domingo, novembro 30, 2008

Uma Quase Hipotermia

– Porque é que não és como as outras miúdas?
– Não sou?
– Epá, tu sabes... elas preocupam-se? Telefonam e essas coisas?
– Mas eu preocupo-me... acho eu.
– Se te preocupas, não dás a entender.
– Não me apetece chatear-te dia sim dia não. É aborrecido.
– Também não estava a dizer isso.
– Então?
– Mas tu não percebes nada do que eu estou para aqui a dizer?!

Inspirei fundo e acabei por encolher os ombros. Esperei que ele dissesse qualquer coisa para acabar com o silêncio, mas não, ele estava definitivamente à espera que eu continuasse a conversa. Mas ia dizer o quê? O silêncio trouxe um sorriso de constrangimento. Senti que tinha feito uma asneira, asneira grande, mas continuava sem ideia do que se passava.

– Eu não compreendo. A sério. Não gostaste de estar comigo?
– Claro que gostei e gosto! Eu gosto de estar contigo.
– Então não compreendo onde está o problema.
– Tu não te importas.
– Com o quê?
– Estás a tirar-me do sério! E ainda por cima sinto-me uma gaja se disser que tu não me compreendes!!
– Apesar de parecer óbvio que não compreendo?
– Bolas! Esse ar de despreocupação numa conversa destas até dói, sabes?
– O que preferes que eu diga?
– Hum... - ele inspirou fundo, demasiado fundo – Tu devias estar constrangida, preocupada, qualquer coisa que te saísse naturalmente! Mas nada, estás aí com ar de quem não faz mesmo ideia do que se passa e isso irrita-me solenemente porque estás a ser sincera! Não tens medo que eu me vá embora a qualquer momento? Que isto tudo acabe? Que eu emigre para a Antárctida?
– Se for isso o que tu queres... não estou a ver porque haveria de interferir?
– Tu dás-me cabo dos nervos!!

Fitei-o demoradamente sem entender porque é que ele tinha levantado tanto o tom de voz. E ainda fiquei mais espantada quando ele se levantou e foi embora, bateu com a porta e tudo. Sobressaltei-me com a violência com que a porta foi fechada e fiquei paralisada. Não podia acreditar que ele se tinha ido embora assim. Entendia que ele não se sentia compreendido, mas não entendia aquela excitação e nervosismo. Quando estávamos juntos, estávamos juntos. Quando não estávamos, estávamos separados. Encontrávamo-nos quando nos apetecia e sem qualquer tipo de planos. Era uma relação que na realidade era uma não-relação, mas eu estava feliz com ela, tal como era. Nem teria coragem para pedir mais nada, não queria estragar o que existia e nem sabia se era capaz de aguentar mais. Olhei à volta e reparei que a roupa dele estava ainda espalhada à minha volta. Não pude evitar um sorriso quando a campainha tocou. Abri a porta e lá estava ele de boxers e meias à minha frente. Tentei falar primeiro, mas ele não me deixou:

- Tu nem me digas nada!!
- Só ia dizer que aposto que ias até casa em boxers se não estivéssemos em Dezembro. - E dei-lhe o meu melhor sorriso.
- Não imaginas o que me custou voltar para trás.
- Por acaso até imagino! Eu conheço-te um bocadinho... vá, um bocadinho assim muito pequenino!!

Ele deixou que me aproximasse e que o abraçasse.

- Estás tão frio!!
- É tudo o que tens para dizer-me? - E afastou-me. - O teu prédio é tão bom que a porta da rua não fecha e ia morrendo de frio no corredor.
- Não quero que vás embora assim.
- Não te preocupes, eu estou a vestir-me e só saio quando o casaco estiver abotoado até eu não conseguir respirar.
- Não era isso que eu queria dizer. Sim, eu sei que tu entendeste. Não te vás embora, fica cá comigo. É feriado, eu tenho aquecimento em casa e é Dezembro... ia convidar-te para fazermos a árvore de Natal? A sério, tinha planeado perguntar-te isso. Não a fiz antes porque pensei que talvez gostasses de participar?... Ou não...
- Tu estás mais embaraçada por perguntar-me isso do que sobre tudo o que te disse há pouco. Tu não sentes mesmo que me fazes sentir como se eu não existisse para ti?
- Tu existes, claro. Eu adoro estar contigo! Só não expresso isso com telefonemas, mails, cartas, sms, flores, sei lá! Eu penso em ti, mas não vejo a necessidade de dizer-te quando isso acontece. Eu acredito que penses em mim, não preciso que mo tenhas que dizer. Não me faz diferença.
- A mim faz-me.
- Desculpa. Até gostava de dizer que ia tentar mudar, mas não ia conseguir. A dada altura ia sentir-me muito estúpida por estar a pensar se devia dizer-te alguma coisa porque já passaram dois dias, se ficas chateado se não telefonar todas as noites... Prefiro só dizer quando me apetece, mesmo que não me apeteça muitas vezes. É qualquer coisa que não me entra no sistema. - E fiquei a admirar o chão, envergonhada das minhas escassas qualidades sociais.
- Tu és cá uma carga de problemas!... Tanto acho que te chateias comigo se eu estiver com outra, como acho que não te fazia diferença nenhuma. Tanto me apetece abraçar-te a noite toda como ir embora e nunca mais olhar para ti. Porque é que a ti parece tudo tão lógico e fácil e a mim é tão irracionalmente difícil??
- Não sei - encolhi os ombros - eu não sinto que é difícil. Sinto que é natural? Sinto que temos um ritmo próprio que não me apetece contrariar, saboreio as ondas quando elas vêm mas não fico chateada quando elas não vêm.
- Desconfio que não apanhei quase nada do que quiseste dizer.
- Tiras a árvore de Natal do sótão, se faz favor?
- A árvore?!... Mas quem é que te disse que eu ia ajudar-te?
- Mesmo que não ajudes depois, não consigo tirá-la sozinha.
- Estás a fazer-me sentir tão descartável de novo...
- Mas eu perguntei-te se querias ajudar-me? Disse-te que queria enfeitá-la contigo? Não entendo porque é que tornas tudo tão complicado.
- Fazes parecer tudo preto no branco. Agora mesmo até tive a sensação que tinhas razão. Não te preocupes, já passou.
- Ficas comigo então?
- O mais triste de tudo é que não consigo dizer que não. Não quando estou aqui em cima do escadote a olhar para ti de meias e com uma camisa demasiado larga para ser tua. Porque é que me fazes sentir tão impotente? Não consigo prever, planear ou alterar nada do que se passa entre nós.
- E porque é que isso tem que ser mau?
- Dá segurança, sabes? Bem, é Natal... suponho que pode ser que não seja assim tão mau.
- Podes dar-me uma lista de tudo o que queres que eu seja? Eu faço uma do que quero que tu sejas.
- Tens aspirações em relação a mim? Que choque!!
- Ha ha... traz lá a árvore. Claro que tenho, estou a pedir-te para enfeitares a minha árvore de Natal comigo, sabes o que isso significa?
- Sei, mas só porque tu és maluquinha pelo Natal. Quase que me fazes esquecer todas as arrelias que me trazes. Mas não esqueço!
- Sem problema... até podes tentar explicar-me o que queres de mim até deixares de ter fé. Eu sou toda ouvidos e mais se quiseres.
- Mas tu nunca desembaraças as luzes de Natal?!
- Bem, eu tento... mas depois desisto e compro sempre uma caixa nova...
- Vai ser um dia longo, vai vai...
- Vês, tem tudo lógica: estou contente por ter arrumado isso à parva no ano passado!!
- Hum?!
- Assim ficas mais tempo comigo.
- Ah, foi premeditado. És terrível...
- Eu sei!!

segunda-feira, novembro 03, 2008

Chuva

Estava um frio de rachar... mas fizeste-me sair de casa. A vontade de estar contigo era tão grande que nem dei pelo frio cortante quando atravessei a rua. Estava quase a chover e o negro cerrado da noite era apenas cortado por um nevoeiro suspeito. Confesso que senti-me tentada a voltar para trás e refugiar-me debaixo dos meus lençóis quentinhos. Mas tu apareceste bem à minha frente e sorriste, eu não tive a coragem de não retribuir. E que sorriso!... Chegaste de mansinho, aproximaste-te o suficiente e deste-me um beijo lento, quase que conseguia sentir os teus lábios a fazerem uma pressão crescente nos meus. Sorri apenas para ti e aqueceste-me a alma. Abraçaste-me com força, como uma velha conhecida, e deixei a minha cabeça encostada ao teu peito enquanto protegia os meus braços no calor entre nós. Senti-me protegida e amada. Que sensação quente e improvável numa noite gélida...

Senti algumas gotas de chuva no nariz e o encanto quebrou-se momentaneamente. Levantei a cabeça e olhei-te, sorrimos os dois, demos as mãos e corremos debaixo da chuva até um porto seguro. Apesar de saber que é irreal, consigo ver-nos a atravessar as ruas, a correr de mão dada enquanto a chuva cai à nossa volta. Vejo o nevoeiro cinzento iluminado em focos de laranja artificial dos candeeiros. Esqueci tudo e todos os cuidados que me ensinaram. A minha pele molhada deixava que a as tuas mãos deslizassem com mais facilidade pela minha cara, pescoço e ombros. Cheiravas lindamente e apetecia-me nunca parar de beijar-te. Sentia-me livre para fazer o que eu quisesse e não conseguia sequer conceber a ideia que podia perder-te. O meu corpo esmorecia se te sentisse longe. Desejava-te tanto que não deixava que te separasses de mim mais do que a distância dos meus lábios na tua pele.

Sempre que começa a chover em noites enevoadas e passeio por entre os candeeiros, a tua imagem fica a rodar na minha mente e aquece-me quando revivo aquelas sensações. Às vezes sonho que naquela noite te tinha dito o que significavas para mim, e que nunca quis que déssemos aquele beijo de despedida enquanto o sol nascia e as nuvens já tinham partido.

quarta-feira, outubro 01, 2008

E fugiu a sete pés

- Credo Marineide, isso é uma estupidez! - Gritou Segismunda enquanto fugia a sete pés.

Suspirei e perguntei-me, tal como já tinha feito umas milhentas vezes, porque é que eu gastava tempo a ver aqueles disparates na televisão. É certo que não tinha nada melhor para fazer, não tinha TV por cabo e, para variar, estava sem sono. Continuei a assistir enquanto a Marineide, lavada em lágrimas, tentava explicar ao amante que ainda não era aquela noite que teriam hipótese de experimentar a tão aguardada experiência a três para depois se suicidarem aquando da passagem do cometa Halley. Uma imortalidade diferente, mas com o seu quê de Romeu e Julieta. Não sei porquê, dei também por mim a sofrer com a tristeza dos dois e uma lágrima vergonhosa desceu-me pela cara. Isso fez com que eu achasse que tinha atingido o ponto mais baixo da minha existência nesse dia, levantei-me e desliguei a televisão. Finalmente, o silêncio!

Ora qual seria o ponto mais baixo da minha existência? Telefonar durante dias a fio ao Raul a pedir-lhe que voltasse para mim? Chegar a casa e voltar a telefonar com o telemóvel ligado à corrente para não ficar sem bateria caso ele atendesse? Esperá-lo à porta de casa quando ele mudou o número do telefone? Raptar-lhe o cão para ele ser obrigado a falar comigo? Ou talvez aparecer a chorar que nem uma Madalena em casa da mãe dele?... Está certo que as coisas acalmaram quando ele apresentou queixa na polícia, mas ainda hoje acho que ele podia ter tido mais consideração pela minha insistência... Ainda era capaz de dizer-lhe “fica comigo, não com ele!!” se o visse na rua. Se calhar nem tanto por sentir isso, afinal já passaram três anos, mas porque acabou por se tornar num hábito.

Pergunto-me se vai acontecer o mesmo à Marineide, depois de todo o esforço que ela está a fazer para conservar o interesse do Gerivaldo. Será que ele vai usá-la e depois fugir com outro homem? Não resisto a ligar a televisão e, para meu espanto, estão os três no quarto: o Gerivaldo, a Marineide e a Segismunda! Bato palmas de contentamento por ver que afinal ela conseguiu o que queria! Agora é que vão ficar juntos para sempre! Mas vendo bem, a Marineide parece mais interessada na Segismunda que no Gerivaldo... Será que o realizador achou que um pequeno twist lésbico fazia aumentar as audiências? Por outro lado, são 5 da manhã, quantas pessoas é que podem estar a ver este canal e não são depravadas?...

