Abri os olhos com algum receio que tivesse acordado no inferno, mas o cheiro a desinfectante sugeriu-me o contrário. Parecia que estava viva. A minha cabeça doía-me tanto que fiquei a pensar se não era mais fácil estar morta. Pensado bem, não era a cabeça, era mesmo a cara. O maxilar!! O estupor tinha-me dado um murro em cheio, provavelmente tinha-me partido o maxilar. Guardei alguma esperança que ele tivesse tido uma morte lenta, ainda que soubesse que isso era impossível.
- Olá, olá!...
- Miguel?
- Aaah, a bela adormecida está de volta! Rapazes, podem entrar!
Os meus olhos começaram a habituar-se à claridade e vi o Miguel com a cara bastante inchada, mas com o sorriso certo na cara. Voltei-me para a esquerda e vi uns tantos homens, entre eles o Xavier. Alguns traziam o braço ao peito e outras feridas por sarar, mas pareceu-me que estavam lá todos. Cada um deles trazia uma flor e isso deu-me vontade de rir.
- Miguel, o que é isto? - Perguntei alegremente.
- Eles quiseram agradecer-te teres salvo a operação toda. E, já agora, saber onde é que escondeste os extractos bancários porque a única coisa que encontrámos foi o envelope no chão da suite!
- O que tinha o envelope? - Ele riu-se.
- Nunca conheci ninguém como tu! A tua curiosidade tem que vir primeiro que o resto! - Fiz-lhe uma careta, ou o que eu achei que seria uma careta com o maxilar em obras. - Bem, tu descobriste uma amostra de um carregamento de diamantes que seriam leiloados na Suíça, provenientes de África, claro. O dinheiro do tráfico de droga era usado para financiar ilegalmente os garimpeiros africanos. O resto dos papéis explicava as características do carregamento de diamantes. Mas faltam uns papéis para provar isto, embora não haja qualquer dúvida da minha parte sobre o que se passa.
- Que confusão! Se calhar fizeste bem eu não ter-me posto ao corrente do que se passava realmente, acho mesmo que foi a minha ignorância que me manteve viva! Os papéis estão colados no fundo da secretária, entre a primeira e segunda gavetas da secretária... com pensos rápidos.
O Miguel fez sinal a um dos poucos homens que ali estava sem qualquer tipo de ferimento e ele saiu do quarto. Em direcção ao hotel, suponho. Os restantes entregaram-me as flores um a um enquanto diziam que tinha sido um prazer trabalhar comigo. O Xavier demorou-se algum tempo a pedir-me desculpa pela falta de fé que tinha em mim quando tudo começou, mas acho que a desculpa era entendida para o Miguel. Por fim, saíram todos do quarto e fiquei só eu e o Miguel.
- Sabes, eu acho que eles ficaram realmente contentes por trabalhar com uma mulher... que usava um fato bem justinho!
- Eu não acredito que estamos sozinhos e isso é a primeira coisa que me dizes! Eu vou queimar aquele fato!
- Nem penses, já disse às enfermeiras para terem muito cuidado com ele.
- Achas mesmo? Nunca mais na vida vou usar aquilo! Quero a minha vida de seca de volta.
- Nem o vestes para mim um dia destes?... - Revirei os olhos.
- Miguel, há uma coisa que eu ainda não percebi.
- Essa cabeça não pára? Nem sei como não te custa falar com o maxilar assim!
- Custa um bocadinho, mas eu tenho mesmo que perguntar: como é que tu foste parar à minha cama naquele dia? Ou melhor, como é que eu apareci no meio desta confusão toda?
- Estava com esperança que te tivesses esquecido dessa parte. A verdade é que eu também não sei bem o que se passou, embora tenha uma teoria...
- Força, eu quero ouvi-la!
- Bem, como tenho este trabalho errr.. peculiar, somos todos objecto de testes psiquiátricos rigorosos.
- É curioso saber isso, sempre achei que todos os "espiões" tinham dupla personalidade.
- Mas tu dizes cada coisa?!... Bem, e uma parte desses testes é saber que tipo de relações pessoais temos, já que existe sempre a hipótese de colocar alguém que gostamos em perigo e isso servir como forma de chantagem emocional.
- Entendo, mas como é que eu apareço?...
- Foste a única mulher que eu alguma vez referi... - Ele deixou de olhar para mim e começou a fitar o chão. - Sempre foste a única mulher com quem eu realmente me preocupei, mesmo após estes anos todos. Eu sabia onde vivias, e sabia que tu não me querias ver mas vivia mais descansado por ver-te bem de vez em quando.
- Tu andavas a espiar-me?!
- Não! Era só para ter a certeza que estavas bem e que não precisavas de nada.
- Isso é um bocadinho doentio, sabes? - Não consegui evitar um sorriso do tamanho do mundo que poderia ter danificado o meu maxilar para sempre.
- Agora a parte que eu não sei explicar é como é que essa informação foi parar às mãos erradas. Fuga de informação interna é uma coisa grave. Também não faço ideia de como fui raptado porque a droga que me deram apagou completamente a minha memória. Agora o que sei é que a ideia era mostrar-me que eles sabiam coisas sobre mim e que era melhor eu jogar do lado deles para que tu estivesses em segurança.
- E observarem-te a partir da minha casa para saber o que pensavas fazer, não?
- Sim, suponho que me poderiam "monitorizar" por assim dizer. Claro está que eles não esperavam que tu partisses a estante com a tua cabeça e os expusesses logo ali!
- Imagino que isso baralhou-lhes um pouco os planos! - E ri-me ligeiramente.
- Sem dúvida e isso precipitou-os a enviarem alguém ao hospital para assustar-me ainda mais... coisa que conseguiram, enfim.
- Bem, o que interessa é que agora está tudo bem!
- Sem dúvida. - Ele sorriu enquanto afastava uns cabelos da minha testa. - Agora descansa que tens muito tempo para fazer o teu inquérito infindável!
- Não vais fugir para outro país ou assim agora que se sabe que eu sou o teu calcanhar de Aquiles? - Adorei a forma como aquela frase soou, eu era importante para ele!
- Estava a pensar numa forma de dar a volta a essa situação.
- Vais mandar outra pessoa vigiar-me?
- Não, estava a pensar em trazer-te mais por perto.
- Como assim?
- Não achas que é altura de eu poder ver-te todos os dias?
- Se calhar... eu já nem tenho casa para voltar!
- Só por isso?!...
- Bem, eu confesso que também sinto saudades de usar o teu roupão! E sei lá, de encontros imediatos contigo na casa-de-banho! – E pisquei-lhe o olho.
Ele riu-se e deu-me um beijo na testa. Afinal ia começar outra aventura para mim!
