“Elá, agora cheira mesmo bem!!”
“Sim, acho que o comandante é chef nos tempos livres. Viste como ele soube exatamente o momento em que se devia juntar o sal?”
“Não tens pena dos caracóis?”
“Eles não pareciam ter remorsos por ter destruído meia cidade...”
“Mas mesmo assim, atraí-los para uma armadilha e cozê-los?! Se calhar havia algum santuário de animais que podia ficar com eles ou assim...”
“Um santuário? Ó Madalena, isto é uma guerra a sério! E se não quiseres, eu fico com o teu prato.”
“Haha, que engraçadinho!”
“Escusas de tentar fazer sentir-me mal, eu vi-te a esconder um tupperware na mala!”
“Oh, mas isso é para levar à Rita e ao João! Também merecem provar um bocadinho, não?”
No centro de comando também haviam festejos perfumados pelo cheiro a orégãos que pairava no ar.
“Muitos parabéns meu comandante! Correu tudo lindamente!!”
“Sem dúvida! E este cheirinho... só faltam mesmo as minis!”
“Então e qual era o plano B? Uns dardos tranquilizantes ou assim para acalmar os bichos?”
“Hum, não... tivemos receio que os tranquilizantes afetassem o sabor e depois não havia petisco para ninguém. Ó António, o pessoal do Guiness sempre veio?”
“Sim, meu comandante. Estão agora mesmo lá em baixo a medir o ‘tacho’ mas já dizem que o recorde é nosso.”
“Então é oficial: esta é a maior ‘tachada’ de caracóis do mundo! O Festival do Caracol Saloio de Loures vai entrar para a História!! E para o Guiness!”
“Por acaso estes tipos não têm nada a ver com a cerveja, não?...”
Infelizmente o acontecimento nunca ficaria para a História, mas nessa altura toda a gente achava que sim e os festejos continuaram. O primeiro ‘grande’ problema com que se depararam foi o de cortar os caracóis: ainda que tivessem encolhido ligeiramente na cozedura, a carne de caracol é ligeiramente elástica e a dimensão absurda dos bichos não facilitou a tarefa em nada. Alguns não quiserem esperar e foram molhando as fatias de pão (também ele saloio) no molho acastanhado que ainda fumegava. Até que por fim chegou uma grua que levantou os caracóis à vez e foram servidos como ‘caracol no espeto’ ou ‘snail kebab’ para os turistas. A Madalena esperou pacientemente pela vez dela até conseguir uns bons bocados de caracol e preparou-se para abandonar a festa na companhia do Rodrigo.
“Que dia inacreditável!”
“Podes crer, mas tenho a leve sensação que ainda não acabou.”
“A sério? Eu espero sinceramente que estejas enganado porque estou tão cansada de tanta correria que só me apetece dormir!...”
Apanharam o autocarro de volta e fizeram o resto do caminho até casa da Rita a pé e de mãos dadas. Caminharam com cuidado porque o alcatrão e as pedras da calçada pareciam ter derretido e adquirido uma forma mais arredondada nas bordas com uma depressão ao meio por onde os caracóis tinham passado.
“Esta estrada parece o mar alto, quanto tempo demorarão a arranjar isto?”
“Ui, vai demorar com certeza... com a crise então, com sorte nunca mais passam carros aqui. Vendo pelo lado positivo: ganhámos zonas pedonais!”
“Bem, chegámos.” E olharam ambos para o prédio onde a Rita e o João se encontravam. “Ui, o prédio está mesmo com mau aspecto! Será que está em perigo de derrocada?”
“Penso que não, mas se fosse à Rita mudava a mobília pesada para o outro lado do apartamento.”
“Bem visto. Sobes?”
“Sim, mas sobe tu primeiro. Pareceu-me ver ali uma pessoa conhecida. Eu já subo, dá-me cinco minutos.”
E sem esperar resposta por parte da Madalena, o Rodrigo caminhou em passo apressado até ao banco onde estava alguém sentado que ele pensava reconhecer. E pois sim, parece que estavam exatamente à espera um do outro.
“Eu sabia que ia voltar a ver-te! Queres explicar este ataque de caracóis gigantes? Mais um erro de cálculo?!”
“Não, por acaso eles eram a razão pela qual viemos ao vosso planeta. Na verdade, os caracóis eram quatro fugitivos muito procurados no Universo: há galáxias que oferecem um sistema solar pela captura de apenas um deles!”
“E o que vão fazer agora? Dar-nos quatro sistemas solares?”