Desconfio que devia ter percebido logo quando o Raul ficou a noite toda a discutir decoração de interiores quando o apresentei aos meus pais. Mas ele era tão perfeito em tudo... menos naquela parte, ok! Aposto que o Gerivaldo nunca vai pedir à Marineide que esperem até ao casamento. Casamento, filhos, uma casinha... puff! Tudo feito em estilhaços. E eu aqui a chorar com a minha miséria, apoiada por uma caixa de kleenex, enquanto a Marineide, a Segismunda e o Gerivaldo gozam a noite da vida deles. Se fosse menos desastrada e mais corajosa, acho que o suicídio no meu caso não era uma opção, era mesmo uma necessidade.


Nota: a primeira frase foi descaradamente plagiada!

terça-feira, julho 15, 2008

Ligeiramente Insano II

Pousou a nota no lençol e não resistiu a afundar a cabeça na almofada "dele", tanto para abafar a gargalhada que ia sair como para sentir o cheiro dele. Porque é que ele tinha que ser tão encantadoramente parvo?... E irresistível?... Lá conseguiu recompor alguma da dignidade, agarrou no telemóvel e ligou-lhe.

- Sim? - A voz dele estava a fazer eco.
- Não acabou? Mas afinal quem é que manda aqui?!
- Quem veste boxers é quem manda!
- O som está esquisito, estou a ouvir tudo em duplicado?...
- Se calhar é porque estou na tua cozinha?
- Estás cá em casa?!
- Sim, e tenho os boxers vestidos! Podes vir cá confirmar!
- Porque é que ainda cá estás?
- Deixei-me dormir e era tarde demais para ir trabalhar. E tu és adorável enquanto dormes! Foi a primeira noite que passámos juntos assim! É fabuloso ver-te dormir...
- Hoje é dia de semana?!
- Oui, quinta-feira ma chérie!
- Olha lá, e porque é que estamos a falar ao telefone?
- Porque é de mau tom desligar o telefone na cara das pessoas? Além disso, tu é que estás a pagar! Ah, e por falar em pagamento, partiste mesmo o candeeiro! Mas eu já limpei os vidros que estavam no chão e...

Ficou a olhar para o telefone que emitia um som intermitente. Levantou os olhos e esperou que ela entrasse na cozinha, quando ela chegou não evitou um sorriso.

- Mas o que é que ainda estás cá a fazer?
- Não são bem os "bons dias" que eu imaginei!
- Porque é que deixaste uma nota se não ias embora?!
- Eu ia sair. Estava a pensar ir lá abaixo comprar pão e preparar o pequeno-almoço para os dois... - ela acalmou-se subitamente.
- Até que era boa ideia... Bem, há pão velho. Queres torradas?
- Isso quer dizer que não vou ser expulso em trajes menores? Uma torrada, se faz favor.
- Por agora não. Mas continuo a achar que para ires ao pão já devias estar vestido...
- Sim, mas eu ia à casa-de-banho preparar-me e depois vi os cacos do candeeiro, resolvi limpá-los primeiro.
- E aproveitaste para falar ao telefone com a Ana.
- Como sabes?
- O teu telefone está ligado e ontem desligaste-o.
- Às vezes não achas que serias mais feliz se fosses mais distraída?
- Qual foi a mentira desta vez? - Perguntou enquanto metia o pão na torradeira.
- Nenhuma! Desatou a chorar, a dizer que não me merecia... ontem encontrou o ex dela e passou a noite com ele. Que ele sempre foi o amor da vida dela e que vai voltar para ele, mas que eu sou um tipo bestial e que tem muita pena que isto acabe assim e blá blá... - Ela rompeu numa gargalhada.
- Estás a gozar certo?! Não te merecia?! - E ria-se com vontade.
- Pois, é surreal eu sei. Também não é preciso rires-te dessa maneira.
- Também te estás a rir!
- Estás a fazer-me rir! Mas pronto, torna as coisas mais fáceis para nós.
- Quais coisas? Nós acabámos, ok?... Preferes manteiga só de um lado, não é?
- Achas mesmo que acabámos? Estamos os dois quase despidos na tua cozinha. Já agora, ficas linda assim... - Não evitou uma ronda com os olhos e retomou. - E estás a preparar-me o pequeno-almoço depois de uma noite sensacional! Ainda por cima, estás a olhar para mim como se me fosses encostar ao electrodoméstico mais próximo...
- Eu estou de costas para ti. Acho que isso és tu a pensar alto. - Ele chegou-se mais perto e encostou o queixo ao ombro direito dela.
- Lembras-te de nós nesta bancada? Tem a altura ideal para...
- Eh, pára! Não quero ouvir mais nada que envolva as minhas hormonas histéricas, ok?
- Elas hoje estão de greve?
- Hoje e já deviam estar há mais tempo! Não sei como deixei arrastar tanto isto.
- Oh, não comeces com esses disparates de novo. - E abraçou a cintura dela. - Nós somos feitos um para o outro, não há como negar! Onde quer que estejamos, sentimo-nos inevitavelmente atraídos. Para quê lutar contra isso?
- Estás de luto pelo fim do teu namoro? - Ela voltou-se para ele e esbracejou com a faca da manteiga. - Que raio de conversa fatalista é essa?... - Ele tentou beijá-la, mas ela foi mais rápida e meteu-lhe uma torrada inteira na boca.
- Então?... - Tirou o que pôde da torrada da faringe e tossiu ligeiramente. - Para que foi isso?! - Começou a saborear o que restava da torrada. - Ah, está óptima! Obrigado.
- Não tem de quê! Agora fazia o favor de se afastar para eu conseguir chegar ao lava-louça?
- Faça o favor... - abriu caminho com o braço - ... amor.

Ela corou e vacilou por momentos, mas lá acertou o passo em direcção ao lava-louça.

- Ora, já são quase 11 da manhã, se calhar ainda consigo ir trabalhar de tarde.
- Nem penses! Ou achas que eu não vi como reagiste agora? Nós vamos ficar aqui os dois a falar sobre isto! Além disso, já perdeste o dia de qualquer modo.
- Estás com medo de ficar sozinho na tua casa?
- Oh, sabes que não tem nada a ver. Além disso, tenho sempre lá a minha mãe.
- Viva a independência, hem?
- Ouve-me, eu mal preguei olho esta noite e queria mesmo acordar-te com o pequeno-almoço, fazer-te uma surpresa!
- O colchão é assim tão mau? - Ele revirou os olhos e suspirou.
- Vou ignorar isso. Não dormi porque não queria perder nada desta noite. Fiquei a ver-te enquanto dormias. A suavidade do teu rosto, a tua serenidade, as curvas do teu peito, a respiração pausada... quase inaudível, a paz que transpiravas. Senti uma satisfação tão grande por estar a abraçar-te e a aquecer-te, senti-te como se fosses mesmo minha!

Ela abriu a boca, mas decidiu que o melhor era comer a torrada e ficar calada.

- Adoro quando ficas embaraçada como estás agora. Adoro quando te ris com vontade das tuas piadas más e até quando estás irritada comigo! Adoro o modo inimitável como me beijas, como adormeceste com a cabeça no meu peito, como sinto que me desejas. Eu sei que fiz imensos disparates, mas foram sempre por ti, de uma forma ou de outra. Acabaste por definir parte da minha vida... E de todos os meus amigos, ninguém me conhece como tu. Eu até me sinto mais eu quando estou contigo, sinto-me livre para fazer e dizer os disparates todos que me passam pela cabeça. Mas tu dás-me sempre a entender que não precisas de mim... E eu preciso de sentir-te e ouvir-te dizer que sou importante para ti, que me queres...
- Eu... - meteu o resto da torrada na boca, engoliu tudo de uma vez e ia jurar que que a torrada tinha ficado entalada a meio do caminho. - Eu gosto de pensar que não preciso de ti. Aliás, eu preciso de pensar isso. - Deu umas palmadinhas no peito e tossicou. - Foi horrível ficar sem ti, porque é que me deixaste?... Aprendi a viver sem ti e a não pensar no que poderia ter sido.
- Eu sei... Eu tenho medo de tentar ficar contigo e perder-te. É bem mais fácil ver-te assim aos soluços, nunca te perco porque não chego verdadeiramente a ter-te. Mas esta noite foi diferente, eu era teu e tu estavas lá só para mim, foi perfeito! Quero-te comigo... não vou prender-te, já te conheço. Quero que a tua vida seja a melhor possível, quero muito que sejas feliz e sou o primeiro a encorajar-te a voar para longe se mo pedires. Mas não posso deixar de pensar no que seria ter-te para mim... Beijar-te quando quero, e quando tu queres claro, acordar com o teu cheiro no meu corpo, com o teu sorriso, abraçar-te por trás enquanto fazes torradas, tomar banho contigo, rir-me e discutir contigo... fazer-te o almoço?
- Almoço? Hoje?! - Ele pegou-lhe nas mãos e ela parou de respirar.
- Tu conheces-me bem demais, sabes como eu sou. Isto pode correr mal! Não te posso prometer muito mais, mas vamos tentar? Eu quero tentar!... E acredita que nunca mais vou dizer isto a ninguém com esta sinceridade. Não quero deixar-te hoje e carregar o peso de saber de que és tu, sempre foste. Somos perfeitos quando estamos juntos. Não posso ir embora sem perguntar: queres ficar comigo?...
- Acho que vou estragar o momento...
- Então... Acabou mesmo? - E esboçou um ligeiro esgar de dor.
- O que dizias há pouco sobre aquela bancada? - E piscou-lhe o olho enquanto o puxava para ela. - Náaa... começou!!

sexta-feira, junho 20, 2008

Memórias Falsas

As minhas memórias são falsas e não há nenhuma que eu veja através dos meus olhos, mas sim através de uma terceira pessoa que me consegue ver. Caminho numa passadeira sem fim, onde as minhas memórias desfilam. Lembro-me de estar sentada à chinês encostada à varanda e da tesoura branca em forma de bruxa que usei para cortar o meu cabelo todo. Não me lembro de quando consegui dizer "camisola" pela primeira vez. Lembro-me de saber o nome das minhas nove Barbies. Prometi a mim mesma que nunca me ia esquecer deles. Lembro-me de ficar chateada quando tinha uma bola cinzenta de plasticina, porque é que as cores se misturavam?... Adorava brincar na padaria do meu avô e ainda hoje sei enrolar a massa do pão. Lembro-me de correr até ao pasteleiro e pedir-lhe para me fazer um guardanapo com creme de pasteleiro em vez do habitual creme de ovos, e ele fazia-me a vontade! Lembro-me do meu cabelo voltar a crescer, ficar bem comprido e adquirir um ondulado que nunca me orgulhou, mas agora vejo nas fotografias que era giro. Demorei um bocado a entender a diferença entre rapazes e raparigas, jogava à bola, brincava com carrinhos e os vestidos cor-de-rosa e cabelo comprido nunca me ajudaram muito. Rasguei mais roupa a jogar à bola do que posso imaginar. Lembro-me da primeira vez que alguém me ouviu a tocar piano.

Lembro-me das manhãs de Natal a construir castelos de Legos. Lembro-me de comer à mão quando vinha esfomeada da natação e me deixavam ficar acordada até mais tarde a ver a She-ra ou o He-man. Lembro-me de me esconder debaixo da cama porque não queria ir para a escola. Até que aprendi a ler e nunca mais perdi o vício. Os Legos também não me abandonaram até que os troquei pelos puzzles. Cresci de repente e deixei de reconhecer o meu rosto. Foi como se olhasse verdadeiramente para mim pela primeira vez. Acho que foi nesta altura que deixei de falar e de abraçar toda a gente. Reparei nos rapazes pela primeira vez. Recebi aqueles bilhetinhos com dois quadradinhos "SIM" e "NÃO" à pergunta "Queres namorar comigo?". Algumas vezes vinha também um mais ingénuo "Queres casar comigo?". Aposto que os miúdos de hoje não escrevem esse.