(A pedido de algumas famílias, o texto completo pode ser encontrado aqui)
sábado, maio 29, 2010
sexta-feira, maio 28, 2010
XVII: O Dia D, parte VII
Respirei fundo outra vez, endireitei as costas e entrei na sala com o envelope na mão à vista de todos. Vi a cara do Miguel desenhar um certo pânico e o maluco apontou-me o detonador como se fosse uma arma. Se calhar era do cansaço, mas eu estava extremamente exausta e farta porque ninguém me explicava nada, portanto acabei por dizer alto e bom som:
- Não me interessa que ele não entenda o que eu digo. - Apontei para o detonador que continuava apontado para mim. - Aqui está o envelope que ele quer, ou me dizem o que raio se passa aqui ou eu mesma trato de entregar-lhe esta porcaria!! E tenho direito a isso já que me parece que fui a única que até agora fez realmente alguma coisa? O Miguel estava mais para lá do que para cá e a operação esteve cancelada! Se ainda estão aqui é por minha causa, portanto comecem a falar... já!!
- Calma Luísa, calma. - Ouvi uma certa comoção vinda do grupo. - Este senhor aqui que está a segurar no detonador é um dos principais cabecilhas de uma organização que se dedica ao tráfico de droga.
- Mas não só, não é? Porque eu deixei a droga onde estava escondida, e mesmo assim olha a confusão que vai para aqui! O que é que está dentro deste envelope?
- Não sei.
Vi a cara de desânimo do Miguel obrigado a confessar aquilo perante a equipa. Senti que se calhar tinha abusado um bocadinho e esperei que o outro tarado não entendesse uma palavra de português. Mas o que estava aquela gente a fazer em Portugal? O nosso lindo país de brandos costumes?!... Ah claro, brandos costumes. Sítio ideal para fazer este tipo de negociatas sem ter o pânico irracional dos americanos e ingleses, além de que os espanhóis até têm algum treino com organizações terroristas. E nós aqui à entrada da Europa com a nossa linda costa tão voltada para a América do Sul. Confusa com a situação, abri o envelope, esvaziei-o para a minha mão e caiu um diamante. Haviam uns papéis lá dentro que não caíram, mas eu fiquei mais interessada no diamante. Não sabia diferenciá-los, mas aquele era verdadeiro com certeza. Alguém na sala assobiou ao ver o diamante na minha mão.
E então tudo aconteceu muito depressa. O tarado lançou-se sobre mim para tentar tirar-me o diamante (ou o envelope?) e o Miguel lançou-se em seguida. Parecia que toda a gente sabia o que fazer menos eu, mas pareceu-me que o melhor era fugir em direcção à "minha" equipa. Baixei-me e consegui evitar que o chefe de não sei que organização me agarrasse, mas antes atirei o diamante ao Miguel. Ele apanhou-o prontamente e eu fiquei momentaneamente entre os dois. Olhei para o Miguel e percebi que ele já sabia exactamente o que se passava. Fiquei feliz, apesar de eu continuar às aranhas. Olhei para o homenzinho e ele tinha os olhos raiados de fúria e ignorou-me por completo quando carregou sobre o Miguel. Eu aproveitei a oportunidade para tirar-lhe o detonador quando ele passou por mim novamente. Tentei segurá-lo o menos possível e passei-o a outra pessoa qualquer da equipa que de certeza sabia melhor o que fazer com ele. Efectivamente, assim que o teve na mão saiu apressadamente da sala. Voltei-me para o Miguel que estava a lutar com o terrorista (se mete bombas posso chamar terrorista, não?) e, para minha surpresa, o Miguel estava a perder. Mas é claro que estava a perder, ele tinha apanhado uma sova enorme, devia ter mais ossos partidos do que eu tinha inteiros!
Não sei porquê, atirei-me eu também e tropeçámos os três num sofá que por lá estava. O homem levantou-se triunfante com o diamante na mão e dirigiu-se para a varanda. Comecei a ouvir um barulho ensurdecedor, mas sem pensar nisso, levantei-me e fui atrás dele. Assim que cheguei lá fora lancei-me sobre o homem e caímos os dois na varanda. Só no chão é que me apercebi que o barulho que vinha de fora era um helicóptero!! Olhei para cima e levei um murro em cheio na cara como que a penalizar a minha distracção. Voltei-me para ele novamente e, apesar de não saber esmurrar ninguém, usei as unhas na cara dele e tentei arrancar-lhe o diamante. Entretanto o resto da minha equipa chegou à entrada da varanda e encetou uma troca de tiros com o pessoal do helicóptero. A adrenalina voltou a correr-me nas veias e eu ganhei alguma força extra que tentei usar para recuperar o diamante, sem pensar na chuva de tiros e no facto de alguns homens estarem já no chão. Senti qualquer coisa a bater-me nas costas e não liguei, mas quando trocámos de posição no meio da luta e eu fiquei por baixo porque estava a perder, vi que era uma escada lançada pelo helicóptero. Nesse momento parou a troca de tiros. Porra, o homem ia conseguir fugir!!!
Eu nem era a favor de armas, mas não entendia porque é que do meu lado ninguém disparava sobre ele. Receio de algum incidente diplomático!? Que diabo!! Agarrei-me ao pescoço dele quando ele tentava subir a escada e pressionei o suficiente para obrigá-lo a usar as duas mãos contra mim. Caímos os dois para trás de novo. Ele deu-me uma cotovelada em cheio na barriga no sítio que eu sabia que ainda não estava completamente sarado e a dor foi tão intensa que deixei de ver por alguns momentos. Fiquei de joelhos no chão a tentar reprimir as lágrimas e a lembrar-me que precisava de
respirar. O homem deu-se ao luxo de sorrir ligeiramente quando eu finalmente consegui focá-lo. Altamente irritada e dorida, arranjei forças para dar-lhe um pontapé nos pés com toda a força que o desequilibrou bastante porque ele estava em bicos de pés para alcançar a escada. Não sei bem como é que ele arranjou aquilo, mas o desequilíbrio fez com que ele ficasse pendurado na escada pelo queixo. O helicóptero subiu a escada nesse exacto instante e ele foi levantado a meia altura. As pernas dele bateram na varanda quando a escada se mexeu e eu olhei incrédula enquanto os braços dele teimavam em falhar a escada... e ele acabou por mergulhar de cabeça em direcção ao chão.
Sem querer olhar para baixo, arrastei-me para dentro da suite e os tiros recomeçaram. Escondi-me atrás de um sofá onde o Miguel "jazia" e todo o meu corpo falhou nesse momento.
- Não me interessa que ele não entenda o que eu digo. - Apontei para o detonador que continuava apontado para mim. - Aqui está o envelope que ele quer, ou me dizem o que raio se passa aqui ou eu mesma trato de entregar-lhe esta porcaria!! E tenho direito a isso já que me parece que fui a única que até agora fez realmente alguma coisa? O Miguel estava mais para lá do que para cá e a operação esteve cancelada! Se ainda estão aqui é por minha causa, portanto comecem a falar... já!!
- Calma Luísa, calma. - Ouvi uma certa comoção vinda do grupo. - Este senhor aqui que está a segurar no detonador é um dos principais cabecilhas de uma organização que se dedica ao tráfico de droga.
- Mas não só, não é? Porque eu deixei a droga onde estava escondida, e mesmo assim olha a confusão que vai para aqui! O que é que está dentro deste envelope?
