domingo, junho 12, 2011

O Dia da Chuva Laranja: Parte III

“Ah, estás acordado... finalmente!”
“João! Epá, nem vais acreditar no sonho que tive! Estava a chover camarão e eu... que cheiro é este?”
“É o meu saco de camarão ali à entrada do quarto misturado como cheiro de desinfetante hospitalar. Não foi um sonho Rodrigo, estás mesmo num quarto de hospital a recuperar do momento acéfalo em que decidiste comer um camarão!”
“Ainda estou a sonhar? Bolas! Este sonho nunca mais acaba...”

O João não evitou um ar exasperado e saiu do quarto para arejar as ideias e talvez apanhar mais camarão. Assim que abandonou o quarto, a cortina da cama ao lado do Rodrigo abriu-se e uma cara cinzenta escura que parecia feita de rocha espreitou timidamente por trás da cortina, como se a verificar que a costa estava livre.

“Ah, finalmente sozinho! Como te sentes?”
“Bem, obrigado. Conheço-te de algum lado? Parece-me difícil esquecer alguém que tem um olho na testa, além dos dois normais... mas nunca se sabe.”
“De facto somos perfeitos desconhecidos, mas eu estava preocupado com a tua alergia...”
“Como é que isso funciona?”
“O quê?”
“Os três olhos. A imagem final não fica ligeiramente desfocada para cima ao combinar as três imagens? Hum, se calhar não... afinal eu pareço sair-me bem com dois olhos e não faço ideia porque é que só vejo a dobrar quando estou cheio de sono ou bêbedo...”
“Confesso que é a primeira vez que me fazem essa pergunta, mas se ajudar à explicação, este olho aqui em cima não funciona no espetro visível mas sim no infravermelho.”
“Ena, que fixe! Este sonho está a ficar cada vez melhor: és um extra-terrestre! E de que planeta vens?”
“Bezen, conheces?”
“Nunca ouvi falar. É aqui perto? Via Láctea ou assim?”
“É longe... acho que as nossas galáxias nem primas em quinto grau poderiam ser...”
“E como é o teu planeta? É como a Terra?”
“Não, é mais como aquele prateado que está aqui mais perto.”
“A Lua? Mas a Lua nem é um planeta, é um satélite!”
“Vocês e as manias das grandezas! E chamar planeta ‘anão’ ao vosso Plutão, será que não pensaram que poderiam ofender alguém?”
“Em nossa defesa, não sabíamos que existia ninguém para ofender! Além disso, Plutão era um satélite de Neptuno... Tem lógica que não possa ascender à classe planeta ‘normal’, não é?”
“Não sei porquê! E pelas pegadas que vimos no flyby pela Lua, diria que nem todos os humanos acham a Lua pequena demais para habitá-la. Até já começaram nas decorações: há algumas maquinetas por lá, uma bandeira e mais algumas coisas... infelizmente também parece que encontrámos um cemitério de sondas espatifadas.”
“Pois... o começo da exploração espacial foi difícil!”
“Planetas gigantes, planetas anões, satélites, anãs vermelhas, gigantes azuis... até parece que estão a falar dos tamanhos de roupa! Não vejo qual a necessidade disso, até porque comparados com a Lua os humanos são pouco mais do que um ponto perdido no pó...”
“Isso é um bocado deprimente...”
“Bem, estou a dispersar. Eu vim aqui para saber de ti e já vi que estás bem, portanto vou andando.”
“Espera! Saber de mim? Porquê?”
“Os cálculos que fizemos para a reentrada não estavam tão precisos como nós pensávamos e criámos alguma perturbação nesta dimensão...”
“Perturbação? Como chuva de camarão... cozido?”
“Parece que sim... Mas garanto que a situação está a ficar controlada! Estamos a avaliar os estragos que provocámos e a corrigir as situações mais graves. Alguns feridos ligeiros e arranhões mais feios por causa das cabeças de camarão, despistes nas estradas, valetas entupidas e um ou outro animal que pode ter comido demais e vai sofrer algumas consequências nos próximos dias... Enfim, nada que se aproxime dos rebentos de soja alemães. E eu fiquei de verificar os casos de alergias.”
“Como eu.”
“Sim, foste o caso mais grave. Não houve mais ninguém que tivesse tentado comer camarão sabendo que era alérgico.”
“A minha tia bem me diz que eu sou teimoso porque sou Touro.”
“Touro? Como assim?”
“Sim, é o meu signo... astrologia?”
“Hum, tentei perceber isso uma vez, mas não entendi. Sei que é uma religião com mais de dois mil anos que associa a data em que as pessoas nascem à constelação onde o Sol nasce nessa mesma data.”
“Já sabes mais do que eu.”
“Mas não compreendo. O Sol já não nasce nas constelações onde nascia há dois mil anos.”
“Hum, que não tinha lógica já eu sabia, mas quem sabe daqui a uns trinta mil anos a coisa não acerta?”
“E porque é que não acertam já?”
“Então e o pessoal que ganha a vida com isso? Já viste o que é chegar e dizer: ‘Parece que temos aqui uns cálculos errados e agora anda tudo dois signos para a direita, desculpem lá qualquer coisinha’? Era o fim do mundo em cuecas!”
“Também nunca entendi essa expressão. Mas há mais coisas que não compreendo, como a vossa divisão do tempo que a Terra demora a dar uma volta ao Sol...”
“Um ano?”
“Sim, dividir em doze meses onde cada mês tem os dias escolhidos à sorte e depois emendam a contagem errada a cada quatro anos, saltando cada cem a menos que seja múltiplo de quatrocentos... É muito complicado para uma coisa tão simples!! Bastava fazer a conta certa e dividir, não?”
“Assim soa a complicado! Mas também não entendo as estações, afinal, quatro estações só acontecem nalguns países. E Portugal não tarda é um país tropical! O que é um azar do caraças porque se me dessem a escolher ficava sempre na Primavera...”
“O vosso dito satélite natural está a atrasar a rotação da Terra... imagino que daqui a uns milhões de anos as coisas sejam diferentes.”
“A Lua parada parece-me bem!”
“Porquê?”
“Epá, aquilo da maré baixa não está com nada! Ter que andar quilómetros para ir tomar banho não é bem! Espero que acabe de rodar quando estiver maré cheia no Algarve. Isso sim era planeamento de valor!...”
“Esta é a conversa mais surreal que eu já tive com um ser humano e olha que ao fim de tantos séculos não é dizer pouco!!”
“Posso fazer mais uma pergunta?”
“Se posso ver o futuro? Se posso conceder-te um desejo? Ou levar-te a conhecer o resto do Universo?”
“Não... é que a tua cara parece mesmo uma rocha! Alguma vez aconteceu acordares com um caranguejo a passear por aí?...”

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