E cresci mais, aprendi mais, vi muito mais. Aprendi a gostar de viver. Nunca beijei ninguém ao "bate pé" e nem sei porque é que bati tantas vezes o pé?... Não me lembro do meu primeiro beijo. Nem me lembro ao certo de quem terá sido o rapaz, mas lembro-me de amar alguém pela primeira vez. Lembro-me de sofrer por me ter apercebido disso tarde demais. Não me lembro de te ter beijado a primeira vez, mas lembro-me de quando o fiz a sério pela primeira vez. Lembro-me de quase tudo o que me fizeste sentir e me ensinaste... e eu a ti, sem saber. Das sensações que descobrimos juntos e de momentaneamente entrelaçarmos as nossas vidas. Lembro-me de ter traído alguém pela primeira vez. Lembro-me de dizer adeus. Lembro-me de chorar até adormecer. Não me lembro de ter parado de chorar? Lembro-me de sentir dores, lembro-me de hospitais e lembro-me de muitas mais coisas que não quero realmente lembrar. Lembro-me de ter começado a gostar mais de mim, a defender-me melhor. Lembro-me de entender que fazer alguém rir é mais importante do que parece.

Não sei ao certo se alguém me conhece de fora para dentro. Não sei se entendem a confusão que sinto tanta vez. Não sei porque queres saber quem eu sou... está tudo junto, baralhado e marcado nas minhas mãos, sorriso e olhos. Está lá toda a minha história e é só isso que precisas de saber. Não sinto qualquer necessidade de contar-te pelo que passei para chegar até aqui. O que interessa é que cheguei.

segunda-feira, junho 16, 2008

Ligeiramente Insano

- Isto tem que acabar.
- Isto? Nós?... - Ela anuiu. - Porquê?
- Ora porquê? Raramente nos vemos e quando nos vemos é sempre a mesma coisa! Qualquer dia nem falamos, encontramo-nos logo no quarto... para além disso, tu tens namorada!
- No quarto? Mas nós ainda há pouco estivemos ali na parede da entrada e naquele sofá ali e...
- Já percebi a ideia. Eu também estava lá, ok?
- Não me digas que não gostaste, eu sei que sim!
- E eu era lá capaz de dizer que não?! Achas que costumo receber assim os convidados cá em casa?... E agora que falas nisso, tenho que ver se não partimos o candeeiro...
- Se "tu" partiste...
- ... da entrada. - Esboçou-lhe um sorriso amarelo. - Mas isto tem que acabar, não está certo.
- Mas qual é o teu problema? A Ana? Tu já sabes que...
- Sim, que vai durar no máximo três meses e depois trocas. E depois trocas de novo.
- É um ciclo saudável.
- Dá saúde e faz crescer?... Mas eu não estou preocupada se estás com a Ana ou a Joaquina, preocupa-me teres namorada e eu estar consciente do facto! Se não souber, parece que sempre posso fazer-me de estúpida e achar que estás comigo num intervalo?...
- Então faz-te de estúpida e vem cá.
- Parvo. - Cruzou os braços. - O que é que lhe disseste? Noitada com os amigos?
- Ná... trabalhar até tarde.
- E ela acredita nisso? Até esta hora?
- Também não é que lhe minta assim tantas vezes! Nós vemo-nos tão pouco, estás sempre ocupada!
- Sinto a minha sanidade mental a fugir... Eu estou ocupada?!
- Tu sabes que eu não era capaz de trair ninguém sem ser contigo.
- No fundo, és um romântico.
- Eu já lhe disse que havia assim uma miúda que eu não tinha esquecido completamente...
- E ela acha que as noitadas ajudam-te a esquecer?
- Ora, tu é que não me ajudas a esquecer-te!
- Isto não é normal!... Bem, espero que o candeeiro não esteja partido.
- Mas ainda estás preocupada com o candeeiro? Queres que eu pague aquela coisa?
- Pois, a trabalhar horas extraordinárias deves ter dinheiro que chegue...
- Que engraçadinha!
- A sério, isto tem que acabar. É de malucos!
- Mas qual é o teu problema, arranjaste namorado?
- E se tiver arranjado?
- Oh, não me digas! Eu não quero saber. A ideia de te ver com outro é... - E juntou os ombros ao pescoço num arrepio.
- Isto não é normal sabes? - Não conseguiu evitar um sorriso. - Tu é que tens namorada, eu vejo-te quando o rei faz anos e...
- Ok, pára. É só porque vocês podiam fazer... err...
- Não tenho namorado, satisfeito?
- Aaah... aliviado? Mas não é nada que me diga respeito.
- Tens cá uma lata!... Promete, hoje é a última vez que isto acontece assim!
- Mas tu queres mesmo acabar? Nem encontrarmo-nos assim uma vez ou outra? Recordar os bons velhos tempos... nós encaixamos tão bem!
- Eu não vou comentar!
- Só dizes disparates.
- Hum?! Estou a ficar com pena da tua namorada...
- Ao menos ela compreende-me!
- Vejo que isso traz-lhe benefícios evidentes. Quando é que vais mesmo acabar com ela?
- Não sei. Já esteve mais longe... sabes que vou passar o resto da semana a pensar em ti... nós.
- Tens noção que isto não é normal, certo? Vais dar comigo em maluca.
- Ora, já eras assim quando eu te conheci! Não ponhas as culpas para cima de mim!
- Última vez, ok? Finito, acabado.
- Deixa-te lá dessas coisas! Chega-te mais perto, hoje ainda vale, não?
- Não sei.
- Enquanto reflectes sobre o assunto, vem cá ter comigo. Adoro abraçar-te, especialmente quando estás calada. Adoro sentir-te perto. Posso dormir cá? Quero abraçar-te a noite toda...
- Eu nem consigo ficar chateada... oh Deus!
- Vês, nós ficamos tão bem assim os dois, bem pertinho.
- Não consigo decidir se tu és muito esperto ou eu muito burra.
- Eu vou guardar os meus pensamentos sobre esse assunto.
- Ha ha... Mas vais ficar cá a noite toda? E a tua namorada não está à tua espera?
- Deixa lá isso! Hoje somos só os dois, ok? À nossa maneira?
- Eu vou acabar num hospício!...

Acordou sozinha, já o sol ia alto. Na almofada repousava uma nota: "Isto NÃO acabou".

quarta-feira, junho 11, 2008

O eco das gargalhadas

“Cheguei!”
Contra vontade, lá desci as escadas em direcção à rua. Tu ias-te embora, e sendo assim, eu queria ir contigo. Nem vi se estava uma noite estrelada ou se estava mau tempo, não levantei o nariz uma vez sequer. Só me lembro de estar encostada a ti, lado a lado. Tinha a cabeça ligeiramente apoiada no teu ombro, estava parcialmente sentada no teu lugar e tu seguravas-me como a evitar que eu saísse daquela posição de conforto. Do rádio só saíam músicas estranhas... mas os primeiros acordes faziam-me rir quando reconhecia a improvável música e davam-nos motivos de conversa ou gargalhadas partilhadas.

Até que a vontade se sobrepôs ao riso e à conversa. Ainda sentia uma leve falta de ar da última gargalhada, mas quando olhei para ti, já estavas sério e fitavas-me com ar grave. O resto do sorriso desapareceu-me dos lábios. Mas depois não entendi, fizeste tudo só para mim... porquê? Sei dizer-te que naquele momento te queria mais do que tudo. O que quer que me tivesses dito, eu acreditava sem pensar duas vezes. No entanto, não ousei confessar-me e tu não articulaste nenhuma palavra. Ficaste a abraçar-me com força. Era um daqueles momentos em que estava perigosamente sem chão, do outro lado esperavam-me os dragões e as criaturas do fim do mundo. Eu balançava-me no limbo, sem saber se me devia deixar cair ou não. Apesar do ar grave que carregávamos naquele momento, ainda sorrio ao lembrar-me das gargalhadas, da música e dos olhares perdidos. Nuca e cabelo ligeiramente humedecido, ar quente, o teu colo e a felicidade privilegiada de não estar noutro sítio.

Para mim, foi depressa demais quando disseste que querias ir embora. Fiquei meio perdida, afastei-me bruscamente do precipício mental e voltei a enterrar os pés em solo firme. Perguntei por ti e vacilaste. Ganhei-te de volta, sem saber como nem porquê. Seguiram-se mais algumas gargalhadas que nos confortaram. Mas não estavas à vontade, eu sentia mais isso do que a minha boa disposição, nem precisava de te olhar nos olhos. Mas adoro os olhares que trocamos, desde que não estejas com ar de sofrimento. Não gosto quando estás demasiado sério, faz-me pensar que há alguma coisa de errado que eu não consigo alcançar. Beijei-te com mais vontade, sem saber o que fazer para afastar a tua sombra.

Não me deixaste ir embora sem te beijar uma última vez, foi talvez a maior prenda que me deste.

segunda-feira, maio 26, 2008

Nina

Abro os olhos como se acordasse no meio da noite com um estrondo.
Custa-me a perceber onde estou... oiço o piano e o contrabaixo num ritmo irrepreensível. Gosto do modo como os meus tímpanos vibram. Volto-me para trás e mal vejo o bar e o barman a abanar ligeiramente os ombros enquanto limpa os copos. Volto-me novamente na direcção da música e observo a plateia. Os homens mais empolgados com o espectáculo encontram-se chegados à frente, junto ao palco. Eu estou sensivelmente no meio da sala, a luz é ténue e apenas um holofote ilumina a curvilínea figura que canta numa voz envolvente, voz cansada de bebida e tabaco? Mas onde estou eu?

...Scent of the crime you know how I feel... and I'm feeling good...

Sento-me melhor na cadeira, acomodo-me e deixo que a música brilhantemente cantada tome a minha atenção. A sala cheira a fumo e mesmo eu cheiro a fumo. Tenho um copo de whisky à minha frente que não me lembro de ter pedido. Aliás, nem me lembro de gostar de whisky. Reparo que tenho um fato completo cinzento e um chapéu na cabeça. Já não me espanto de encontrar um maço de tabaco no bolso esquerdo do meu casaco, aliás, acho que devo fumar.

Gosto da acústica do local, gosto que ninguém fale e se limite a ouvir. O público respira ao ritmo das ancas da cantora, acena com a cabeça quando ela se aproxima e inclina-se perigosamente na cadeira, cada vez mais para a frente. Quando me decido a levar o copo aos lábios, eis que tu entras. É como se o tempo tivesse parado, eu fiquei gelado. Pareces-me toda a preto e branco, o vestido preto colado ao corpo, olhos negros, cabelo solto escuro caído pelas costas, a pele branca e essa nota dissonante de cor brilhante, os lábios encarnados sangue.

...Now you're here, now I know just where I'm going
No more doubt or fear, I've found my way
Your love came just in time, you found me just in time...

Meu Deus... deixo escapar num sussurro. Ainda tenho o copo suspenso no ar e já levemente inclinado. Sorris e acenas-me. Conheces-me? Vens para estar comigo? Que sonho é este que sinto tão real?... Sentas-te de pernas cruzadas, olhas para mim num sorriso enorme. Eu não oiço nada, estou parado a contemplar o pequeno reflexo do holofote que vejo no lado direito dos teus lábios. Sorrio ao ver o teu ar entusiasmado a contar qualquer coisa que não entendo. Agarras-me a mão e puxas-me para um canto da sala. Encostas o teu corpo ao meu e balanças-te, arrastando-me no teu ritmo. Eu não sei o que fazer, sinto o ritmo da música no nosso doce balanço, mas sinto-me ligeiramente envergonhado de sermos as únicas pessoas em pé a dançar. Olho em redor e reparo que, na realidade, ninguém tirou os olhos do palco. Eu e tu estamos completamente invisíveis aos olhares de todos, excepto talvez da cantora. Descansei a minha cabeça sobre a tua, apertei mais a tua mão e trouxe-a para junto ao meu ombro direito. Deixei embalar-me por ti e pela música. Tive que fazer algum esforço para não deixar fugir uma lágrima teimosa, fui tomado por uma felicidade grande demais para aguentar dentro de mim. Fiz uma promessa silenciosa. Não a ia deixar fugir. Ia estar sempre ao lado dela, amá-la sempre como naquele momento. Amá-la mesmo quando os cabelos deixassem de ser negros e o vestido deixasse de servir. Queria sentir aquela felicidade arrebatadora todos os dias, para o resto da minha vida.

O ruído aumenta de volume até se tornar demasiado para conseguir pensar. Abro os olhos, mas a intensidade da luz força-me a fechá-los novamente. Olho lentamente e vejo uma profusão de cores e pessoas num café rasca, paredes de azulejo branco manchado e luzes fluorescentes no tecto. Meio abalado, dou por mim a dançar sozinho a um canto. Mas ninguém reparou em mim. Apago o cigarro que tenho na boca e saio apressadamente em direcção ao carro. Só me permito a descansar quando me sento no lugar do condutor e deixo repousar a cabeça no volante. Respiro fundo, meto a chave na ignição e o carro começa a trabalhar. O rádio liga sozinho.