- Não sei.
Vi a cara de desânimo do Miguel obrigado a confessar aquilo perante a equipa. Senti que se calhar tinha abusado um bocadinho e esperei que o outro tarado não entendesse uma palavra de português. Mas o que estava aquela gente a fazer em Portugal? O nosso lindo país de brandos costumes?!... Ah claro, brandos costumes. Sítio ideal para fazer este tipo de negociatas sem ter o pânico irracional dos americanos e ingleses, além de que os espanhóis até têm algum treino com organizações terroristas. E nós aqui à entrada da Europa com a nossa linda costa tão voltada para a América do Sul. Confusa com a situação, abri o envelope, esvaziei-o para a minha mão e caiu um diamante. Haviam uns papéis lá dentro que não caíram, mas eu fiquei mais interessada no diamante. Não sabia diferenciá-los, mas aquele era verdadeiro com certeza. Alguém na sala assobiou ao ver o diamante na minha mão.
E então tudo aconteceu muito depressa. O tarado lançou-se sobre mim para tentar tirar-me o diamante (ou o envelope?) e o Miguel lançou-se em seguida. Parecia que toda a gente sabia o que fazer menos eu, mas pareceu-me que o melhor era fugir em direcção à "minha" equipa. Baixei-me e consegui evitar que o chefe de não sei que organização me agarrasse, mas antes atirei o diamante ao Miguel. Ele apanhou-o prontamente e eu fiquei momentaneamente entre os dois. Olhei para o Miguel e percebi que ele já sabia exactamente o que se passava. Fiquei feliz, apesar de eu continuar às aranhas. Olhei para o homenzinho e ele tinha os olhos raiados de fúria e ignorou-me por completo quando carregou sobre o Miguel. Eu aproveitei a oportunidade para tirar-lhe o detonador quando ele passou por mim novamente. Tentei segurá-lo o menos possível e passei-o a outra pessoa qualquer da equipa que de certeza sabia melhor o que fazer com ele. Efectivamente, assim que o teve na mão saiu apressadamente da sala. Voltei-me para o Miguel que estava a lutar com o terrorista (se mete bombas posso chamar terrorista, não?) e, para minha surpresa, o Miguel estava a perder. Mas é claro que estava a perder, ele tinha apanhado uma sova enorme, devia ter mais ossos partidos do que eu tinha inteiros!
Não sei porquê, atirei-me eu também e tropeçámos os três num sofá que por lá estava. O homem levantou-se triunfante com o diamante na mão e dirigiu-se para a varanda. Comecei a ouvir um barulho ensurdecedor, mas sem pensar nisso, levantei-me e fui atrás dele. Assim que cheguei lá fora lancei-me sobre o homem e caímos os dois na varanda. Só no chão é que me apercebi que o barulho que vinha de fora era um helicóptero!! Olhei para cima e levei um murro em cheio na cara como que a penalizar a minha distracção. Voltei-me para ele novamente e, apesar de não saber esmurrar ninguém, usei as unhas na cara dele e tentei arrancar-lhe o diamante. Entretanto o resto da minha equipa chegou à entrada da varanda e encetou uma troca de tiros com o pessoal do helicóptero. A adrenalina voltou a correr-me nas veias e eu ganhei alguma força extra que tentei usar para recuperar o diamante, sem pensar na chuva de tiros e no facto de alguns homens estarem já no chão. Senti qualquer coisa a bater-me nas costas e não liguei, mas quando trocámos de posição no meio da luta e eu fiquei por baixo porque estava a perder, vi que era uma escada lançada pelo helicóptero. Nesse momento parou a troca de tiros. Porra, o homem ia conseguir fugir!!!
Eu nem era a favor de armas, mas não entendia porque é que do meu lado ninguém disparava sobre ele. Receio de algum incidente diplomático!? Que diabo!! Agarrei-me ao pescoço dele quando ele tentava subir a escada e pressionei o suficiente para obrigá-lo a usar as duas mãos contra mim. Caímos os dois para trás de novo. Ele deu-me uma cotovelada em cheio na barriga no sítio que eu sabia que ainda não estava completamente sarado e a dor foi tão intensa que deixei de ver por alguns momentos. Fiquei de joelhos no chão a tentar reprimir as lágrimas e a lembrar-me que precisava de
respirar. O homem deu-se ao luxo de sorrir ligeiramente quando eu finalmente consegui focá-lo. Altamente irritada e dorida, arranjei forças para dar-lhe um pontapé nos pés com toda a força que o desequilibrou bastante porque ele estava em bicos de pés para alcançar a escada. Não sei bem como é que ele arranjou aquilo, mas o desequilíbrio fez com que ele ficasse pendurado na escada pelo queixo. O helicóptero subiu a escada nesse exacto instante e ele foi levantado a meia altura. As pernas dele bateram na varanda quando a escada se mexeu e eu olhei incrédula enquanto os braços dele teimavam em falhar a escada... e ele acabou por mergulhar de cabeça em direcção ao chão.
Sem querer olhar para baixo, arrastei-me para dentro da suite e os tiros recomeçaram. Escondi-me atrás de um sofá onde o Miguel "jazia" e todo o meu corpo falhou nesse momento.
quinta-feira, maio 27, 2010
XVI: O Dia D, parte VI
A Lola, a Mimi e a Laura eram fantásticas e ainda correu melhor do que eu tinha planeado! Não sei como é que elas conseguiram, mas atraíram pelo menos uns dez "capangas" ao nosso andar e nós garantimos que eles não teriam sono leve nessa noite. A agitação no 27º andar acalmou com a falta de homens e a equipa pseudo-liderada pelo Miguel estava finalmente preparada para entrar. Digo "pseudo-liderada" porque era óbvio que ele não estava em condições nem de se lembrar que para andar é preciso colocar dois pés no chão alternadamente. Eu e o Xavier, que descobri ser o nome do convencido da mota, liderávamos a operação até porque eu me recusava a contar-lhes tudo o que sabia com medo que eles me deixassem ficar para trás. Apesar da minha animosidade em relação ao Xavier, a verdade é que ele agora olhava para mim com alguma admiração e eu gostava da sensação.
Subimos todos juntos, todos de preto, até ao 27º andar pelas escadas. Eu protestei porque estava extremamente cansada de andar acima e baixo e, agora que estávamos em maior número, custava assim tanto usar o elevador?!... Contrariada lá subi as escadas com aquela malta toda atrás de mim. Os traficantes (ou lá o que eram) ficaram surpresos por ver tanta gente entrar num piso supostamente sem acesso e também pela falta do aviso que era esperado por parte da segurança privada. Penso que se aperceberam rapidamente que estavam em menor número e deixaram-se ficar parados até ver como a coisa se desenrolava. Eu entendi, seria exactamente o que eu faria no lugar deles.
