domingo, junho 12, 2011

O Dia da Chuva Laranja: Parte IV

A Rita ainda não tinha acabado de engolir o último camarão que lhe tinham dado quando as pessoas à volta dela entraram em debanda. “Bem, parece que é desta que podemos finalmente ver o que se passa à nossa volta sem incluir o buço de ninguém!” O ar divertido da Rita contrastava grandemente com o semblante carregado da Madalena. “Se calhar devia tê-la obrigado a comer qualquer coisa para ver se ela se distraía do Rodrigo” pensou. Ignorou finalmente a amiga e saiu debaixo do abrigo para espreitar a ponte. A Madalena seguiu-a automaticamente. A Rita caminhou até meio da ponte com cuidado para não escorregar nas várias cabeças de camarão que cobriam o chão e espreitou o rio por cima do muro.

“Oh, não se vê camarão nenhum! Pensava que o rio ia estar coberto de camarões!...”
“Que eu saiba o camarão cozido não flutua...”
“Hoje os peixes vão ter um banquete!” Parou um bocado a pensar no que tinha dito e concluiu “este pensamento é um bocado canibal, não é?”

A Madalena encolheu os ombros e voltou a tentar telefonar ao Rodrigo. A Rita desistiu de estar empoleirada no muro e olhou à volta. A esplanada parecia deserta e os empregados entretinham-se a varrer o camarão do chão. De repente a Rita sentiu um ligeiro tremor de terra e a primeira reação que teve foi olhar para cima para ver o que se seguiria no menu... Pão torrado com manteiga seria uma boa opção!

“Sentiste?”
“O quê?”
“O chão tremeu.”
“Não senti nada.”
“Olha, de novo!! Sentiste agora?”
“Hum, é possível... acho que senti qualquer coisa. O que é que será que vem a seguir? Esta tarde parece saída de um mau episódio dos Ficheiros Secretos!”

A Rita fechou os olhos para concentrar-se e assim que sentiu um novo abalo não teve qualquer dúvida.

“Está a passar-se alguma coisa do outro lado da ponte.”
“Como assim?”
“Não é só o chão que estremece, ouve-se qualquer coisa do outro lado e o barulho está a aumentar. Acho que é melhor irmos para casa! Madalena, deixa a porra do telefone em paz e corre, a sério! Vem aí mais qualquer coisa e não é comida com certeza!”

Sem saber porquê, mas como resposta automática à urgência da amiga, a Madalena meteu o telemóvel sem rede no bolso das calças e correu atrás da Rita. Entraram no prédio e em vez de parar no segundo andar, a Rita continuou a subir. A Madalena seguiu-a sem fazer perguntas e só pararam para recuperar o fôlego quando a Rita abriu a porta que dava acesso ao terraço.

“O que achas que vamos ver aqui de cima?”
“Nada de muito mau, espero.”

A Rita foi até ao parapeito e espreitou: lá estava a esplanada e a ponte, o chão estava coberto de pintinhas cor-de-laranja. Parecia tudo calmo e ordenado, portanto olhou para a outra margem com mais cuidado e viu que alguns prédios estavam a abanar.

“Olha ali ao fundo Madalena! Vês? Há uns prédios que estão a abanar!”
“Acho que tens razão... estou a ver qualquer coisa sim. E mais abaixo? São pessoas?”
“Hum, não consigo ver bem. Se calhar são!... Parece um formigueiro em movimento.”
“Acho que são pessoas a correr e não tarda chegam aqui!”
“Parece-me seguro dizer que não estão a fugir de camarões cozidos.”
“Rita! Isto é a sério, como podes brincar com isto? Está a passar-se qualquer coisa de muito grave! Olha... estão quase a chegar à ponte!”
“Eu sei que é a sério, se não fosse eu tu ainda estavas ali!”

E perante o silêncio da Madalena, a Rita permitiu-se a desfrutar de um raro momento de glória. Mas o momento de realização pessoal não durou muito porque foi substituído pela aflição assim que aquela massa de gente invadiu a ponte. As pessoas estavam devidamente aterrorizadas com qualquer coisa e corriam sem rumo certo, esbracejavam muito e gritavam por socorro. Pelo menos ninguém parecia estar ferido... Também gritavam coisas sobre o fim do mundo, e muitas outras impossíveis de discernir.

“O que é que eles estão a dizer?”
“Não faço ideia, acho que acaba em ‘sóis’? Será ‘faróis’?”
“Não compreendo nada... eh lá, assim é muito peso na ponte!! Está demasiada gente a atravessar ao mesmo tempo! E se a ponte cai?!”

De facto a ponte vacilava com o peso extra e soltavam-se já vários sedimentos dos arcos de pedra que sustinham a ponte. As pessoas ignoravam os sinais de perigo e continuavam a atravessá-la numa correria desenfreada. Felizmente a ponte aguentou-se estoicamente e decidiu que aquele não era um bom dia para cair. As duas amigas abraçaram-se efusivamente e não evitaram uns pulinhos de alegria quando o último corredor passou. A ponte não tinha caído e estavam todos a salvo!

“Ah, construções romanas!! Toma lá isto Siza Viera: quero ver-te a construir uma assim!”
“Hehe, estão todos bem! Que alívio! Que grande ponte!! Devia ser considerada património da Humanidade!”
“E já levava uma demão de pintura como sinal do nosso agradecimento!”

Os elogios continuaram alto e bom som e se a ponte fosse mais modesta até podia ter corado de satisfação. Os pulinhos também se prolongaram até que a Madalena caiu em si.

“Mas então... as pessoas estão a fugir do quê?”

Num movimento sincronizado, as duas assomaram ao parapeito e olharam para baixo. Ambas deixaram cair o queixo ao mesmo tempo, de novo num movimento perfeito que lhes garantia o ouro olímpico na queda de queixos sincronizada. Incrédulas, não conseguiam desviar o olhar das quatro figuras gigantes que se aproximavam vagarosamente da ponte. A Rita aclarou a garganta e conseguiu fechar o maxilar o suficiente para dizer:

“Lembras-te de eu ter dito que não podia ser outro ataque de comida? Esquece.”
“Podemos mandar a ponte pelos ares?”

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