...I guess I'll never see the light
I get the blues most every night
Since I fell for you
Since I fell for you...

terça-feira, abril 29, 2008

Wishlist

Desejo-te. Quero sentir-te o mais fundo que consigas dentro de mim. Quero saborear o teu aroma e respirar o calor da tua boca. Quero sentir cada milímetro quadrado da tua pele contra a minha. Quero-te e desejo-te, ou desejo-te e quero-te? Quero dar-me a ti. Só.

sexta-feira, abril 04, 2008

Vou indo

Naquelas coisas da linguagem corporal, dizem que se alguém estiver interessado em nós, o corpo deles “aponta” na direcção do nosso e, normalmente, referem-se aos pés. Isto do interesse é um bocado subjectivo, afinal quando estou a falar em público, as pessoas têm os pés na minha direcção e alguns estão a dormir. Mas quando estamos no cinema e me dás timidamente a tua mão, tens os pés direccionados para o ecrã. Sabendo eu que o simples facto de roçares um dedo que seja na minha pessoa envolve imenso esforço da tua parte, parto do princípio que naquele momento estás interessado em mim, independentemente dos teus pés ou de teres o olhar fixo no filme. Percebo a parte dos pés quando procuras os meus debaixo da mesa e encaixas a minha perna entre as tuas, mesmo sem nunca olhar para mim. Mas quando olhas, tens um olhar tão carregado de significado que tenho que desviar o olhar. Eu não tenho quaisquer dúvidas do que queres dizer e não sei como mais ninguém vê! É um olhar que não me dá qualquer vontade de rir. Fazes-me sentir minúscula.

Não faço ideia onde estão as tuas barreiras ou se estou a pisar o risco. Onde está o risco? Olhar para ti com segundas intenções no meio de um grupo de amigos, quando nem olhas para mim? Beijos plenos de intensidade, porque carregam o peso da insegurança numa próxima vez, em plena auto-estrada reflectidos no retrovisor que ninguém vê, tal é a confusão lá fora? Nunca me insinuei tanto a alguém como a ti nessa noite, enquanto partilhávamos o mesmo lugar que na verdade eram três. Não trocamos mensagens, não há aquela tentação de escrever porque é mais fácil do que falar. Mas também não falamos? Quer dizer, falamos... mas não falamos. E lá estamos os dois a rir e a apalpar terreno numa noite qualquer em que apareças de surpresa. Nunca sei bem por onde andas e acho que pensas o mesmo de mim, apesar de termos os amigos e os locais para coincidir inúmeras vezes. Bares, música, livros, praia, fogo-de-artifício, feiras, horários nocturnos, lugares escondidos, jogos e até as nossas famílias. Música e livros são talvez os elos mais fortes. Há músicas e títulos de livros que não me lembram mais ninguém.

Somos tão descontraídos com toda a gente e tão tensos um com o outro. Onde encaixa aqui o meu namorado? E a tua namorada? Bem, o mal já está feito... acho que vou indo.

sexta-feira, março 21, 2008

Ligeiro Incómodo II

(A pedido do meu provedor oficial, a continuação! ;)

- Não, claro que não, entra. - E afastei-me da porta sem esboçar um sorriso sequer.
- Estavas a dormir?
- Não, estava a preparar-me para ir dormir. – Menti. - Não me seguiste para saber onde eu moro, pois não?

Ele ficou surpreendido com a minha sugestão e respondeu divertido:

- Ah, culpa minha porque não me lembrei dessa! Parece-me muito mais divertido do que o que eu fiz, que foi perguntar à Ana.

Nota mental: retirar a Ana de qualquer testamento que venha a fazer.

- Queres beber alguma coisa?
- Tens chá?
- Chá?! - Era a minha vez de fazer um ar de surpresa. - Ok, vou preparar o chá, volto já... Fica à vontade, tens ali o sofá se te quiseres sentar... claro, é para isso que ele serve, não é?.. Ah e tenho TV por cabo... bem, faz o que quiseres, já volto.

Chegada à cozinha, apetecia-me gritar alto e bom som. Não sei bem porquê, talvez para afastar o nervoso miudinho. Chá? Nos filmes os homens escolhem sempre uma bebida alcoólica qualquer, mas pensando bem, se ele tivesse pedido leite soava pior... Sofá para sentar?! TV por cabo? Mas que raio de conversa a tua!... E pensavas tu que eras uma miúda suficientemente despachada? Que ego-desilusão! Cheguei-me ao pé da janela da cozinha e olhei para baixo. Devia ter comprado o rés-do-chão, aquela janela era completamente inútil para fugir do meu próprio apartamento. Pensar eu que comprei o último andar para dificultar a vida aos ladrões...
Suponho que ele entrou na cozinha quando eu estava a equacionar a fuga pela janela porque não o vi entrar.

- Precisas de ajuda? - E acrescentou depois de ver a minha posição: “Deixaste cair alguma coisa lá para baixo?”
- Ah não... Estava só a ver se estava a chover - Chover??? Não tinhas nada mais estúpido para dizer?! - Esqueci-me de perguntar-te que tipo de chá preferes?
- Quais tens?

E face à minha apatia, começou a abrir os armários todos. Reparei que ele chegava à segunda prateleira sem qualquer esforço, sem dúvida que dava jeito tê-lo por perto naquela cozinha. Quando acabou de abrir todas as portas da fila de armários, ficou frente-a-frente comigo e eu continuava sem emitir qualquer som.

- Não encontro! Ora diz-me lá onde é que escondes o chá?

E sorriu à espera de resposta. Mas porque é que ele tem que sorrir? Qual é a necessidade? Aposto que agora tenho um sorriso parvo na cara! Preciso de me distrair com qualquer coisa, se calhar devia aprender a fazer ioga! Há ali um ginásio ao fundo da rua que tem aulas... Aaaah, concentra-te!! Chá... chá... chá??

- Sabes, err, eu não gosto de chá. Quero dizer, como não gosto não compro. Hum, quer dizer, quando vem cá a minha mãe compro mas... hum, de momento, não tenho. Quer dizer, eu não sabia que não tinha quando te ofereci... mas, err, se tivesse devia estar no segundo armário que abriste...

E fiquei a observar atentamente o chão. Que bela figura! Ofereces chá que não tens e parece que não tens mais vocabulário do que “quer dizer” e “hum”! Que mimo!... Estás sem dúvida a causar sensação!

- Ah, não faz mal! Eu também não tenho assim tanta sede. Voltamos para a sala? Ou vais tomar alguma coisa?
- Não queres nada sem ser chá?
- Não deixa, senão ainda temos que correr a lista de bebidas que tu não gostas!

E piscou-me o olho enquanto saía na direcção da sala. Respirei fundo, se calhar atirar-me da janela não era uma ideia assim tão má, soava a golpe de misericórdia?... Limitei-me a segui-lo como um robot sem qualquer tipo de vontade própria. Já na sala, voltou-se para mim com um ar muito sério:

- Olha, diz a verdade: estou a incomodar-te? Pareces estar a fazer um esforço enorme para aturar-me! Estou a chatear-te? Se estiver, eu vou-me embora. A sério, sem qualquer tipo de problema, eu vou-me embora!
- NÃO!!! - Boa, agora gritaste sem pensar... isso é que é auto-controlo! Agora ele acha que estás desesperada ou que tens problemas mentais. E problemas mentais até é capaz de ser um elogio neste momento! Respira fundo, tu consegues elaborar uma frase coerente... eu acredito que consegues!
- Err, não estás a incomodar, claro que não! Desculpa aquela coisa do chá, estou um bocadinho atordoada de ter acordado assim... com a campainha a esta hora, não estava à espera.
- Então sempre estavas a dormir?!

Ah... tu és a minha heroína! Se cometesses um crime, nem valia a pena arranjar testemunhas, tu denunciavas-te sozinha! És triste... deixa lá a frase coerente, tenta só provar-lhe que não és demente!
Assustei-me quando ele me pegou nas mãos porque não o vi chegar perto, mas puxei-as rapidamente por instinto.

- Mas o que foi? Eu fiz ou disse alguma coisa de mal? És casada?! - Eu abri muito os olhos e fiz um rápido sinal de negação com a cabeça.
- No dia em que nos conhecemos falaste comigo. Ficámos horas a falar e a rir, lembras-te? Não saímos muitas vezes e nunca saímos sozinhos, mas vejo que falas normalmente com as outras pessoas que também conheceste naquele dia. No entanto, evitas-me a todo o custo! Tens algum problema comigo? Meto-te medo? Estás interessada noutra pessoa?...

Estás com sorte, ele parece ser masoquista. A parte boa é que, pelos vistos, tens hipóteses, a parte má é que ele pode desinteressar-se quando se aperceber que não és totalmente deficiente...

- Sim?... Estás a ouvir-me?! Estás interessada noutra pessoa? - Ok, estou oficialmente com pena dele.
- Estou, desculpa!
- Ah...

Ele virou costas e apercebi-me de repente do que tinha dito. Corri para ele, peguei-lhe num braço e virei-o para mim no primeiro movimento firme que tinha na presença dele:

- Não, não é isso!! O “estou” era para “sim, estou a ouvir-te”! NÃO estou interessada noutra pessoa, disso tenho a certeza absoluta! É fácil de perceber que não há mais ninguém porque eu estou interessada em ti, estás a ver? Este ar de anormal e falta de discurso coerente, o que inclui o sofá para sentar e a falta de chá, é exactamente isso! Tu deixas-me muito nervosa, não sei como comportar-me ao pé de ti e acabo por parecer uma verdadeira deficiente! Desculpa! Quero tanto que repares em mim, que saibas que eu existo! Mas ao mesmo tempo, tenho imenso medo do que pensas de mim e que não gostes de como sou se me conheceres melhor... - Estou orgulhosa! Disseste duas coisas seguidas sem usar “quer dizer”, sem te engasgares e, vejam só, disseste o que sentias! Aposto que ele agora está tão chocado quanto tu!
- Mas isso é bom... não é? - E o sorriso reapareceu.
- Eu acho que sim... - E sorri de volta. - Desculpa, eu sei que fujo de ti e ainda me apetece fugir! Fico tão atrapalhada! Como não consigo tornar-me invisível, tento sair do teu campo de visão. E fica tão difícil porque quero a tua atenção, tens um sorriso desarmante e és tão interessante! Ao pé de ti, sinto-me burra e desinteressante. E, como se nota, tento arduamente provar-te que sou isso mesmo! E quando me tocas ou seguras as minhas mãos, eu adoro! Eu não sei porque tiro as minhas mãos das tuas, é como se o teu toque me desse choque! Eu quero que me segures nas mãos, a sério!...
- Não seja por isso!...

O sorriso dele agora é divertido... e olha só! Está a segurar-te nas mãos e tu deixaste! Melhor ainda, falaste com ele duas vezes num discurso lógico! Uau, por este andar, se ele se aproximar mais, ainda consegues um beijo! Ah... calma, ele está a tentar beijar-te?! Faz qualquer coisa! Beija-o de volta! Abraça-o! Se não chegares ao pescoço, usa a cintura que ele não se importa de certeza. Lembra-te de sorrir e de falar como deve ser, ah, e concentra-te! Decora o sabor do beijo, o toque das mãos dele na tua cara, a suavidade do rosto barbeado e o respirar aos soluços! E acima de tudo: pára de falar sozinha?!...

Algumas horas depois: Não posso acreditar, passaste a noite com ele!! E nem fizeste muitos disparates! Agora estás a beijá-lo e podes fazer isso quando te apetecer, não sentes que tens um poder extraordinário?! E tocar nele, sentir o beijo dele na tua testa, nas tuas mãos... Sentir o calor de o ter ali ao teu lado! Por acaso o calor é um bocadinho excessivo, mas dá-se um jeitinho e ignora-se. Que horas serão?... Será que se falares quebras o encanto e voltas ao estado de graça de deficiente mental?!

- Ai que preguiça!... Que horas serão? - Foi ele o primeiro a falar enquanto soltava os braços que me envolviam e aproveitava para espreguiçar-se.
- Não faço ideia, mas acho que ainda era capaz de beijar-te e de não deixar-te sair desta cama durante umas horas....
- Ui, quem te viu e quem te vê! - E deitou-me a língua de fora.