No entanto, um deles (o chefe?) não parava de remexer na secretária. Não parou nem quando estava completamente cercado e apontado como alvo de várias armas que me pareceram que podiam disparar sozinhas só com a tensão combinada que flutuava naquela sala. Eu deixei-me ficar para trás, o facto do homem não se importar se ia morrer ou não chocou-me um bocado. Os papéis eram mais importantes que a vida dele? Ocorreu-me entretanto que talvez fossem mesmo a vida dele. Apesar de nunca ter pensado em mim como racista, a verdade é que ver alguém exactamente igual a mim por trás de uma organização criminosa perturbou-me um pouco. Aquele homem poderia passar por um executivo europeu, norte-americano, etc. quando quisesse. Os filmes poupam-nos sempre a estas realidades...
Houve alguma troca de palavras que eu não percebi e o homem na secretária sorriu e mostrou-nos o que me pareceu um mecanismo qualquer. Supus que não servia para ligar a televisão nem para fechar os cortinados. O Miguel colocou-se automaticamente à minha frente, mas como me deu ideia que a origem do problema seria uma bomba, não vi como é que ele ia impedir que eu voasse aos pedacinhos assim que a bomba deflagrasse. Mas foi querido na mesma. O resto do pessoal estava parado como se agrafado ao chão. O homem continuou a falar, provavelmente a pedir para lhe entregarem o que eu tinha escondido ou rebentava com o hotel. Suponho que rebentar com S. Bento não teria surtido o efeito desejado de apelar ao nosso sentido de sobrevivência. Só por descargo de consciência, não fosse ele estar mesmo a tentar rebentar com outra coisa qualquer, acabei por perguntar ao Miguel:
- Aquilo é o detonador de uma bomba, não é?
- Sim, shhh!
- A bomba está aqui no hotel?
Não consegui resposta, mas consegui concentrar toda a atenção da sala em mim. Olhei à volta e sorri, confesso que estava demasiado despreocupada para quem tem um maluco na sala com um detonador nas mãos. Era provavelmente cansaço e efeito retardado do dobro da medicação para as dores que tinha tomado naquela manhã. O homem recomeçou a falar naquela língua de trapos, mas agora sempre voltado para mim. Sentia mesmo falta de ter um tradutor simultâneo na minha orelha, um peixe de Babel seria o ideal! Quando o homem apontou para mim e o Miguel se pôs completamente à minha frente, comecei a achar que a minha situação tinha acabado de piorar, se é que isso era possível! Irritada com a situação, especialmente porque achava que agora tinha o direito a saber o que se passava, acabei por desabafar:
- Mas será que não há ninguém nesta sala que me explique o que raio se está a passar aqui?!
Silêncio... podia ouvir os sons do meu estômago e os rins a reclamarem por estarem apertados há tantas horas. Sentei-me de cócoras no chão, resignada a esperar que continuassem aquela conversa em chinês. A conversa lá prosseguiu bastante mais incendiada entre o Miguel e o homem. Ao fim de cinco minutos daquilo deu-me vontade de bocejar, o que era extremamente inapropriado, mas o que é que eu podia fazer?... E eis que me ocorreu finalmente qualquer coisa: naquela posição eu estava demasiado baixa para que o maluco do detonador me visse. A primeira hipótese seria desarmá-lo, mas dado o meu conhecimento sobre detonadores, era mais provável que eu explodisse com qualquer coisa primeiro. Sendo assim, havia também a bomba. Onde é que aquele maluco poderia ter metido uma bomba? Lembrei-me do elevador de cargas, pareceu-me central o suficiente para poder causar danos ao hotel todo. Mas eu também não sabia como desmontar a bomba, o que era uma chatice. E é claro que ele não estava sozinho e que havia um plano de fuga, senão estaria a negociar um acordo para não ser extraditado e não a fazer exigências. Também podia ser bluff, mas a verdade é que os do meu lado estavam a fazer bluff visto ninguém saber onde estavam realmente as provas que eu tinha escondidas. Nestes termos, imagino que não era realmente uma negociação fácil! Mas sendo assim só restava mesmo uma hipótese. Devagarinho, fui de gatas até à casa-de-banho da suite e achei impressionante o facto de ninguém ter reparado em mim. A negociação estava mesmo a necessitar de uma grande dose de concentração! Abri o caixote de lixo, tirei o caixote do lado de dentro e entre os dois lá estava o envelope colado com pensos rápidos. Pronto, agora era respirar fundo e esperar que a minha sorte de principiante continuasse a aparar-me os golpes.
Subimos todos juntos, todos de preto, até ao 27º andar pelas escadas. Eu protestei porque estava extremamente cansada de andar acima e baixo e, agora que estávamos em maior número, custava assim tanto usar o elevador?!... Contrariada lá subi as escadas com aquela malta toda atrás de mim. Os traficantes (ou lá o que eram) ficaram surpresos por ver tanta gente entrar num piso supostamente sem acesso e também pela falta do aviso que era esperado por parte da segurança privada. Penso que se aperceberam rapidamente que estavam em menor número e deixaram-se ficar parados até ver como a coisa se desenrolava. Eu entendi, seria exactamente o que eu faria no lugar deles.
No entanto, um deles (o chefe?) não parava de remexer na secretária. Não parou nem quando estava completamente cercado e apontado como alvo de várias armas que me pareceram que podiam disparar sozinhas só com a tensão combinada que flutuava naquela sala. Eu deixei-me ficar para trás, o facto do homem não se importar se ia morrer ou não chocou-me um bocado. Os papéis eram mais importantes que a vida dele? Ocorreu-me entretanto que talvez fossem mesmo a vida dele. Apesar de nunca ter pensado em mim como racista, a verdade é que ver alguém exactamente igual a mim por trás de uma organização criminosa perturbou-me um pouco. Aquele homem poderia passar por um executivo europeu, norte-americano, etc. quando quisesse. Os filmes poupam-nos sempre a estas realidades...
Houve alguma troca de palavras que eu não percebi e o homem na secretária sorriu e mostrou-nos o que me pareceu um mecanismo qualquer. Supus que não servia para ligar a televisão nem para fechar os cortinados. O Miguel colocou-se automaticamente à minha frente, mas como me deu ideia que a origem do problema seria uma bomba, não vi como é que ele ia impedir que eu voasse aos pedacinhos assim que a bomba deflagrasse. Mas foi querido na mesma. O resto do pessoal estava parado como se agrafado ao chão. O homem continuou a falar, provavelmente a pedir para lhe entregarem o que eu tinha escondido ou rebentava com o hotel. Suponho que rebentar com S. Bento não teria surtido o efeito desejado de apelar ao nosso sentido de sobrevivência. Só por descargo de consciência, não fosse ele estar mesmo a tentar rebentar com outra coisa qualquer, acabei por perguntar ao Miguel:
- Aquilo é o detonador de uma bomba, não é?
- Sim, shhh!
- A bomba está aqui no hotel?
