A Madalena tinha acabado de subir as escadas que davam acesso à plataforma onde o Rodrigo se encontrava. Estavam ambos no recinto do Festival do Caracol Saloio em Loures.
“Tudo a postos?”
“Penso que sim... agora resta esperar, não é?”
“Que remédio!...”
“Sabes que mais? Está a dar-me a fome!”
“Podes crer, só de ler o folheto até fico a salivar: Feijoada de Caracoleta, Dobradinha de Caracoleta, Pataniscas de Caracol, Pimentos Assados com Caracoleta, Espetada de Caracoleta, Cogumelos Salteados com Caracoleta, Massada de Caracol, Quiche de Caracoleta, Caracoleta à Lagareiro, Chili de Caracoleta, Caracóis de Coentrada, Caracoleta à Bulhão Pato...”
“Queres matar-me de fome?”
“Incrível, não falta aqui nada! Achas que vamos poder experimentar isto tudo?”
“Não estou a ver porque não... Se sairmos vivos disto, no mínimo têm que oferecer-nos um bocado do petisco!”
Parou de falar um momento para observar o recinto e ficou impressionado com a quantidade de gente que já se tinha juntado ali. Todos traziam sacos bem cheios, tal como fora pedido, e pareciam prontos para a ação. A Madalena também não deixou de observar o facto.
“Ena, tanta gente a chegar! Achas que sabem todos ao que vêm?”
“Espero que sim, mas quando os artistas principais chegarem logo se vê quem fica.”
Depois de uns longos minutos de espera, ouviu-se finalmente o som característico de um megafone. “ATENÇÃO! Os caracóis já foram avistados e vêm nesta direção! Podem esconder-se todos e afastem-se da zona demarcada. Repito: é proibido transitar na zona demarcada!” O comandante da polícia afastou o megafone dos lábios e falou num tom natural ao colega que tinha acabado de chegar.
“Conseguiram reunir alfaces e couves suficientes? Está tudo a postos?”
“Sim, os vegetais estão num molho naquela zona da feira” e apontou para indicar o sítio a que se referia “e já não se encontra ninguém no local.”
“Muito bem! Agora é esperar que tudo corra de acordo com o planeado...”
“Os caracóis são mesmo surdos?”
“Os especialistas dizem que sim, mas também é verdade que não temos especialistas desta espécie de caracol em particular...”
“Bem, eu acredito que vai correr tudo bem. Vai ser o melhor festival de sempre, vamos ter imensa gente e uma enorme campanha publicitária gratuita!”
“Pois Zé, esperemos que o presidente se lembre de compensar a polícia depois disto!...”
Como se tivesse ouvido a deixa para entrar, um helicóptero de um conhecido canal de notícias aproximou-se do local onde o comandante Frederico e mais uns membros da polícia se encontravam.
“Bem, parece que a festa vai começar!”
“Será que a lona aguenta tempo suficiente?”
“Estamos prestes a descobrir, mas espero sinceramente que sim. Já agora, quem é que se lembrou de marcar a lona com um enorme ‘X’ a vermelho?”
“Não sei, mas ajuda a chamar a atenção, as pessoas estão a evitar essa zona como fosse a praga. Por outro lado, também ajuda a ter a certeza de onde vai acontecer o espetáculo e as pessoas podem procurar um lugar com boa visibilidade.”
“Boa visibilidade?! Para ver caracóis de dois metros??” Como ninguém teve coragem para responder, ele continuou a falar sozinho em voz baixa “devo ficar contente por ser um ‘X’ gigante e não um alvo gigante, ‘tá visto! Ai a minha vida! Espero que os caracóis também sejam cegos!...”
Os caracóis gigantes foram precedidos pelo som de metal a torcer e de um ou outro pequeno desmoronamento. E claro, vinham acompanhados da música de fundo que anunciava o apocalipse: o som típico das coisas ‘nhanhosas’ que fazem ‘nheca nheca’ ou ‘shlop shlop’; assim como o som de um caracol gigante a avançar mergulhado numa espécie de gosma esverdeada. Devagar mas sem nunca dar um passo atrás, o quarteto de elite avançava sem misericórdia e era cada vez mais notória a capacidade destruidora do ranho que os circundava. Não havia uma única infra-estrutura que ficasse ilesa à sua passagem e as pessoas começaram a perguntar-se se aquele ranho não seria radioativo. Antes que o pânico se instalasse e as pessoas começassem a fugir, eis que apareceu o primeiro caracol no recinto e bloqueou qualquer tentativa de fuga pela avenida principal. A primeira coisa que o comandante Frederico viu foram duas antenas coroadas com dois globos que pareciam ser os olhos da criatura.
“Isto parece um filme de terror, mas um daqueles de mau gosto! Já viste bem aqueles olhos?!”
“Não é das coisas mais bonitas que vi, não. Mas não deixa de ser fascinante! Toda aquela gosma a escorrer, há ali pedaços daquela ‘nhanha’ que devem cair de metro, metro e meio, não?”
