“Mas onde é que aquela alma andará?” perguntava-se a Madalena, farta de esperar pelo Rodrigo. Inclinou-se no muro de pedra que ladeava a ponte sobre o rio e tentou pensar numa coisa que não envolvesse nenhum ato de sadismo contra o Rodrigo. Olhou para o rio e reparou que estava quase cheio, este ano nem havia falta de água apesar do calor que se fazia sentir. Aliás, o rio corria tão livremente que até dava a ideia que tinha a consistência natural da água, só a cor a lama é que estragava as aparências. A Madalena voltou a suspirar e levantou os olhos, sempre era preferível apreciar o azul do céu. E assim que levantou a cabeça, torceu o nariz. Afinal o céu não era azul e não tinha nada boa cara, aquelas nuvens não auguravam nada de bom!... Principalmente no que tocava à integridade física do Rodrigo.
Olhou à volta e decidiu que o melhor era sentar-se na esplanada à espera. “Mas porque é que os rapazes nunca sabem dizer que estão atrasados? Custa muito telefonar ou mandar sms? Que raio de mania!...” Mas desta vez ela não ia dar o braço a torcer. Não ia ser ela a telefonar e a perguntar onde ele é que se tinha enfiado, não queria começar outra discussão e estragar o resto da tarde... ainda que a chuva parecesse querer estragá-la de qualquer maneira. Pediu um sumo de laranja e ficou a observar o chão à espera das primeiras gotas e dos círculos mais escuros que não tardariam a aparecer no passeio.
“Madalena?...”
“Hum? Ah, olá Rita! Por aqui? Pensava que ias ao cinema esta tarde?”
“Era esse o plano, mas acho que vou desistir... Vem aí uma trovoada das antigas!”
“Pois, está a pôr-se bonito, está!” E olhou de novo para as nuvens antes de focar a atenção na amiga. “Incrível... sou só eu ou o céu está a ficar cor-de-laranja?...”
Olharam as duas para cima assim que soou o primeiro trovão e imediatamente antes de começar a chover camarão. Camarão cozido. A Madalena levantou-se num impulso e aproximou-se do poste do guarda-sol para ficar mais resguardada do ataque de marisco celestial. A Rita imitou-a pouco depois.
“Ó Madalena chega-te para lá!”
“Ai, cuidado! Já me pisaste duas vezes!!”
“Desculpa, mas que raio? Esta chuva aleija!”
Encolheram-se as duas debaixo do grande guarda-sol da esplanada e não tiveram que esperar muito até que outras pessoas lhes fizessem companhia. O som dos camarões a caírem no tecido por cima da cabeça delas ritmava o momento. Ninguém falava porque aquela ‘chuva’ tinha tomado toda a gente de surpresa e criava alguma consternação. No entanto, o momento de silêncio não durou muito e acabou numa cacofonia quando toda a gente decidiu falar ao mesmo tempo. Alguns decidiram passar também à ação: os mais corajosos, que pareciam coincidir com os que tinham os pés molhados, começaram a apanhar os camarões que jaziam no chão para observar com mais cuidado, como para comprovar que não era uma ilusão ótica.
“Está a chover camarão!”
“Leste-me o pensamento.”
“Não era difícil. Ai, que coisa! Pronto, agora tenho mesmo que telefonar... raios partam o rapaz! Tenho que ser sempre eu a dar o braço a torcer!”
“Telefonar a quem?”
“Ao Rodrigo! Ele devia ter-se encontrado aqui comigo há mais de meia hora e não há maneira de aparecer! Mas com esta chuvada de camarão... tenho que telefonar para saber se ele está bem.”
“E então? Ele já é crescidinho, aposto que consegue defender-se dos bigodes de um camarão!”
“Não consegue não! Ele é alérgico a marisco...”
“Ah pois é, já não me lembrava disso! Nem sei como fui esquecer-me depois da cena que foi na marisqueira... nunca mais tive coragem para voltar lá e olha que os percebes eram muito bons! E os burriés... e as sapateiras...” e perdeu-se num ar sonhador.
“E este gajo continua sem atender o telefone, aposto que se esqueceu dele em casa!... Quando ele chegar já vai ver o que é bom para a tosse!”
“Se chegar.”
“Bolas Rita, que pensamento mórbido, hem?”
“Estava a brincar contigo! Desculpa, já vi que a relação é séria! Já falas como se estivessem casados há uns anos e preparados para as bodas de prata!” E riu-se da própria piada. “Por falar nisso, há quanto tempo é que estão juntos?”
“Dois meses... Nada, isto não dá nada: toca toca e ninguém atende! Que nervos!”
“Dois meses? Bem... suponho que assim já sabem qual vai ser o cenário daqui a uns anos.”
Tentou picar mais a amiga mas acabou por desistir porque a Madalena estava demasiado ocupada a chamar nomes quer ao telefone quer ao Rodrigo. Encolheu-se um pouco mais contra o poste que suportava o guarda-sol porque cada vez chegavam mais pessoas que ela nunca tinha visto (e muito menos cheirado a curta distância) para partilhar o improvisado abrigo. Colocou-se em bicos de pés e tentou espreitar para ver se a chuva tinha intenções de abrandar.
“Será que esta chuva de camarão é como aquela chuva de sapos nos Estados Unidos? Um mini-furacão que passou num lago e sugou os sapos?”
“Ó Rita, mas tu achas mesmo que este camarão veio de um lago?!”
“E porque não?!”
“Porque este camarão está cozido?!”
“Como é que sabes isso?” E arrependeu-se logo de ter perguntado porque algumas das pessoas à volta dela estavam nesse momento a comer os ditos camarões ou a chupar as cabeças com acentuado prazer. Não só estavam cozinhados como pareciam estar bons de tempero. Algumas pessoas pararam de mastigar quando ouviram a pergunta dela e fitaram-na com interesse.
“Já alguma vez viste camarão cor-de-laranja no mar?”
“...”
“Ó Rita, o camarão tem naturalmente uma cor azulada e parece transparente dentro de água, o que ajuda à sobrevivência. Cor-de-laranja é capaz de ser um tom um bocadinho berrante para quem quer passar despercebido.”
“Está certo. Quando eu sair daqui e voltar a a encher os pulmões de ar puro, vou provar um.” Nem tinha terminado a frase quando várias mãos lhe puseram meia-dúzia de camarões debaixo do nariz. “Err, obrigada!” Com as faces um pouco mais próximas da cor do camarão, aceitou todos quantos lhe ofereceram e começou a descascá-los para passar o tempo. “Queres um?”
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