Não consegui resposta, mas consegui concentrar toda a atenção da sala em mim. Olhei à volta e sorri, confesso que estava demasiado despreocupada para quem tem um maluco na sala com um detonador nas mãos. Era provavelmente cansaço e efeito retardado do dobro da medicação para as dores que tinha tomado naquela manhã. O homem recomeçou a falar naquela língua de trapos, mas agora sempre voltado para mim. Sentia mesmo falta de ter um tradutor simultâneo na minha orelha, um peixe de Babel seria o ideal! Quando o homem apontou para mim e o Miguel se pôs completamente à minha frente, comecei a achar que a minha situação tinha acabado de piorar, se é que isso era possível! Irritada com a situação, especialmente porque achava que agora tinha o direito a saber o que se passava, acabei por desabafar:
- Mas será que não há ninguém nesta sala que me explique o que raio se está a passar aqui?!
Silêncio... podia ouvir os sons do meu estômago e os rins a reclamarem por estarem apertados há tantas horas. Sentei-me de cócoras no chão, resignada a esperar que continuassem aquela conversa em chinês. A conversa lá prosseguiu bastante mais incendiada entre o Miguel e o homem. Ao fim de cinco minutos daquilo deu-me vontade de bocejar, o que era extremamente inapropriado, mas o que é que eu podia fazer?... E eis que me ocorreu finalmente qualquer coisa: naquela posição eu estava demasiado baixa para que o maluco do detonador me visse. A primeira hipótese seria desarmá-lo, mas dado o meu conhecimento sobre detonadores, era mais provável que eu explodisse com qualquer coisa primeiro. Sendo assim, havia também a bomba. Onde é que aquele maluco poderia ter metido uma bomba? Lembrei-me do elevador de cargas, pareceu-me central o suficiente para poder causar danos ao hotel todo. Mas eu também não sabia como desmontar a bomba, o que era uma chatice. E é claro que ele não estava sozinho e que havia um plano de fuga, senão estaria a negociar um acordo para não ser extraditado e não a fazer exigências. Também podia ser bluff, mas a verdade é que os do meu lado estavam a fazer bluff visto ninguém saber onde estavam realmente as provas que eu tinha escondidas. Nestes termos, imagino que não era realmente uma negociação fácil! Mas sendo assim só restava mesmo uma hipótese. Devagarinho, fui de gatas até à casa-de-banho da suite e achei impressionante o facto de ninguém ter reparado em mim. A negociação estava mesmo a necessitar de uma grande dose de concentração! Abri o caixote de lixo, tirei o caixote do lado de dentro e entre os dois lá estava o envelope colado com pensos rápidos. Pronto, agora era respirar fundo e esperar que a minha sorte de principiante continuasse a aparar-me os golpes.
quarta-feira, maio 26, 2010
XV: O Dia D, parte V
- Luísa?! O que estás aqui a fazer?! O plano foi cancelado, ninguém te avisou?
- Também estou muito contente por ver-te, estás com péssimo aspecto!
- Não era isso que eu queria dizer.
- Eu sei, eles andam todos atrás de ti, não é? Daí a confusão brutal no andar de baixo!
- Mais ou menos, parece que desapareceram umas coisas importantes, mas não fomos nós! E, no meio da confusão, deixaram-me sozinho e eu também fugi.
- É bom saber que te aguentas de pé... mal, mas estás de pé.
- Luísa, pára lá com as piadas! Não tarda estão todos aqui, tens que ir-te embora!
- Eu não posso contar piadas, mas tu podes!... O que vinhas fazer aqui? Não há maneira de conseguires chegar a lado nenhum de varanda em varanda nesse estado!
- Não estou assim tão mal!...
- Miguel, a tua cara está parcialmente desfigurada e tu estás a coxear. Pelo sangue que tens na boca até diria que te faltam dentes e o teu nariz, enfim, deve estar partido em vinte sítios diferentes!
- E o que é que saber isso me ajuda?
- Não sei, mas vamos sair daqui os dois juntos. E não é pela janela!
- Mas eu só saio daqui quando terminar o que vim fazer.
- Espero que tenhas um bom seguro dentário... E o que é que vieste cá fazer, exactamente?
- Não podemos discutir isso depois?
- Sim... ocorreu-me agora o sítio ideal para conversarmos! Vamos até ao 20º andar!
- O quê??
- Lembrei-me de um sítio onde podemos falar com calma e ninguém te vai procurar lá.
- E como é que vamos descer oito andares?
- Pela conduta da ventilação!
- Estás maluca? Já viste o meu tamanho? É como passar uma melancia pelo buraco de um limão!
- Acredita, isto é surpreendentemente grande! Hum, consegues arrancar grelhas com facilidade?...
Apesar dos protestos, o Miguel fez o que eu lhe pedi... afinal, eu era a única que tinha um plano. O meu mundo estava mesmo do avesso! Não fazia ideia de como ele tinha despistado os outros, mas mais cedo ou mais tarde eles iam encontrar-nos num quarto ou numa varanda. Principalmente porque o Miguel estava realmente em muito mau estado e não podia fazer grandes acrobacias, independentemente do que ele dissesse. Ele tirou a grelha com uma facilidade incrível (que tipo de barras energéticas é que dão a esta gente?!) e eu ajudei-o a subir o mais que pude. Entretanto tirei as bolinhas de algodão que tinha no fato e dei-lhe para estancar o sangue que ainda lhe escorria do nariz.
- Mas onde é que arranjaste isto? Obrigado!
- Mulher prevenida, já se sabe... - Sorri desajeitadamente.
- Hum, se calhar tens razão. Esta ventilação é extremamente larga... para uma ventilação. Eu entro mas vai ser horrível deslocar-me aqui dentro.
- Não vai nada... vá, tu primeiro!
- Já te disse que ficas fantástica nesse fato?
- Não disseste e eu não ouvi nada agora mesmo. Vá, mexe-te!
Resignado, ele lá fez o melhor que pôde e entrou na ventilação. O Miguel mexia-se muito devagar por causa da falta de espaço, mas eu empurrava sempre que podia. Imagino que eu não teria parado de rir se nos encontrássemos noutra situação. Mas dada a realidade, a única coisa que me ia dar vontade de rir era sair dali viva com ele. Felizmente encontrei a descida da ventilação e lá fomos os dois! Infelizmente ele provocava um atrito terrível e a descida foi um bocado penosa, além de que o Miguel ficou entalado na saída, metade do corpo de fora e metade dentro da ventilação. Ele não disse nada, mas o facto de ter três meninas em lingerie cor-de-rosa, vermelha e negra a ajudá-lo a sair da ventilação afectou-lhe fortemente o ego. E a coisa só piorou quando ele viu o velho esparramado na cama e algemado à cabeceira.
- Onde é que nos trouxeste!? - Perguntou-me em surdina.
- Olá! Não sei se se lembram de mim. Ah, o teu casaco comprido está num quarto no 29º andar. Eu devolvo-te, mas se não te encontrar entretanto, procura pelo Sr. José António Fagundes! - O Miguel lançou-me um olhar reprovador misturado com uma grande incompreensão. - Mas eu precisava da vossa ajuda. Como já se aperceberam, eu ando a fugir de uns senhores que eu acredito pertencerem a uma organização criminosa que trafica droga e que está, neste momento, no meio de um importante negócio no 27º andar.