O teu discurso continua inteligível e esse “carinho” vindo sabe-se lá de onde valeu-te um beijo bem humorado. É incrível como as coisas mudam apenas nuns segundos! E se não fosse a lata dele, agora estavas a dormir sozinha, num sonho que estava a anos luz da felicidade real!

- O que foi aquilo?
- Ah, é o som da aparelhagem a ligar, escolher o disco... acho que posso afirmar com certeza que são 7 horas da manhã! – esclareci.
- Sete?! Já?!

Voltei-me para ele com um grande sorriso e felicidade bem estampada no rosto. O que ia sair dali? Mas será que interessava? Se calhar daqui a umas horas interessava, mas naquele momento não interessava nada! Estas últimas horas e os segundos que passavam já ninguém podia apagar...

- Que música é que tens para acordar?...

A aparelhagem respondeu como se o tivesse ouvido, respondeu-lhe a ele e a mim com a música “Nice 'n' Easy” na voz inconfundível do senhor dos olhos azuis.

- Bom gosto... melhor do que aquele pormenor do chá! - Ri-me com vontade.
- Se me lembrar, compro para a próxima vez.
- Estás a convidar-me para voltar?
- Hum.. se calhar? - E beijei-o na ponta do nariz. - Podes ficar cá?
- É sábado, não é?
- É sim...

E o Universo conspira mesmo... é sábado! E cantarolei: “to rush would be a crime 'cause nice and easy does it every time”...

quarta-feira, março 19, 2008

Ligeiro Incómodo

Ao pé de ti, as coisas têm tendência para acontecer ao contrário do que eu quero. Lembras-te daquela festa em que estavas a fugir da tua ex? Eu estava a tentar fugir de ti e, claro, tanta gente trocou de lugar que quando a comida (finalmente) chegou, estavas sentado à minha frente! Não é que isso seja um problema à escala global, mas é-o no local onde eu estou, simplesmente distrais-me. E é uma distracção complicada! Tenho que estar concentrada para não estabelecer contacto visual contigo, o que tira a concentração que devia ter para entender a conversa que estou a ter com a pessoa que está ao meu lado. Já para não dizer que não posso esticar as pernas porque posso bater nas tuas e isso podia chamar a tua atenção, estás a ver o dilema? E nos bares, como é que estando em mesas corridas, ficas sempre do outro lado do que estou sentada? É que assim a probabilidade de olhar para ti aumenta!

E se tu olhares ao mesmo tempo que eu, dá-se um curto-circuito cá dentro. Se estiver a falar, fico de boca aberta e esqueço-me do que ia a dizer. Se sorris, eu continuo de boca aberta, mas esboço um sorriso digno de um acidente vascular. Fico perdida no espaço, a realidade bloqueia. Penso sempre que nestas ocasiões o melhor é esperar que o "mau tempo" passe e desviar a cara. Mas o que fazer quando estou contigo? O que fazer quando ficamos sozinhos nalgum lado?... O Universo conspira, é verdade. Onde é que se meteu toda a gente?! Nessas alturas, escolho uma posição defensiva: não olho para ti directamente, não me mexo, cruzo os braços e espero lentamente que o tempo passe, que apareça alguém que me salve daquela arritmia. Mas tu falas comigo como se o meu comportamento fosse normal, como se eu conseguisse entender tudo o que estás a dizer. Será que estranhas quando as pessoas te dizem que eu falo muito ou que até sou simpática? Pergunto-me que parte de ti entende que estás a falar sozinho...

E aquilo de meter o braço por cima dos meus ombros? Mas porquê? Estremeço, estilhaças-me a posição e falas mais baixo de propósito. Descruzo os braços, mas não sei o que fazer com as mãos. Agarras a minha mão direita e continuas a falar enquanto o teu polegar desliza nas costas da minha mão. Eu lembro-me subitamente que sou um ser aeróbio, preciso de ar! Mas parece que a minha laringe estreitou, achas que sou alérgica à tua proximidade? Tenho cara de assustada, não tenho? Até que alguém entra na sala e eu levanto-me de um pulo. Tu calas-te e fica no ar a sensação de que algo foi interrompido, eu fujo.

A pior parte é chegar a casa e não conseguir pensar em mais nada, mas um sonho trata de arranjar tudo para ter um sono descansado. A sala, tu a falares, a tua mão sobre a minha. Eu levanto-me sem largar a tua mão, puxo-te para mim e beijo-te com toda a vontade que tenho acumulada dia após dia, bar após bar, festa após festa. No sonho, o beijo sai perfeito... não há dentes, narizes ou diferença de altura capazes de atrapalhar. Há apenas a certeza que tem que ser assim porque não podia ser de outro modo. Então todo o espaço és tu, estaria perdida se não estivesses comigo ali, sinto que tudo está tão certo, tão naturalmente óbvio... tão bom! Porque é que não é sempre assim? E depois os papéis invertem-se, és tu que tens o controlo da situação. És tu que pressionas o teu corpo contra o meu, és tu que beijas o meu ombro depois de fazer deslizar a alça do soutien. Não é que goste de sentir-me dominada, pelo contrário, mas assim sinto que me queres e é esse desejo que me corta a linha de pensamento e deixa o instinto vir ao de cima. Concentro-me apenas nas sensações, no teu toque e nos sons.

Sons... a campainha. Volto a mim devagarinho e faço uma careta enquanto abro um olho por causa da claridade. Pergunto-me quem será que me está a chatear a esta hora, ainda por cima no meio de um sonho tão bom! Espreito pela porta e fico com a respiração suspensa. Abro-te a porta e entras a albergar um sorriso perfeito, enquanto eu tenho apenas o meu ar de espantada e a boca por fechar. Perguntas enquanto eu cruzo os braços:

- Estou a incomodar?...

sábado, março 01, 2008

Quero-te

Cá estou eu em casa, sozinha. Olho pela grande janela da sala, oposta à lareira e à televisão sem som. Aproximo-me do vidro, ligeiramente cambaleante. Está escuro, não vejo nada através dele... estendo os braços e faço pressão sobre o vidro. Encosto o meu corpo todo e permito-me a descansar sobre ele. O vidro responde à minha presença e embacia a cada suspiro, cada toque morno da minha pele nua. Fecho lentamente os olhos e deixo que as lágrimas jorrem, enquanto sinto um calor húmido que não me conforta, pelo contrário, faz-me sentir ainda mais só. Deixo-me cair devagarinho, deixo-me escorrer e olho de baixo para a quantidade de dedadas que deixei no vidro e que vou ter que limpar. O sorriso tremido realiza-se em mais lágrimas e abraço-me com força a pensar que és tu. Não quero mais ninguém sem seres tu.

Sinto-me tão sozinha sem ti. És tu que me fazes vibrar, sentir, ver, respirar... que me embalas todas as noites. Agora adormeço abanada nas lágrimas de cansaço. Sinto-me tão sozinha, mas não deixo que mais ninguém se aproxime de mim. Afinal, só tu é que me faltas, contigo tudo está completo. Não quero que ninguém me toque ou me segure... porque é que não vens? Porque é que não dizes qualquer coisa? Porque é que não me dás nenhuma oportunidade para implorar-te que voltes?... Afinal, a minha vontade está em ti.

Vivo por ti e só vivo nas nossas lembranças. Estremeço só de pensar no teu nome... e a tua cara materializa-se em mim como uma música de blues. Sei que foste feito para mim, não há mais ninguém que sirva. Sem ti, não há nada, não há ninguém. Só te quero a ti. Quero parar de chorar e tens que ser tu a secar-me as lágrimas.

Não quero ninguém por perto, só te quero a ti.

sexta-feira, fevereiro 15, 2008

Pensar Alto

- Não podes substituir uma pessoa.
- Ai isso é que posso!
- Não, nunca vais substituir ninguém. Não se substitui o que uma pessoa disse num dado momento. Só ela te poderia ter dito aquilo e significar o que significou para ti. Podes ter alguém ou alguma coisa que faça o mesmo, mas não substitui... encaixa-se no mesmo espaço. A marca fica lá.
- Passaste muito tempo a pensar nisso, não?
- Na volta... - piscou-me o olho.
- Casa-te comigo!
- Eu já tenho o amor da minha vida, lembras-te?
- Achas mesmo que existe tal coisa na nossa idade?
- A minha vida é curta, mas não deixo de ter o amor dos meus vinte e seis anos, aos oitenta logo se verá.
- Vinte e seis... maneira subtil de dizer que estás quase a fazer anos.
- Estava com esperança que reparasses nisso.
- Não lhe vais dizer que estou interessado em ti?
- Não.
- Porquê?
- Não é importante.
- Eu não sou importante?!
- Estás a gozar comigo.
- Porque é que dizes isso?
- Não estás aterrorizado com a minha possível resposta, tens cara de divertimento.
- Mas podia ser a sério!
- Em parte.
- Hum?
- Não deixas de estar interessado na minha reacção.
- Tens a certeza que não o queres deixar?
- Já te disse que ele era o amor da minha vida, está marcado em mim. Não como bonita caligrafia num livro branco, mas marcado com um ferro quente! Os momentos mais intensos, os maus e os bons, as dores, as alegrias, está tudo marcado para sempre...
- O que estarias a fazer com ele agora?
- A pensar que tenho que trocar a mola do sofá.
- Isso é de uma realidade cortante...
- É por isso que estou contigo hoje.
- Achas que ele te pode deixar?
- Hoje sei que não, amanhã não sei.
- Não te preocupa?
- Um dia de cada vez torna-me a vida mais fácil de viver. Saber que agora está comigo basta-me. Já estou marcada, já te disse. Mesmo que se vá embora, nunca vai sair do que vivi até hoje, temos os destinos atados com um nó e as pontas estão soltas.
- Começo a gostar do tipo sem o conhecer, mas ele tem sorte... ai esse sorriso!!
...
- Apetece-me dar um mergulho.
- Com este frio?!
- Eu não pedi que me acompanhasses!
- Mas eu não posso ficar aqui a olhar enquanto apanhas uma pneumonia!!

Corri pela espuma já sem roupa e senti o frio gelado a cortar-me a pele psicológica. Espero que nunca ninguém a leve de mim...

segunda-feira, janeiro 21, 2008

Fairy Tale VI: O Pedro (parte III)

(...)
Ao fim de mês e meio, decidi que se ia morrer deprimida, ao menos ia sair das muralhas por uma vez que fosse. Cheguei decidida à sala do trono e informei o meu pai que ia dar um passeio fora das muralhas do castelo. Penso que ele até ia objectar porque ficou parado de boca aberta e com o dedo indicador da mão direita levantado, mas acabou por assentir com um gesto da cabeça, talvez por me ver simplesmente de pé. De qualquer modo, mandou preparar a carruagem mais segura que tínhamos e ainda enviou um corpo de 10 guardas. Pedi ao cocheiro, o sr Zé, para me levar a ver o mar... queria ver a zona mais bonita do reino com vista para o mar.

O mar era mais longe do que eu pensava. Meti a cabeça de fora da carruagem assim que saímos das muralhas e fui admirando o reino, os transeuntes e o mau cheiro. Ao fim de algum tempo, resignei-me a tapar o nariz e a respirar pela boca. Assim que saímos da zona populada, o mau cheiro dissipou-se, mas era tudo muito à base de árvores e pedras, chateei-me rapidamente. O tempo arrastava-se na curiosidade em conhecer o mar e a falta de alguém com quem falar, a Clara recusava-se a sair.

A carruagem eventualmente parou e eu saí, um bocado a medo. Fiquei arrepiada quando vi o mar pela primeira vez. Era lindíssimo! Cheirava melhor do que qualquer perfume que já me tinham vendido. Aproximei-me devagar, até deixar de existir terra debaixo dos meus sapatos, apenas areia onde me enterrei ligeiramente. Vi as ondas rebentarem e aos poucos fui perdendo o medo da espuma branca que ia e vinha. Fiquei hipnotizada durante bastante tempo naquela visão, enquanto os caracóis da peruca se desenrolavam ao vento. Só acordei quando reparei que o som das ondas me estava a dar vontade de usar a latrina, o mais rapidamente possível. Como era uma princesa, achei que podia evitar aliviar-me atrás de um arbusto e dirigi-me a uma cabana simpática que estava ali por perto. É curioso pensar que a cabana tinha uma vista melhor do que todas as janelas do castelo. Conforme me ia aproximando, reparei que havia alguém sentado à porta da cabana, estava virado para o mar e, portanto, de costas para mim. Corri (dentro dos possíveis) até à pessoa e, conforme ela me ouviu chegar (ou talvez a chiadeira dos dez guardas que vinham comigo), levantou-se num pulo e virou-se para nós. Assim que me viu, andou dois passos para trás e eu fiquei de boca aberta depois de um dramático “oh!”. Passados uns segundos de hesitação, e passada a fúria de o saber ali no reino e nunca ter tentado contactar-me, fiquei tão feliz que tentei chegar-me perto dele, mas ele insistia em afastar-se mais a cada passo que eu dava na direcção dele. Sem outro remédio, gritei ligeiramente:

- O que é que se passa? Não se lembra de mim?! Sou a princesa!
- Claro que lembro!... Mas o que faz aqui? - gritou ele.
- Vim à procura do mar!
- Do mar?!
- O que disse?... Temos umas coisinhas por esclarecer, não?! - Enchi os pulmões de ar - Mas primeiro que tudo, posso usar a latrina da cabana? É assim urgente, obrigada!