“E vista assim ampliada, a pele deles tem qualquer coisa daquele escamado dos dinossauros mas em cinzento, não tem?”
O comandante Frederico nem conseguiu esconder o nojo que aquela conversa estava a provocar-lhe, ele nem gostava de caracóis! Fez uma cara reprovadora que foi rapidamente entendida e calaram-se todos. A enorme concha castanha em espiral não tardou a aparecer e foi prontamente seguida por outras três conchas acompanhadas de mais seis pares de antenas e três pares de olhos. O melhor amigo do comandante, mortinho por meter o bedelho, tentou a sorte e quebrou o silêncio.
“É incrível como parecem caracóis de quintal. Pensei que tivessem um aspecto diferente... Mais ameaçador, talvez?”
“Já viste o estado em que ficam as coisas depois deles passarem? Queres mais ameaçador do que ter uma cidade destruída?! E não te esqueças: eles estão aqui em busca de vingança!!”
“E de alface também.” Notou um deles ao ver que o primeiro caracol tinha entrado na zona onde eles se encontravam e ia direito ao manjar que lhe estava destinado.
“Já só faltam três... e que a lona aguente até lá!”
Os três caracóis que faltavam acabaram por entrar no recinto e ficaram os quatro exatamente onde a polícia e toda a gente os queria: em cima do ‘X’ vermelho marcado na lona. Nenhum dos caracóis parecia apreensivo e o burburinho de fundo que tinha acompanhado toda a operação acabou abruptamente para dar lugar ao medo e até algum respeito pelos gastrópodes. Tal como o Rodrigo tinha previsto, algumas pessoas abandonaram os esconderijos e correram para casa, mas a maioria ficou. O único som que se ouviu durante alguns segundos foi o dos talos de alface a partirem ou de folhas de couve a serem arrastadas. Algumas pessoas deixaram de respirar tal era o suspense que pairava no ar. Até que a lona não resistiu mais debaixo daquele banho corrosivo e cedeu finalmente. Os caracóis nunca chegaram a ter hipótese e caíram pesadamente dentro do depósito de água. “AGORA!” Gritou o comandante Frederico através do megafone.
Ninguém se fez rogado e apareceram pessoas de todos os cantos e esconderijos possíveis no recinto do festival. Todos eles traziam pesados sacos às costas e uma grande vontade de acabar com aquela ameaça de uma vez por todas. Aproximaram-se com cuidado do ‘precipício’ que tinha engolido os caracóis e ainda que de vez em quando se vislumbrasse um ou outro olho na extremidade de uma antena, houve um urro de vitória seguido pelo arremesso em catadupa de milhares de condimentos para o buraco negro. As pessoas tinham trazido exatamente o que lhes tinha sido pedido: cebola picada, raminhos de orégãos, alhos pisados (infelizmente numa expressão literal), malaguetas, caldos Knorr, louro, sal e azeite. O comandante Frederico berrava ao megafone “ATENÇÃO: NADA DE SAL! O SAL É APENAS INTRODUZIDO DEPOIS DOS BICHOS MORREREM, SENÃO ELES RECOLHEM À CONCHA E NINGUÉM COME NADA!”
Os arcos de condimentos que caíam para o buraco acalmaram eventualmente, mas ninguém arredou pé porque a grande maioria também tinha trazido sal. O comandante resolveu descansar o megafone quando viu que toda a gente estava a seguir as suas instruções e aproveitou o momento para colocar-se a par das novidades.
“José, como está a questão do fogo? Conseguiram acendê-lo? Havia água suficiente no depósito?”
“Sim senhor, acabaram de informar-me que todas as paredes à volta do depósito de água estão a aquecer rapidamente e a água já atingiu os 40ºC. Não temos muita lenha para queimar, mas acho que vamos conseguir!”
“Nem que seja preciso queimar as mesas e os bancos corridos! Ninguém aqui precisa de comer sentado!”
“Sim senhor!”
A água estava a aquecer visivelmente e todo o recinto em redor do buraco que os próprios caracóis tinham ‘cavado’ estava a aquecer também. O ânimo dos lourenses não acalmava e não havia nenhum que desviasse os olhos daquela panela gigante... não fosse um deles fugir enquanto o diabo esfrega um olho!
“Será que já estão mortos?”
“Não sei, acho que a água ainda não ferve!”
“Já se pode juntar o sal?”
“Se calhar é psicológico, mas já me cheira a qualquer coisa!...”
E não era o único a salivar com a ideia do pitéu que se seguiria pois foi acompanhado de uma sincronizada sinfonia de barulhos estomacais.
Hehe! Mto, mto bom... agora sempre quero ver se os caracóis para além de muco corrosivo também são resistentes ao calor... :P
ResponderEliminarEh pá, ca porcaria, comer caracóis sem os lavar antes... :P
ResponderEliminarAurora: Nem por isso... a história tinha que acabar, não é? ;)
ResponderEliminarW.: Desconfio que a fervedura sem lavar é que os deixa "au point" ;P