descarregar o ficheiro ou ler a história aqui em baixo ou no Scribd. A única coisa que espero com isto é conseguir arrancar pelo menos dois sorrisos a alguém!
O Queijo Suíço

sexta-feira, janeiro 07, 2011

Sugestão de Novo Ano

Tenho andado um bocado afastada destas lides, embora a vontade de escrever continue cá dentro. Para acender um pouco a chama das histórias curtas cheias de bom humor, queria partilhar uma recente descoberta minha que dá pelo nome de R. J. Silver. E cá ficam as duas histórias que ele escreveu até agora, espero que se riam tanto como eu:

The Princess & the Penis
The Ballerina, The Gymnast, and The Yoga Master