Passados uns momentos de confusão, ele sorriu (já me tinha esquecido que era um sorriso tão grande!) e assentiu. Quando eu voltei, passámos o resto da tarde a conversar. Eu estava deveras impressionada com o mar, na verdade, até me apetecia descalçar e sentir a areia molhada nos pés. Aprendi que o nome dele era Ricardo e que não descendia de nenhuma família real, aliás, só tinha ido ao palácio porque tinha um amigo qualquer, ele sim nobre, que gostava de jogar e perdeu o convite para o baile ao jogo. Eu não dizia praticamente nada porque face às aventuras dele, a minha vidinha de princesa era um tédio de morte. Mas gostava tanto de estar com ele que voltava dia após dia e aprendia imensas coisas novas: aprendi a descascar maçãs, a usar uma fisga, a pescar com uma linha e que não existem dragões (mas eu já suspeitava desta!). Ao fim de alguns meses e sem qualquer pedido de casamento da parte do Ricardo, enchi-me de coragem e disse ao meu pai que já tinha escolhido um marido para mim, mas que não era de sangue azul. Curiosamente, o meu pai ficou contente (suponho que não era o segredo melhor guardado do castelo), mas ao mesmo tempo, não gostou da ideia de ter que nomear outra pessoa para seu sucessor. Depois de lhe prometer que continuava a viver no castelo com ele, fui pedir a mão do Ricardo. Ele ficou bastante chocado com minha decisão, mas quando a voz dele voltou, deu-me um decidido “sim”! No entanto, tinha mais um pedido a fazer-lhe: queria uma festa grande e convidar muita gente dos vários reinos, assim uma despedida da realeza em grande!

A Clara fez um esforço enorme para se mostrar feliz por mim, e até vibrou com o meu vestido de noiva que toda a gente já conhecia... Os conselheiros do reino chegaram à decisão unânime de que eu estava maluquinha de todo, mas a cerimónia começou como estava prevista com a chegada do Ricardo muito elegante, até tinha perdido a barriga para o evento e tudo! Mas eu estava algo inquieta pela falta de um convidado em particular... Acabou por chegar, atrasadíssimo, mas chegou. Entrou no final da cerimónia e com estrondo tal que toda a gente se virou para trás. O Ricardo segurou-me a mão com medo que fosse algum outro pretendente e eu retribuí com um grande sorriso. Quando a Clara olhou para trás e o viu, não houve decência que ficasse de pé! Arregaçou o vestido, correu a nave toda em direcção à saída e saltou para os braços do sr malmequer como se não houvesse amanhã. O beijo que se seguiu valeu-lhes uma expulsão da cerimónia, mas teve direito a muitos risos cúmplices. Coitado do Pedro, esquecer a Clara é uma tarefa impossível, eu própria não fui capaz durante o planeamento do meu casamento.

O sr malmequer ficou connosco durante alguns dias até confessar que tinha renunciado ao trono, os pais não aceitavam aquele casamento. A única pessoa que estava do lado dele era a tal tia que tínhamos em comum e que o tinha acompanhado até ali. O sr malmequer crescia a olhos vistos na minha consideração, já a tia dele crescia aos olhos do meu pai que se desdobrava em atenções para com a senhora!

Ao fim de alguns dias de discussão com o meu pai, chegámos os dois a um acordo importante. A Clara seria reconhecida como legítima herdeira ao trono, e como tal, tinha direito ao trono que eu tinha renunciado. Como o Pedro era de sangue azul e tinha sido criado para ser rei, podia governar o reino melhor do que qualquer um de nós, além do meu pai. Quando demos as novidades à Clara e ao Pedro, eles choraram durante quase uma hora e, no meio de tantos soluços, não percebi nada do que eles disseram.

Passados alguns anos, posso dizer que o castelo está mais cheio de vida do que nunca! As três alas do castelo, que antigamente estavam vazias, fervilham de actividade. Eu fiquei numa, a Clara na maior... e o meu pai e a sua nova esposa na outra! É fenomenal ver o meu pai a brincar com os netos e as boas relações entre esta família ampliada de forma tão rápida. Toda a gente ajuda nos assuntos governamentais, mas a palavra final é sempre a do meu pai, seguida da do Pedro e da Clara. Aos fins-de-semana saímos sempre das muralhas, normalmente para um piquenique à beira-mar, onde nos descalçamos e corremos a tarde toda.

Arrisco-me a dizer que vivemos assim... felizes para sempre.

sábado, janeiro 19, 2008

Fairy Tale V: O Pedro (parte II)

(....)
Já era de manhã quando tudo acabou. As pessoas espalharam-se pela relva do jardim, exaustas. Eu tinha adormecido de cansaço, a chorar pela Clara, encostada ao meu pai. Ele cumpria a função de rei e de pai, continuava a comandar tudo através de gestos e sussurros para não me acordar. Acordei apenas quando ele me chamou em voz alta: "filha, acorda!". Esfreguei os olhos que ainda ardiam e olhei em volta, era a Clara! Vinha com uma manga descosida, o cabelo solto molhado, a maquilhagem desfeita, mas belíssima como sempre. A minha irmã.. viva!! Agarrei-me de tal forma a ela, que desconfio que podia ter-lhe deslocado uma costela ou outra.

- Calma, calma, está tudo bem!
- Estava tão preocupada contigo!
- O teu malmequer vestido de pássaro salvou-me... não sei como é que ele me encontrou, só acordei quando ele, não muito gentilmente, me despejou um balde de água pela cabeça abaixo.
- Isso explica o cabelo molhado! Mal posso esperar para lhe agradecer. Sabes onde ele está?
- Oh, já foi embora.
- Embora? Para onde? Mas ele nem pediu a minha mão em casamento!
- Não? Pensava que era isso que ele tinha vindo cá fazer.
- Também eu... então e o teu par verde?
- Ai, nem digas nada! Que homem! Olha, declarou-se-me umas dez vezes durante a noite... estou farta de o procurar e não o encontro. Ele tinha ido buscar umas bebidas quando o lustre caiu... que visão horrível, espero que não lhe tenha acontecido nada!
- Isso és tu preocupada com um homem pela primeira vez?
- Ora... não posso?
- Claro que sim! Mas conta-me mais coisas!
- Que posso eu contar? A noite não deu para nada... além disso, acho que ele não percebeu bem quem eu era.
- O meu par também me pareceu um bocadinho baralhado esta noite, deviam estar a adivinhar o que estava para vir. Mas ora, pode ser o começo de um grande amor na mesma!
- Amor de verdade num baile a fingir?
- É um começo?....
- És uma romântica incorrigível!
- Olha! O teu sr verde está ali!! - E apontei, como me dizem sempre para não fazer.

A Clara ia ficando pálida conforme o sr verde se aproximava dela, nunca a tinha visto assim. A pena do chapéu dele estava queimada e ainda deitava um fiozinho de fumo que me distraía. Ele dirigiu-se directamente à Clara:

- Princesa, estou tão feliz de a ver sã e salva!

Olhámos de lado uma para a outra. Eu não sabia bem o que dizer, mas face a tanta confusão para uma noite só, achei que era melhor esclarecê-lo.

- A princesa sou eu, ela é a Clara – suponho que ele só deu pela minha existência nesse momento.
- Clara? Mas então... não entendo o que se passou?
- Eu estava mascarada de realeza... - suspirou a Clara numa voz apagada.
- Ai que terrível engano!
- Terrível?... - intrometi-me.
- Pois, agora é que reparo que este vestido não é prateado e... sabe, eu sou daltónico e tudo isto das cores me confunde muito!
- Prateado?!... Não me diga que você é... - a minha cara abria-se num terror de antecipação.
- ... Pedro Miguel Ramos António Joaquim, encantado por conhecê-la... princesa.

Eu e a Clara olhámos uma para a outra e desatámo-nos a rir. Demorámos vários minutos até recobrar a compostura e começarmos a chorar. Acho que foi demasiada coisa para tão pouco tempo, o fogo, o sabermo-nos vivas, as descobertas de amores trocados.... acabámos a soluçar no ombro uma da outra, enquanto o verdadeiro sr malmequer nos olhava visivelmente chocado e sem saber se devia fugir enquanto era tempo.

- Eu a sonhar com o casamento... e ele não quer nada comigo, é contigo! - Fungava a Clara.
- E eu que achava que este era o outro e o outro tinha uns olhos tão bonitos!...
- Mas eu é que fico sem este!
- E eu quero o outro!!! - E recomeçámos a chorar que nem umas verdadeiras madalenas.
- Hum, Hum – Aclarou a voz - Desculpem interrompê-las minhas senhoras, mas isto é de facto um erro lamentável. Clara, lamento imenso... a noite foi, até mesmo depois do lustre cair e enquanto o erro se manteve, memorável... A melhor noite da minha vida, de facto! A senhora é lindíssima, mas eu não posso casar com uma senhora que não é da realeza, penso que entende. Lamento profundamente. Quanto a si, tenho a certeza que é boa pessoa, mas não posso manter a minha promessa e pedir-lhe a mão em casamento. Não depois de conhecer a senhora Clara. Estou um pouco abalado com tudo isto...
- Claro, compreendo perfeitamente. Deixo-vos agora porque tenho que ir falar com o meu pai... - apressei-me a dizer entre várias fungadelas e afastei-me à procura do “outro”, enquanto deixava os dois a sós por alguns momentos.

O sr malmequer ainda abraçou a chorosa Clara cujo choro tinha aumentado de volume, mas não vi muito mais porque o meu coraçãozinho também ameaçava descolar-se a qualquer momento. O castelo já estava praticamente vazio (de convidados, claro) e eu não sabia nada do passarito de olhos grandes cinzentos. Saber que ele não era meu pretendente tinha sido um golpe duro, e se ele era casado? Ou um espião de outro reino, agora cheio de informações? E como é que é possível que eu nunca o tenha tratado pelo nome, nem me apercebido da razão pela qual ele não percebia nada do que eu dizia... No entanto, o que me afligia mais era não fazer ideia de como o podia encontrar. Até a Cinderela tinha tido a decência de deixar um sapato! Vagueei pelos jardins do palácio e fiz a descrição do sr pássaro a toda a gente que encontrei, alguns mais do que uma vez, e ninguém fazia ideia de quem poderia ser.

Nas semanas que se seguiram, eu e a Clara parecíamos umas almas penadas. Não saíamos, não ríamos, mal falávamos... ficávamos deitadas no quarto a olhar para o tecto e a suspirar pela má sorte. Nem as cerejas que o meu pai mandava que alguém deixasse no meu quarto me abriam o apetite.

(continua)

quinta-feira, janeiro 17, 2008

Fairy Tale IV: O Pedro (parte I)

O meu último pretendente chegou na altura das festas grandes. Tínhamos imensos convidados no palácio e era a altura da minha festa preferida: o baile de máscaras. Era a festa que eu gostava mais porque o meu pai deixava de andar de olho em mim (até porque não sabia onde eu andava no meio de tanta gente) e a Clara usava os meus vestidos e pavoneava-se pela sala a convencer toda a gente que era uma imperatriz de um reino longínquo. Os homens então acreditavam religiosamente no que ela quisesse, acho que se ela dissesse que era uma rã transformada em princesa, eles também acreditavam... é por isto que gostamos deles, não é?