“Nada disso! Não podemos anunciar-nos assim aos terrestres. Aliás, nós nem sabíamos que forma eles tinham adotado para se misturarem convosco. Algo me diz que não fizeram uma pesquisa muito aprofundada sobre o assunto...”
“Então e agora o que vão fazer? Ainda que pareça que somos os únicos à margem de tudo o que se passa no Universo, a verdade é que resolvemos o vosso problema num instante!”
“De facto... milénios e milénios atrás destes delinquentes e uma das civilizações mais atrasadas que conhecemos dá cabo deles em duzentos e quarenta e quatro minutos terrestres, sem contar com o tempo de cozedura.”
“Nunca descer à Terra sob a forma de petisco!”
“É uma boa lição a retirar do dia de hoje.” E esboçou o que o Rodrigo tomou por um sorriso. “Bem, agora parece que temos muito que limpar antes de ir embora!”
“Limpar? Como assim?”
“Temos que reconstruir prédios, pavimentar estradas, limpar as montanhas de camarão que ainda por aí andam, refazer calçadas... ainda por cima calçadas! Das coisas mais trabalhosas que nos podiam calhar na rifa! Enfim!... E claro, apagar as vossas memórias e todos os registos que existem sobre o dia de hoje.”
“Apagar-nos a memória? Porquê?? Nós prestámos um excelente serviço!”
“Sem dúvida, mas dias como este não podem ficar gravados na vossa memória. Como explicar a chuva de camarões cozidos ou os caracóis gigantes? Não há nenhuma resposta natural ou pelo menos que faça sentido à vossa ciência.”
“Mas o que é o pior que pode acontecer? Ninguém sabe que o que se passou tem mão extra-terrestre. Até podem aparecer umas quantas religiões adoradoras de caracóis por causa disto, mas nós até já lhes celebramos festivais!”
“É mais complicado do que isso. Mas não te preocupes, daqui a uns minutos já não vais ter essa preocupação.”
“Mas tem mesmo que ser assim? Eu não quero ter um buraco na memória!”
“Nada de buracos, vais pensar que passaste a tarde toda com os teus amigos no cinema. E que até chegaste a horas ao filme!”
“Não é justo! Então enfrentamos extra-terrestres perigosos, batemos um recorde do Guiness e ninguém se vai lembrar de nada disto? Que mal!”
E de repente o Rodrigo ficou sozinho no banco. Não tinha gostado nada daquela despedida. Lá se decidiu a ir até casa da Rita porque o extra-terrestre não ia voltar com certeza. Pensou na chuva de camarão, nos caracóis gigantes, no ranho corrosivo e na festa que ainda devia estar decorrer em Loures. Como seria ‘acordar’ e não recordar nada de um dia que tinha tudo para ser recordado? E contado aos netos e bisnetos? Abanou a cabeça ao entrar no edifício e nem reparou que a fachada estava intacta. Subiu as escadas e bateu à porta.
“Olá! Já arejaste tudo?”
“Sim, tudo arejado! E tu Rita, como te sentes? Estás melhor?”
“Melhor?... Sim, estou bem, como sempre. Não deveria?...”
O Rodrigo acenou com a cabeça e foi até à janela da sala. Espreitou e viu que tinha tudo voltado ao normal. Coçou a cabeça sem perceber muito bem o que se tinha passado... Será?...
“Então pá? Estás mesmo nas nuvens hoje!”
“Estou um bocado cansado, o dia foi agitado.” E sentou-se ao lado da Madalena com um braço por cima dela.
“Pois, ir ao cinema é super cansativo! Cá para mim, o que te cansou foi chegares a horas, não estás habituado a essas coisas!” E riram-se em conjunto.
A noite escura caiu depressa e ele ainda não tinha conseguido ordenar as ideias. Quase não falou e os amigos estavam a estranhá-lo, mas o Rodrigo só voltou a si quando pegou na mala da Madalena antes de acompanhá-la até casa.
“O que tens aqui dentro?” E sem esperar resposta, abriu a mala e tirou um tupperware.
“O que é isso? Como é que isso foi parar à minha mala?”
“É um tupperware com comida! Caracol cozido, para ser mais exato!”
Os outros três espreitaram para dentro do recipiente de plástico.
“Ena, que grandes caracoletas essas! Estiveram no festival ontem?”
“Eu não!”
“Eu estive!” E sorriu imenso por ter finalmente a confirmação: ele ia lembrar-se daquele dia de loucos!
“Cá para mim estiveste foi a dormir e a sonhar com caracóis, isso sim!”
FIM