“Eu disse-te que devíamos ter virado à esquerda!”
“Mas o que é que tu sabes? Estavas praticamente inconsciente quando entraste aqui!”
“E mesmo assim parece que estava mais acordado do que tu!”
“Ah sim?”
“Sim, já passámos por este sinal de ‘obstetrícia’ umas três vezes e há mais de dez minutos que não vejo um gajo sem seres tu!”
“Bolas, estamos no rés-do-chão! Quão difícil pode ser encontrar a saída?!”
O Rodrigo, já definitivamente recuperado da medicação e do camarão mortífero, estava a sentir-se ligeiramente claustrofóbico. Não só o teto do hospital era muito baixo, como haviam ali demasiadas mulheres com graves problemas de retenção de líquidos. Assim, quando viu uma enfermeira ao longe e começou a acreditar que ainda podia sair daquele edifício demoníaco antes de fazer 50 anos, não pensou duas vezes e correu na direção dela. Assim que chegou perto da enfermeira e confirmou que não era uma miragem, não resistiu e deu-lhe um abraço sentido: a salvação tinha chegado!
“Rodrigo?!”
Aparentemente a salvação e a Madalena tinham chegado juntas.
“Madalena?!”
“Nem acredito nisto! Eu super preocupada contigo, a pensar que te tinha acontecido alguma coisa e tu andas a enganar-me com uma enfermeira?!”
“Ora calma lá, não é nada disso!” E virou-se para a enfermeira que ainda tinha nos braços “pois não?”
“Garanto que não! Eu nunca tinha visto este pacóvio na minha vida! E se não fizer o favor de largar-me agora mesmo, eu chamo o segurança!!”
Os braços do Rodrigo abriram-se automaticamente e ele colocou as palmas das mãos para a frente num gesto defensivo. Nem sabia de quem devia sentir mais medo: se do segurança que era capaz de ser grande, ou se da cara da Madalena que não augurava um feliz reencontro. Felizmente o João chegou e ele não teve que ser o primeiro a falar.
“Madalena!!! Que bom ver-te! Andamos aqui às voltas há imenso tempo e não há maneira de sairmos daqui!! O Rodrigo hoje não está nada bem e ainda por cima abraçou a enfermeira...” O Rodrigo lançou-lhe um ar assassino. “Err... Acho que ficou demasiado feliz por ver finalmente alguém que podia indicar-nos a saída?...”
“O Rodrigo tem boca, acho que ele não precisa que te desculpes por ele.”
O João encolheu-se num “uiii!” e numa bonita amostra da forte amizade que o unia ao Rodrigo, sorriu-lhe numa clara indicação de “estás por tua conta pá!”, enquanto cruzava os braços para apreciar melhor a cena que se seguiria.
“Ó Madalena, não te ponhas com coisas! Eu tive uma reação alérgica e o João trouxe-me ao hospital. A sério que eu não conheço aquela enfermeira de lado nenhum, eu só achei que ela ia ajudar-nos a sair daqui!”
“Eu quero saber porque é que me deixaste plantada à tua espera esta tarde sem nunca atender o telefone, isso sim! E a única justificação plausível era estares em coma!!”
O João suprimiu outro ‘ui’ em voz alta e decidiu que afinal não queria ver a cena nem ser testemunha dos maus tratos a que o Rodrigo ia ser sujeito. Voltou-se para ver se ainda apanhava a enfermeira e espreitou no quarto mais próximo. E, como sempre, esqueceu-se de tudo quando viu a Rita sentada numa cadeira ao canto do quarto. Só depois de esfregar os olhos três vezes é que decidiu que era mesmo ela e à quarta é que reparou que ela estava a soro.
“Rita! O que é que te aconteceu?”
“João? O que fazes aqui?”
“Vim trazer o Rodrigo, ele teve uma reação alérgica aos camarões.”
“Ah, a Madalena tinha razão em estar preocupada com ele então. Quando a encontrei estava fula à espera dele! Acho que o Rodrigo se esqueceu que tinham um encontro marcado ou qualquer coisa assim.”
“Nah, ele lembrava-se.”
“A sério? Então não apareceu por causa dos camarões?”
“Pois... Então mas deixa lá o Rodrigo, o que se passa contigo? Também és alérgica a marisco?”
“Não, acho que comi demasiados camarões! Estava muito mal disposta e a Madalena resolveu trazer-me até aqui. Ainda bem porque parece que estava a ficar desidratada...”
“Estás a sentir-te melhor?”
O João esqueceu-se completamente do saco de camarões que tinha na mão, deixou-o cair e não resistiu a pegar na mão da Rita. Ela sorriu com o impulso dele e não retirou a mão dela. Continuaram a conversar durante alguns minutos até que foram interrompidos pelo sinal de alarme do hospital. A intensidade das luzes baixou e os sinais de saída ficaram finalmente visíveis. O João apertou a mão da Rita com mais força e perguntou-se se a discussão entre o Rodrigo e da Madalena tinha escalado ao nível de disparar o alarme do hospital. A resposta não tardou porque entraram ambos de rompante no quarto, e qualquer um deles conservava a sua integridade física. Seguiu-se uma troca cúmplice de olhares entre os dois elementos do sexo feminino e, sem se aperceber, a Rita disse o que estava a pensar em voz alta.
“Os caracóis!”
“Caracóis?... Não te preocupes com os caracóis, estás linda como sempre!”
A Rita precisou de uns momentos para descodificar a frase do João e a Madalena abafou uma gargalhada. O Rodrigo continuava sem entender nada. No entanto, o momento de diversão não durou muito e o som estridente do alarme trouxe-os todos de volta à realidade hospitalar.
“Não são os caracóis dela, são os caracóis do apocalipse!”
“Quem?”
A ficha caiu primeiro na cabeça do Rodrigo que se apressou a pensar em voz alta. “Quatro caracóis que vêm destruir a Humanidade? Bolas, já não se pode confiar em ninguém!... E depois nós é que temos má fama! Como se provocar a destruição de um planeta por falhar uma reentrada fosse comparável a causar um ou outro complexo de Napoleão nalgum planeta! Incrível, mesmo!” e continuou a falar sozinho. Os três amigos entreolharam-se sem saber o que dizer ou fazer, mas como a situação pedia urgência, eles pura e simplesmente decidiram ignorar o Rodrigo (por unanimidade).
“Se os caracóis estiverem a atacar o hospital pela frente, qual é a melhor saída?”
“Se querem sair daqui, não sigam o João!”
“E ir para o terraço, não?”
Naquele momento, e até porque não há outra explicação racional para o facto, aquela pareceu uma boa ideia. Sendo assim, esperaram mais uns minutos para ver se o nível de pânico diminuía dentro do hospital ou se nem por isso. Talvez os caracóis desistissem de invadir o hospital? Os minutos de espera também davam tempo à Rita para ir recuperando.
A Madalena era sem dúvida a pessoa mais nervosa e estava constantemente a sair do quarto para avaliar a situação no corredor.
“Importas-te de ficar quieta?”
“Importo! Tu não mandas em mim!”
“Calma, vocês têm que acalmar-se!! Façam as pazes por agora, ok? Depois podem matar-se como quiserem, mas de momento quem precisa de atenção aqui sou eu e não vocês!” Respirou fundo e baixou o tom de voz “acho que o soro está quase a terminar. Podem chamar uma enfermeira para tirar-me isto do braço?”
A Madalena olhou para o corredor vazio de qualquer tipo de vida que se pudesse ver a olho nu e suspirou. “Acho que termos que ser nós a tirar-te isso.” A Rita cerrou os dentes com força.
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