- Luísa!!!!!!!!!! - Perguntei-me se ele ia conseguir fechar de novo o maxilar depois de abri-lo tanto. - Precisava da vossa ajuda para não só acabar com isto, mas para ter a certeza que consigo sair daqui viva e a ti, para devolver-te o bonito casaco, claro.
- Minha menina – a voz do velho era estranhamente autoritária – isso é alguma piada? É que o que está a dizer que se passa neste hotel é extremamente grave!
- Não é piada não senhor, aliás, basta olhar para o estado do meu companheiro e ouvir a confusão enorme que vai lá fora. Já agora, chamo-me Luísa Alves, muito prazer.
- João Pestana, muito prazer. - Eu e o Miguel trocámos um olhar divertido. - Então em que podemos ajudá-la?
- Bem, não sei exactamente como vamos fazer isto, mas precisamos de entrar nuns tantos quartos sem levantar suspeita e apanhá-los em flagrante com a ajuda da segurança do hotel ou de alguma polícia especial... Miguel?
- Sim, eu posso chamar alguém. Mas não vai haver negócio depois da confusão que se gerou.
- Eu sei, mas a verdade é que ainda ninguém foi embora, portanto há mais qualquer coisa que eles querem, ou precisam, e ainda não encontraram.
- E tu sabes o que isso é?
- Por acaso sei!
Olharam todos para mim ao mesmo tempo, mas a única coisa que me passou pela cabeça é que já nem me importava de estar vestida como eu estava se à minha frente estava alguém perfeitamente confortável numa lingerie cor-de-rosa e com um tutu minúsculo!... Sorri, inspirei fundo e comecei a explicar.
- Também estou muito contente por ver-te, estás com péssimo aspecto!
- Não era isso que eu queria dizer.
- Eu sei, eles andam todos atrás de ti, não é? Daí a confusão brutal no andar de baixo!
- Mais ou menos, parece que desapareceram umas coisas importantes, mas não fomos nós! E, no meio da confusão, deixaram-me sozinho e eu também fugi.
- É bom saber que te aguentas de pé... mal, mas estás de pé.
- Luísa, pára lá com as piadas! Não tarda estão todos aqui, tens que ir-te embora!
- Eu não posso contar piadas, mas tu podes!... O que vinhas fazer aqui? Não há maneira de conseguires chegar a lado nenhum de varanda em varanda nesse estado!
- Não estou assim tão mal!...
- Miguel, a tua cara está parcialmente desfigurada e tu estás a coxear. Pelo sangue que tens na boca até diria que te faltam dentes e o teu nariz, enfim, deve estar partido em vinte sítios diferentes!
- E o que é que saber isso me ajuda?
- Não sei, mas vamos sair daqui os dois juntos. E não é pela janela!
- Mas eu só saio daqui quando terminar o que vim fazer.
- Espero que tenhas um bom seguro dentário... E o que é que vieste cá fazer, exactamente?
- Não podemos discutir isso depois?
- Sim... ocorreu-me agora o sítio ideal para conversarmos! Vamos até ao 20º andar!
- O quê??
- Lembrei-me de um sítio onde podemos falar com calma e ninguém te vai procurar lá.
- E como é que vamos descer oito andares?
- Pela conduta da ventilação!
- Estás maluca? Já viste o meu tamanho? É como passar uma melancia pelo buraco de um limão!
- Acredita, isto é surpreendentemente grande! Hum, consegues arrancar grelhas com facilidade?...
Apesar dos protestos, o Miguel fez o que eu lhe pedi... afinal, eu era a única que tinha um plano. O meu mundo estava mesmo do avesso! Não fazia ideia de como ele tinha despistado os outros, mas mais cedo ou mais tarde eles iam encontrar-nos num quarto ou numa varanda. Principalmente porque o Miguel estava realmente em muito mau estado e não podia fazer grandes acrobacias, independentemente do que ele dissesse. Ele tirou a grelha com uma facilidade incrível (que tipo de barras energéticas é que dão a esta gente?!) e eu ajudei-o a subir o mais que pude. Entretanto tirei as bolinhas de algodão que tinha no fato e dei-lhe para estancar o sangue que ainda lhe escorria do nariz.
- Mas onde é que arranjaste isto? Obrigado!
- Mulher prevenida, já se sabe... - Sorri desajeitadamente.
- Hum, se calhar tens razão. Esta ventilação é extremamente larga... para uma ventilação. Eu entro mas vai ser horrível deslocar-me aqui dentro.
- Não vai nada... vá, tu primeiro!
- Já te disse que ficas fantástica nesse fato?
- Não disseste e eu não ouvi nada agora mesmo. Vá, mexe-te!
Resignado, ele lá fez o melhor que pôde e entrou na ventilação. O Miguel mexia-se muito devagar por causa da falta de espaço, mas eu empurrava sempre que podia. Imagino que eu não teria parado de rir se nos encontrássemos noutra situação. Mas dada a realidade, a única coisa que me ia dar vontade de rir era sair dali viva com ele. Felizmente encontrei a descida da ventilação e lá fomos os dois! Infelizmente ele provocava um atrito terrível e a descida foi um bocado penosa, além de que o Miguel ficou entalado na saída, metade do corpo de fora e metade dentro da ventilação. Ele não disse nada, mas o facto de ter três meninas em lingerie cor-de-rosa, vermelha e negra a ajudá-lo a sair da ventilação afectou-lhe fortemente o ego. E a coisa só piorou quando ele viu o velho esparramado na cama e algemado à cabeceira.
- Onde é que nos trouxeste!? - Perguntou-me em surdina.
- Olá! Não sei se se lembram de mim. Ah, o teu casaco comprido está num quarto no 29º andar. Eu devolvo-te, mas se não te encontrar entretanto, procura pelo Sr. José António Fagundes! - O Miguel lançou-me um olhar reprovador misturado com uma grande incompreensão. - Mas eu precisava da vossa ajuda. Como já se aperceberam, eu ando a fugir de uns senhores que eu acredito pertencerem a uma organização criminosa que trafica droga e que está, neste momento, no meio de um importante negócio no 27º andar.
- Luísa!!!!!!!!!! - Perguntei-me se ele ia conseguir fechar de novo o maxilar depois de abri-lo tanto. - Precisava da vossa ajuda para não só acabar com isto, mas para ter a certeza que consigo sair daqui viva e a ti, para devolver-te o bonito casaco, claro.
- Minha menina – a voz do velho era estranhamente autoritária – isso é alguma piada? É que o que está a dizer que se passa neste hotel é extremamente grave!
- Não é piada não senhor, aliás, basta olhar para o estado do meu companheiro e ouvir a confusão enorme que vai lá fora. Já agora, chamo-me Luísa Alves, muito prazer.
- João Pestana, muito prazer. - Eu e o Miguel trocámos um olhar divertido. - Então em que podemos ajudá-la?