Mas voltando um pouco atrás, comecei a trocar cartas com o Pedro uns meses antes do baile de máscaras. Ele escreveu a contar-me que uma tia com quem temos conhecimentos em comum lhe tinha falado em mim e que estava muito interessado em conhecer-me. A nota interessante deste pretendente é que me enviava sempre uma flor cuidadosamente espalmada em todas as cartas. Achei que valia a pena conhecer o "sr malmequer", tal como a Clara o tinha baptizado. Combinámos que ele viria vestido de Robin dos Bosques (apesar de eu não fazer ideia do que isso seria exactamente) e eu disse que ia usar um vestido cor de prata e uma máscara cor-de-rosa com duas penas prateadas do lado direito.

A noite chegou por fim e eu mal conseguia respirar da excitação e do facto de ter o corpete mais apertado do que o habitual para um baile. Fiquei perto da entrada a acenar para todos os homens que entravam e houve um deles que não me causou qualquer dúvida, entrou vestido com um fato castanho, com uma mancha vermelha no peito, e umas mais claras a compor o resto do fato. Não sei porquê, "Robin" assentava-lhe de tal modo que eu não tive qualquer dúvida que estava ali o sr malmequer. Fiz sinal à Clara e fui atrás do meu pretendente.

- Muito bem vindo!
- Boa noite, minha senhora.
- Já me reconheceu? Máscara cor-de-rosa e duas penas de lado!
- Hum... por acaso não! Pensava que era essa a função da máscara...
- Ah e tem sentido de humor! Que bom! Sou eu, a princesa!
- A... princesa? Pensava que a princesa era aquela dama morena ali à entrada.
- Não, essa é a Clara! E sim, está a fazer-se passar por uma dama de sangue azul... e então, vamos dançar?
- Tem a certeza que quer dançar?.... Comigo?
- Claro que sim! Aposto que tem muita coisa para me contar, não é assim?
- Se a senhora assim o diz!...

E lá fui eu rodopiar nos braços do meu passarito que afinal era mais gordinho do que eu tinha imaginado sob a forma “malmequer”. Foi com grande alegria que reparei que ele não tinha qualquer problema na fala, nem atraía demasiados olhares femininos ou masculinos, mas parecia um bocado distraído porque não se lembrava de nenhum dos assuntos que tínhamos trocado nas cartas. Entretanto, a Clara andava a dançar alegremente com um senhor vestido de um modo peculiar, verde esfarrapado dos pés à cabeça e com um barrete cor-de-laranja com uma pena no topo. Achei que eles faziam um casal particularmente bonito, pareciam proporcionais um ao outro. E, o que me espantou mais, foi a maneira como a Clara o olhava. Era a noite de sorte para o cavalheiro de verde! Ao fim de algumas danças bem divertidas, o meu par perguntou-me se queria passear um pouco pelo jardim, ao que eu reagi com um entusiástico sim. É claro que sair do baile e da confusão para dar toda a minha atenção ao sr. Pedro era agradável! Mas tinha que manter a minha distância de dama respeitável, claro. Ele tirou a máscara da cara e eu fiquei de olhos arregalados, tinha à minha frente um homem mais bonito do que estava à espera. É certo que tinha uma barriguinha e que me tinha pisado mais de três vezes durante a dança, mas tinha imensas coisas giras para contar, um sorriso grande e uns olhos acinzentados enormes. Pareciam ser da cor da lua cheia e da minha máscara. Pegou-me na mão durante alguns minutos e eu senti o sangue a subir-me à cara, aposto que estava vermelha que nem um tomate. Como é que ele se atrevia a pegar na minha mão sem me pedir em casamento primeiro??

- Acho que é melhor não fazer isso. - E retirei a minha mão da dele.
- Porquê?
- Porque ainda não me declarou as suas intenções, o que o trouxe cá, tal como tínhamos combinado.
- O que me trouxe cá?.... Como assim?
- Ora, então o que é que o senhor veio fazer a este reino?
- O que é que eu vim cá fazer?... Mas ó minha senhora, eu já cá...

Nesse instante ouviu-se um certo estrondo na sala de baile e corremos os dois para lá. Havia um clarão enorme, uma confusão fenomenal e as pessoas gritavam “FOGO!” enquanto fugiam. Pareceu-me que o grande lustre do salão tinha caído no chão com um estrondo digno de um deus muito irado (pensando nisto agora, acho que a queda de um grande lustre era capaz de ser um grande momento numa peça de teatro!).

- Princesa, é melhor desviar-se que ainda é atropelada por esta gente!
- Não, a Clara está lá dentro! Tenho que ir lá!
- A Clara? Mas não pode! Repare bem na confusão que para ali vai!

Eu tentei entrar mas ele segurou-me com força. Apesar da confusão, senti-me protegida e perguntei-me se segurar numa mão era suficiente para pedido de casamento, o que era equivalente a ter alguém a segurar-nos de modo a impedir qualquer movimento da nossa parte?! Aposto que ficava com má fama até ao final da minha vida... uns 20 anos. Ao fim de poucos segundos, o cheiro a fumo, a quantidade de gente a gritar e a fugir causou-me imensa confusão. Comecei a chorar e tentei soltar-me para procurar a Clara.

- Calma, calma! Pronto, eu vou lá buscá-la. É a senhora que estava mascarada de princesa, não era? Eu vou procurá-la, mas fique aqui!
- Eu fico. Despache-se!!
- Só depois de me prometer que não sai daqui a menos que o fogo venha nesta direcção! Prometa-me!
- Prometo, vá lá, está prometido! Ó homem despache-se!!

E lá fiquei eu a roer as unhas e a desejar que ninguém estivesse a olhar para poder roer as dos pés também. As coisas desenrolavam-se lentamente, como se eu pudesse ver a imagem num tempo estendido... as labaredas tentavam fugir pelos vidros estilhaçados, as pessoas gritavam por água e pediam mais baldes, a noite estrelada permanecia impávida por cima das nossas cabeças. Sentia-me à parte de tudo, o som chegava longe e parecia que os meus olhos não detectavam o movimento imediato. Tentava pensar na Clara, ao mesmo tempo que procurava o meu pai na multidão, apesar de ter a certeza que ele estava a salvo. No meio desta realidade sonhada, senti-me abanada quando ouvi um chamamento que conhecia há anos... Vi-o finalmente e corri para ele: "Pai, pai, pai!!!". Fiquei ali a abraçá-lo enquanto toda a gente acorria com baldes, a gritar ordens e num esforço conjunto para apagar o imenso fogo que projectava as nossas silhuetas tremidas num laranja vivo.

(continua)

quarta-feira, janeiro 09, 2008

Fairy Tale III: o João

O João chegou com o cheiro a sal. O meu pai nunca aceitou nenhum dos meus vários pedidos para ver o mar. Dizia o que o diabo se escondia nas profundezas dos oceanos. Eu acho que o diabo não se ia sentir bem no mar, imagino-o sempre de tridente em punho e rodeado de fogo. Dentro de água, a modos que fica um pouco apagado, não? A deitar um fiozinho de fumo e a cheirar a porco queimado?... Confesso que nunca entrei nesta discussão com o meu pai, se o diabo vive na água tudo bem, eu também não gosto muito de tomar banho.

Mas voltando ao sal, chegada dos heróis do novo mundo era sempre um grande reboliço cá no reino, primeiro porque era raro voltarem e depois porque vinha o João Carlos Figueira de Sebastião e Melo na comitiva, o ladrão tornado herói que mais suspiros arrancava às damas. Roubava tudo o que encontrava (incluindo a mulher alheia), até que foi preso e enviado para conquistar terras do novo mundo sob forma de perdão. Tornou-se então num herói muito popular e era dos nossos conquistadores melhor sucedidos, literalmente.

Eu estava muito curiosa, não só porque era a princesa e, portanto, ia recebê-lo no castelo e jantar com ele, mas também porque as minhas aias estavam tão delirantes que não paravam de desmaiar porque tinham o corpete demasiado apertado. E eis que foi o delírio total quando ele chegou, finalmente, às portas do castelo. O João era de facto um homem lindíssimo, tinha uma pele dourada como eu nunca tinha visto, era muito alto e musculado, parecia quase do tamanho do cavalo. Acabei por perceber que ele tinha um certo charme por si só, as senhoras (casadas ou não) suspiravam quando ele passava (mesmo a vários metros) e os respectivos maridos ou interessados faziam cara feia e rosnavam ameaças, mesmo quando ele não dizia nada. Na minha cabeça soava um intermitente “ena, uau, ena”.

Depois de nos sentarmos à mesa, entendi que o sr Melo não tinha uma linguagem lá muito desenvolvida. Era incapaz de manter uma conversa minimamente decente, mas tinha histórias fabulosas para contar. Fiquei com imensa vontade de conhecer o mundo para além mar, quer dizer, para começar talvez fosse melhor ver primeiro o mar e as suas tempestades. No final do jantar, lá tentei aproximar-me dele, apesar de ter que furar caminho por entre as minhas próprias aias (e sabe Deus como isso é difícil com estas saias!). Lá consegui chegar perto do homem e quase me esqueci do que tinha para dizer, ele era mesmo bonito! Depois de reunida muita concentração, disse-lhe que gostava muito que ele me acompanhasse num passeio no dia seguinte. Ele acenou que sim, mas que eu tinha que levar as minhas lindas aias para nos acompanharem! Houve um suspiro colectivo tremendamente alto e, desta vez, fui só eu que me senti ofendida.

Na manhã seguinte, estava super entusiasmada com a ideia de rever o João, mas sem vontade nenhuma de partilhar a atenção dele com as minhas aias. Ainda por cima, cada uma delas parecia-me particularmente bonita naquele dia. Lá reuni coragem e saí com aquele bando de galinhas até ao pátio. O João chegou com uma hora de atraso, o que ia provocando um ataque de histerismo em grupo. Vinha bastante ofegante e descomposto, mas com um sorriso pronto nos lábios que nos fez arrumar todas e quaisquer perguntas acerca do atraso. Eu tinha a carruagem pronta para o passeio (tinha pensado ir até perto do mar), mas os meus planos foram por água abaixo porque ele insistia que não tínhamos que sair do castelo, que os jardins eram lindos e que ele não os conhecia. Insistiu tanto que lá voltámos para trás, a contragosto.

O passeio até estava a correr bem e, apesar dele repartir a atenção pelo mulherio todo, falava mais vezes comigo. Descobri que ser princesa podia trazer-me a vantagem de ter a atenção de homens deslumbrantes que, de outro modo, nunca olhariam para mim duas vezes. A dado momento, ele perguntou-me se podia falar a sós comigo e afastámo-nos um pouco do grupo suspirante. Eu estava com um certo receio da escolha de palavras dele porque decoro não era sinceramente o forte do João, mas até achei que ele se estava a esforçar durante o passeio.

- Sabe, isto de ser aventureiro é óptimo! Conhecemos imensas coisas, nomeadamente mulheres que é o que mais nos interessa longe de casa, sabe?
- Hum... - acenei ligeiramente com a cabeça sem saber muito bem o que devia dizer.
- As pessoas respeitam-nos! Mas também há aquela altura da vida em que um homem tem que assentar, percebe? E eu gostava de assentar o mais rapidamente possível! E de preferência com uma...
- Uma...?

Não tive tempo para ouvir o resto do que ele queria dizer porque entrou um homem esbaforido, a correr na nossa direcção, e trazia um machado com ele. Assim que o João o viu, desatou a fugir. Eu fiquei parada, sem saber o que fazer e só quando ouvi: “afaste-se princesa! Anda cá meu sacana!! Agora já não tem piada meteres-te com as mulheres dos outros, não é??” é que entendi o que se passava e desatei a correr atrás do homem a pedir-lhe que se acalmasse em nome do rei. Atrás de nós seguiam mais alguns homens que se tinham juntado ao coro de indignados e que eram, por sua vez, seguidos pelas minhas aias chorosas e a gritar alto para não fazerem mal ao sr. João. Não sei se consigo explicar a confusão que se seguiu, mas a Clara disse-me que estava a estender roupa e que viu o João a correr como se a vida dele dependesse disso (e realmente dependia) e uma procissão afogueada atrás dele. O grupo de homens vociferava: “anda cá meu traste!”, “ai se não fossem as senhoras aqui!”, “agora já não te chegas perto, não é?”, “pára de correr!!”, “eu já te mostro o que é ser homem!!”, tinham as caras bem vermelhas de cólera, mas também do esforço da maratona. Um pouco mais atrás, o grupo de mulheres gritava chorosamente por piedade, perdão e outras coisas: "se calhar são vocês que não dão conta do recado!", "faz-me um filho!", "deixem lá o homem em paz", "ó Joaquim, perdoa-me!", no intervalo de muita arfadela à custa dos corpetes. Estávamos todos a correr em círculo porque os jardins eram grandes, mas tinham os seus limites e o João tinha literalmente fogo no rabo. Continuámos nisto até que perdemos todos o fôlego, menos o João que tinha mais razões para correr do que nós e que escapou. Acho que este episódio vai ser daquelas histórias que vai “correr” de boca em boca as futuras gerações.