- Bem, não sei exactamente como vamos fazer isto, mas precisamos de entrar nuns tantos quartos sem levantar suspeita e apanhá-los em flagrante com a ajuda da segurança do hotel ou de alguma polícia especial... Miguel?
- Sim, eu posso chamar alguém. Mas não vai haver negócio depois da confusão que se gerou.
- Eu sei, mas a verdade é que ainda ninguém foi embora, portanto há mais qualquer coisa que eles querem, ou precisam, e ainda não encontraram.
- E tu sabes o que isso é?
- Por acaso sei!
Olharam todos para mim ao mesmo tempo, mas a única coisa que me passou pela cabeça é que já nem me importava de estar vestida como eu estava se à minha frente estava alguém perfeitamente confortável numa lingerie cor-de-rosa e com um tutu minúsculo!... Sorri, inspirei fundo e comecei a explicar.
terça-feira, maio 25, 2010
XIV: O Dia D, parte IV
Não sabia novamente o que fazer, por isso fiquei a observar a cena. O Miguel sabia falar naquela língua, embora a maior parte das vezes se limitasse a abanar a cabeça em sinal de negação e a levar um murro ou outro por isso. Comecei a sentir-me cada vez mais frustrada e impotente por estar ali sem mexer um músculo. Penso que o Miguel desmaiou dos maus tratos a dada altura, porque a cabeça dele caiu para a frente sem vida. Suponho que os dois homens acharam que um era suficiente para guardar o Miguel e o outro saiu daquela divisão. Era a minha chance! Com cuidado rastejei até à primeira grelha de onde não vinha qualquer luz e, tentando fazer o mínimo ruído possível, atirei as pernas com força contra a grelha. Nada. A grelha não se mexeu um milímetro. Longe de desanimar à primeira tentativa, dei outro pontapé a pés juntos e nada. Talvez tivesse ficado um bocadinho mais arqueada? Suspirei alto com um certo desespero à mistura e resolvi rastejar um bocadito mais até à próxima grelha. Depois de três tentativas falhadas, resignei-me à ideia de que ia ficar fechada naquela ventilação até ao dia seguinte, pelo menos. O meu lado desastrado voltou ao de cima e, quando dei por mim, estava a deslizar por um túnel que tinha uma inclinação mais acentuada que os anteriores. Comecei a ficar apreensiva porque não conseguia travar, mas aos mesmo tempo estava a achar interessante que o fato estivesse a absorver a maior parte da fricção que se gerava. Ganhei uma velocidade considerável e quando o túnel virou bruscamente, eu saí pela grelha que estava em frente. Aí sim, os meus pés tiveram força para arrancar a grelha!
Aterrei no chão de forma bastante infeliz e abanei a cabeça uma série de vezes até achar que estava a ver apenas uma imagem. Pisquei bastante os olhos até conseguir vislumbrar finalmente três mulheres com uns fatos bastante.. reduzidos, vá, e um velho algemado à cama, apenas com boxers e um lenço a tapar-lhe a boca. Duas das moças tinham apenas cuecas de cores garridas vestidas, além de meias altas e sapatos de salto alto. O chicote da terceira, vestida de cabedal, ainda estava no ar, mas eles olhavam-me com ar nitidamente confuso. Suponho que eu lhes devolvia o mesmo olhar enquanto tentava perceber o que se passava ali. Até que finalmente "acordei", sorri e pedi desculpa, que continuassem que eu estava de saída... mas não sem antes perguntar se podia levar um casaco comprido emprestado. A respectiva dona acenou que sim, ainda um bocado atarantada com a minha entrada, e conforme eu me vestia e saía do quarto, tinha a nítida sensação de que a única coisa que se movia naquele quarto sem ser eu eram os vários pares de olhos constrangidos que caíam em mim. Nestas alturas usamos sempre o mesmo código de honra: eu nunca te vi nesses propósitos e tu nunca me viste aqui. Assim ficamos todos felizes e contentes!
Soltei o cabelo, vesti o casaco comprido e saí apressadamente do quarto, na esperança que alguém me visse apenas da cintura para cima e não reparasse que estava descalça. Cheguei ao átrio dos elevadores e dei-me conta que estava no 20º andar... menos mal. Só tinha sete para subir e já estava demasiado cansada daquelas voltas todas, por isso apanhei mesmo o elevador. Como já devia estar à espera, não era possível sair no 27º andar porque estava bloqueado. Fui tentando os vários botões e acabei por subir até ao 30º andar que foi o primeiro botão que funcionou. Chegada ao 30º andar, averiguei o estado das escadas e vi que havia gente a guardar a entrada dos outros andares. Deixei- me deslizar contra a parede até acabar sentada no chão, sentia-me altamente desmoralizada. Como é que eu ia chegar até ao Miguel?...
A resposta veio sob a forma de um elevador de cargas que estava metido numa espécie de armário, provavelmente para transportar comida ou assim. Levantei-me e dirigi-me ao elevador, não estava ali nada mas a qualquer momento podia subir ou descer. Aproveitei o facto de estar vazio para colocar a cabeça no túnel e ver se havia alguma hipótese de descer por ali. O túnel estava medonho, cheio de pó e outras coisas que eu não queria sequer saber. Fiz uma careta só de pensar na possibilidade de ter um pezinho meu que fosse tocar naquela parede. Mas porque é que o Miguel tinha sido tão estúpido e confiado em mim como ajuda possível?! E onde é que andava o outro da mota?... Se calhar ter-me desfeito do auricular não tinha sido boa ideia. Voltei a espreitar as escadas e vi alguma comoção. Alguma coisa tinha acontecido e isso deixou-me o caminho livre até ao 29º andar.
Corri o mais depressa que podia e consegui chegar ao andar imediatamente a seguir, aparentemente sem ter sido notada. Já só faltavam dois andares... Mas estava gente a amontoar-se no 28º andar e eu não podia descer mais por ali. Noutro rasgo de sorte, o barulho no andar de baixo provocou alguma consternação aos hóspedes do 29º andar, habituados a que estavam a uma noite de sono sem interrupções pelo preço que pagavam. Tentei passar despercebida como quem caminhava em direcção ao quarto, enquanto várias pessoas assomavam à porta em pijama. Alguns aventuraram-se mais longe e saíram dos quartos para espreitar o que se passava no andar de baixo. Era a minha oportunidade! Quase sem pensar, entrei na primeira porta aberta que vi e fui direita à janela. Não sabia bem em que zona do hotel estava, mas saí para a varanda, deitei-me no chão e espreitei os andares de baixo. Havia alguma agitação, mas eu estava claramente à esquerda do foco de tensão. Como não estava ninguém na varanda por baixo da minha, resolvi descer até ao 28º andar. Entrei pela varanda e desejei por todos os santinhos que a janela de correr estivesse aberta. Pus a mão do lado direito para abri-la com um empurrão, mas a janela abriu-se depressa mais: o Miguel tinha-a aberto ao mesmo tempo que eu, mas do lado de dentro!