Seguiu-se uma audiência com o meu pai, onde foram contabilizadas cerca de trinta traições, o que eu achei fenomenal porque o João tinha chegado no dia anterior. Alguns homens queriam que o papa lhes concedesse o anulamento do casamento, outros queriam ter o direito a casar de novo com outra mulher, outros queriam simplesmente linchar o João. As mulheres casadas ou prometidas pediam perdão, outras choravam pelo amante fugido e outras tantas fungavam de pena porque ele nunca tinha chegado a tocar-lhes sequer (eu confesso que me sentia mais inclinada para este grupo). A Clara divertia-se à grande com a confusão instalada e o meu pai decidiu, ao saber da existência de 32 bastardos até ao momento, enviar a tropa real atrás do João, apesar dos protestos femininos. Ninguém arredou pé da sala do trono (excepto para usar as latrinas) até que o capitão da guarda real reentrou no castelo e anunciou que o João tinha embarcado numa nau que tinha partido naquela tarde. As notícias trouxeram um misto de reacções, houve suspiros de alívio, asneiras de quem se sentia por vingar e eu confesso que me juntei à Clara, por fim, a rir que nem uma perdida. Jantámos um pouco mais tarde do que o costume e com muitos convidados à mesa. A pouco e pouco fomos bebendo e esquecendo o João e a confusão que ele tinha criado em dois dias.

A parte mais chata é que passados nove meses tivemos dificuldade em encontrar parteiras para atender a todos os pedidos, mas graças ao João (o que lhe valeu outro perdão real), o reino rejuvenesceu e nasceram mais bebés naquele ano do que em todos os que se seguiram.

segunda-feira, janeiro 07, 2008

Fairy Tale II: O Bernardo

Eu e a Clara estávamos extasiadas para conhecer o pretendente Bernardo. Este senhor tinha enviado a carta mais rococó de que há memória neste reino. Uns floreados incríveis que me levaram três dias para identificar apenas a primeira letra da carta. Decidimos logo que eu nunca me poderia casar com alguém chamado Bernardo de Santa Maria Vasconcelos e Melo da Silva Rodrigues e Pereira. No entanto, o meu pai estava maravilhado por saber que o senhor era rico e tinha um caso de gémeos na família, alguma tia em terceiro ou quarto grau. Assim que ele chegou, confesso que me faltou o ar. A minha ideia de alguém com aquele nome era pelo menos uma certa dose de cabelos brancos, uma barriga de gestação de 14 meses e um falar muito afectado, além de sapatos com o bico enrolado, o que está completamente fora de moda!!

Qual o meu espanto (só o meu, a Clara continuou impassível) quando entrou um moço novo no castelo, galante e que se apresentou como sendo o esperado Bernardo. Eu confesso que arregalei os olhos quando vi que não lhe faltava um dente sequer! Tinha olhos da cor dos meus e cabelo louro ligeiramente ondulado. "Uau!" exclamou a minha vozinha interior. Passei a tarde a sorver tudo o que ele dizia, apesar de não perceber metade. Efectivamente tínhamo-nos enganado porque o Bernardo não tinha voz nasalada, mas era "sopinha de massa" e cuspia ligeiramente tudo o que estava num raio de cinco dedos. Eu estava maravilhada e limpava gentilmente as pequenas gotículas de saliva que teimavam em atravessar a mesa que nos separava.

No final da tarde, o meu pai convidou-o a conhecer o jardim comigo e com as minhas aias. Conseguia ouvir as três a suspirar a cada palavra sem "s" pronunciada naquela voz melosa. Quando começava alguma sucessão de palavras "difíceis", cada uma delas levantava ligeiramente o leque e emitia um risinho nervoso e extremamente irritante. Eu fingia que o ouvia porque nem conseguia concentrar-me, tal era a certeza que estava ali a minha alma gémea. A Clara insistia que havia algo de errado e eu dizia-lhe que ela não estava habituada a ter menos atenção que eu! Que este era o meu cavaleiro andante! Já tinha pedido a minha mão em casamento sem olhar para mais nenhuma dama. Eu estava convencida do amor eterno que sentia pelo Bernardo e até andava a praticar o meu nome acabado em "...Silva Rodrigues e Pereira". A única coisa que me preocupava era se no dia do casamento ele tinha que dizer o nome completo virado para mim... o "Santa" e "Silva" causavam-me alguma inquietação já que não podia levar o leque.

A poucos dias da boda e com o castelo em alvoroço, eu dormia cada vez menos com tanta excitação. Quando a costureira me trouxe o vestido de noiva, não fui capaz de o despir e fartei-me de rodopiar pelo quarto a sentir-me a mulher mais bonita do mundo. Durou até a Clara começar com um questionário: "mas ele já tentou agarrar a tua mão?", "beijar-te?", "aproximar-se de ti?". Revi mentalmente os últimos dois meses e realmente não havia qualquer indício de tentativa de proximidade, mas isso era decerto porque ele era muito pudico, apressei-me a explicar. Fiquei a moer nas perguntas da Clara e, como não tinha sono, resolvi dar um passeio nocturno para arejar. Já cá fora, ouvi umas vozes "oh meu amor, que bom é sentir-te novamente!".. chuac... chuac... "Xiu, vem aí alguém!". Eu estava acostumada aos encontros nocturnos e “secretos” da gente do palácio (visto toda a gente parecer ter vida privada menos eu), portanto não liguei. No entanto, conforme me afastava, algo me dizia que não devia ir já para o quarto. Simulei os passos para a saída, descalcei-me e lá voltei eu, vestida de noiva, sem fazer barulho para me esconder atrás de um pilar. Esperei que a conversa retomasse: "Como é possível que não acredites no que sinto depois de tudo o que estou a fazer para estar mais perto de ti?"

Soou um alarme cá dentro... aquela voz era demasiado familiar. Tentei sair do pátio porque já não queria ouvir mais nada, mas parei quando senti que as duas figuras caminhavam na minha direcção. Encolhi-me o mais possível e sustive a respiração. "Sabes que o rei espera descendência rápida, não sabes?", "Sei sim, não me fala noutra coisa... já nem sei que mais fazer para manter a distância dele e da filha dele, qualquer dia fico com a boca seca de tanto cuspir!". Foi a gota de água! "BERNARDO!!!" - gritei a plenos pulmões. A Clara apareceu vinda não sei de onde com uma tocha e metade das pessoas da casa acudiram à varanda para não perder o espectáculo. Aí estava eu, descalça, vestida de noiva, a chorar q nem um bebé e, agora sim, a cuspir a cara do meu ex-noivo com lágrimas, saliva e outros fluidos corporais que saem do nariz: "COMO FOSTE CAPAZ? EU FARIA TUDO POR TI! E... TU TRAIS-ME COM.... O LUÍS????"...

Não vale a pena entrar em detalhes sobre o que se passou em seguida. E assim acabou o meu noivado com o Bernardo, o homem dos perdigotos conscientes.

sábado, janeiro 05, 2008

Fairy Tale, I

Bem, eu sou uma princesa. Talvez não seja exactamente aquilo que se espera de uma princesa, mas o meu pai é rei, eu sou mimada, temos o nosso pequeno reino e nunca me aventurei para lá das muralhas. Até tenho longos cabelos encaracolados e olhos claros. Quer dizer, os longos caracóis pretos que tenho caídos nas costas são, na verdade, uma peruca. Não é que tenha ficado careca desde que nasci, mas tenho que rapar o cabelo por causa dos piolhos. Na verdade adoro a sensação de frescura quando tiro a peruca antes de me deitar, acredito que um dia as princesas vão poder ter cabelo curto. O meu pai diz que eu só vaticino disparates, mas eu cá tenho as minhas ideias.

Porque é que eu nunca saí das muralhas em vinte e três anos? Bem, para começar, o meu pai sempre me disse que fora das muralhas vivem dragões e gigantes. Eu nunca vi nenhum e não conheço ninguém que tenha visto, começo a achar que ele me pregou a peta do século logo a seguir à fada dos dentes, mas pelo sim pelo não... Além disso, nunca me contaram a história de nenhuma princesa de espada em punho a matar dragões, são sempre os cavaleiros, montados em belos cavalos brancos, que fazem as coisas que sujam mais (incluindo à mesa). Mas se os dragões existirem, espero que nenhum deles goste de carne mal passada... Por falar em cavaleiros, do lado de lá também estão homens e confesso que esta coisa toda dos pretendentes me amedronta um bocado, especialmente porque o meu pai já construiu três alas diferentes para a futura descendência e acha que o facto de eu permanecer solteira é pura e simplesmente a hecatombe que se seguiu ao aparecimento do Robin dos Bosques.

É claro que tenho vários pretendentes, não pelos meus lindos olhos mas basicamente porque sou rica e tenho um título de rei para "oferecer", por assim dizer. Ultimamente, com o vai e vem de pretendentes, apercebi-me que estou na curva descendente da nossa esperança média de vida. Não é que me sinta mais velha, mas não tenho muitos mais anos por viver. Os pretendentes é que são sempre mais do mesmo. Nobres que não têm onde cair mortos e se fingem interessadíssimos numa pessoa que nunca viram antes e tão pouco tentaram perceber como reconhecer-me antes de chegar (as minhas actuais três aias têm uma certa colecção de declarações à custa desses senhores e uma ex-aia casou mesmo!). Os que têm dinheiro, vêm à procura de uma bela donzela... e quando me vêem, demoram-se menos do que o conselheiro quando vem pedir fiado para pagar as dívidas de jogo e é corrido pela mulher à vassourada (ela é a cozinheira do castelo e já se sabe, as paredes têm ouvidos).

A minha maior ajuda no campo de despachar os pretendentes, sem que o meu pai tenha tempo de exercer o seu poder paternal, é a Clara. A Clara é uma criadita negra da minha idade que o meu pai encontrou à porta da nossa casa quando eu também era bebé. A minha mãe morreu na noite em que a Clara chegou e o meu pai interpretou isso como um sinal. Eu e a Clara crescemos juntas e, apesar da diferença abismal da minha "educação" e da dela, somos praticamente irmãs. A Clara não é bem negra, tal como o nome indica. Vê-se claramente que alguns dos conquistadores do novo mundo estão a ser também eles conquistados pelos "povos inferiores". Provavelmente a Clara tem mais educação que eu, não sabe tocar piano nem ler, mas sabe comportar-se melhor na presença das visitas, tem coragem para sair do castelo e tem uma pose que não deixa nenhum homem indiferente. Costuma andar com o traje de criada que eu invejo a cada segundo. Vestidos práticos a lembrar-me constantemente do corpete apertado e daquela monstruosa armação de madeira para dar roda à saia. Essa mesmo construção que nos impede de sentar comodamente, ocupar apenas um lugar no balcão do teatro, aproximar-nos de alguém ou até entrar numa porta mais apertada.

Além de ser a minha melhor amiga, a Clara é a mais bela moça dentro das muralhas do castelo e, provavelmente, do reino. Não é que ela fizesse por se mostrar, todos os dias aparecia vestida da mesma maneira, com as duas tranças caídas e aqueles olhos verdes enormes. Ela não andava... dançava no ar! Eu divertia-me a ver a cara do meu pai enquanto os pretendentes se declaravam e nem olhavam para mim, não desviavam o olhar da Clara desde que ela entrava até sair do salão! Os mais ousados pediam-me para aparecer nalgum baile e faziam questão de notar que as nossas criadas também estavam convidadas para ajudar à festa! Enfim, com a ajuda da Clara consegui despachar todos os pretendentes que quis... os muito velhos, os muito gordos, os muito altos ou demasiado baixos, os demasiado chatos ou demasiado inteligentes. Afinal, ler uma página inteira de um livro ainda era tarefa capaz de me ocupar um dia. E felizmente, o meu pai não precisava de me fazer nenhum casamento por conveniência.

Porem, três dos meus vários pretendentes conseguiram desviar-nos da rotina no castelo: o Bernardo, o João e o Pedro. Apareceram assim... por ordem alfabética e tudo!