Aterrei no chão de forma bastante infeliz e abanei a cabeça uma série de vezes até achar que estava a ver apenas uma imagem. Pisquei bastante os olhos até conseguir vislumbrar finalmente três mulheres com uns fatos bastante.. reduzidos, vá, e um velho algemado à cama, apenas com boxers e um lenço a tapar-lhe a boca. Duas das moças tinham apenas cuecas de cores garridas vestidas, além de meias altas e sapatos de salto alto. O chicote da terceira, vestida de cabedal, ainda estava no ar, mas eles olhavam-me com ar nitidamente confuso. Suponho que eu lhes devolvia o mesmo olhar enquanto tentava perceber o que se passava ali. Até que finalmente "acordei", sorri e pedi desculpa, que continuassem que eu estava de saída... mas não sem antes perguntar se podia levar um casaco comprido emprestado. A respectiva dona acenou que sim, ainda um bocado atarantada com a minha entrada, e conforme eu me vestia e saía do quarto, tinha a nítida sensação de que a única coisa que se movia naquele quarto sem ser eu eram os vários pares de olhos constrangidos que caíam em mim. Nestas alturas usamos sempre o mesmo código de honra: eu nunca te vi nesses propósitos e tu nunca me viste aqui. Assim ficamos todos felizes e contentes!
Soltei o cabelo, vesti o casaco comprido e saí apressadamente do quarto, na esperança que alguém me visse apenas da cintura para cima e não reparasse que estava descalça. Cheguei ao átrio dos elevadores e dei-me conta que estava no 20º andar... menos mal. Só tinha sete para subir e já estava demasiado cansada daquelas voltas todas, por isso apanhei mesmo o elevador. Como já devia estar à espera, não era possível sair no 27º andar porque estava bloqueado. Fui tentando os vários botões e acabei por subir até ao 30º andar que foi o primeiro botão que funcionou. Chegada ao 30º andar, averiguei o estado das escadas e vi que havia gente a guardar a entrada dos outros andares. Deixei- me deslizar contra a parede até acabar sentada no chão, sentia-me altamente desmoralizada. Como é que eu ia chegar até ao Miguel?...
A resposta veio sob a forma de um elevador de cargas que estava metido numa espécie de armário, provavelmente para transportar comida ou assim. Levantei-me e dirigi-me ao elevador, não estava ali nada mas a qualquer momento podia subir ou descer. Aproveitei o facto de estar vazio para colocar a cabeça no túnel e ver se havia alguma hipótese de descer por ali. O túnel estava medonho, cheio de pó e outras coisas que eu não queria sequer saber. Fiz uma careta só de pensar na possibilidade de ter um pezinho meu que fosse tocar naquela parede. Mas porque é que o Miguel tinha sido tão estúpido e confiado em mim como ajuda possível?! E onde é que andava o outro da mota?... Se calhar ter-me desfeito do auricular não tinha sido boa ideia. Voltei a espreitar as escadas e vi alguma comoção. Alguma coisa tinha acontecido e isso deixou-me o caminho livre até ao 29º andar.
Corri o mais depressa que podia e consegui chegar ao andar imediatamente a seguir, aparentemente sem ter sido notada. Já só faltavam dois andares... Mas estava gente a amontoar-se no 28º andar e eu não podia descer mais por ali. Noutro rasgo de sorte, o barulho no andar de baixo provocou alguma consternação aos hóspedes do 29º andar, habituados a que estavam a uma noite de sono sem interrupções pelo preço que pagavam. Tentei passar despercebida como quem caminhava em direcção ao quarto, enquanto várias pessoas assomavam à porta em pijama. Alguns aventuraram-se mais longe e saíram dos quartos para espreitar o que se passava no andar de baixo. Era a minha oportunidade! Quase sem pensar, entrei na primeira porta aberta que vi e fui direita à janela. Não sabia bem em que zona do hotel estava, mas saí para a varanda, deitei-me no chão e espreitei os andares de baixo. Havia alguma agitação, mas eu estava claramente à esquerda do foco de tensão. Como não estava ninguém na varanda por baixo da minha, resolvi descer até ao 28º andar. Entrei pela varanda e desejei por todos os santinhos que a janela de correr estivesse aberta. Pus a mão do lado direito para abri-la com um empurrão, mas a janela abriu-se depressa mais: o Miguel tinha-a aberto ao mesmo tempo que eu, mas do lado de dentro!
segunda-feira, maio 24, 2010
XIII: O Dia D, parte III
Tirei o arnês, deitei-me no chão e aproximei-me do vidro da janela, sempre com muito cuidado. Os estores estavam levantados e consegui vislumbrar dois ou três homens em redor de qualquer coisa que me parecia um ecrã. O meu auricular ordenou-me para esperar e eu assim o fiz, embora me custasse imenso parar agora. As minhas pernas e braços iam tornar-me a vida impossível assim que o nível de adrenalina baixasse. Fui espreitando de vez em quando e abafei um grito quando vi entrar o Miguel arrastado por dois homens que eu nunca tinha visto antes. Se isto era parte do plano, ninguém me tinha dito nada! Era suposto receber o que quer que o Miguel deixasse perto da janela e colocar na pomba que estava ali comigo na varanda. A parte do plano que sempre me tinha deixado algumas reservas era a fuga, mas não era suposto correr mal antes de eu começar a tentar fugir!... A minha adrenalina disparou de novo e o meu coração quis sair do meu peito à força quando vi que tinham batido no Miguel com uma arma. Fechei os olhos e lutei contra uma lagrimazinha quando ouvi no auricular "Sai daí! Plano abortado!". Mas ia sair para onde?...
Talvez por não ter grande coisa a perder, talvez por ser a única pessoa naquele assalto que não fazia ideia do que se passava realmente, decidi ficar. Tirei o meu auricular e coloquei-o na pomba que prontamente voou dali. Eu não ia revelar nada caso fosse apanhada (porque não sabia nada) e também não era o auricular que ia trair ninguém do meu lado. Por uma vez, fiquei contente pela forma como o Miguel nunca respondia satisfatoriamente a nenhuma das minhas perguntas sobre aquele caso. Deitei-me no chão da varanda e tentei aproximar-me da janela. Estava alguém a guardá-la, mas estava de costas por isso não me causou grande receio. Infelizmente não conseguia ver grande coisa dali, embora conseguisse ter uma vista mais ampla do quarto... da suite, melhor dizendo. Eu conseguia ouvir algumas coisas, mas mesmo que ouvisse tudo, não entendia a língua em que estavam a falar. Fui para a abordagem mais óbvia que me surgiu: droga. Estava ali a fazer-se um negócio qualquer e iam trocar qualquer coisa. Ora se estamos em Portugal com esta costa toda, o que chega melhor vindo do estrangeiro e encontra aqui uma auto-estrada para a Europa é mesmo droga.
O que é que eu sabia de droga? Nada. O que é que eu sabia dos traficantes e de organizações criminosas? Nada. Dada a minha elevada ignorância no caso, resolvi apostar no "ignorância é uma bênção" e esperei para ver o que se ia passar de seguida. Houve uma troca de pastas, documentos e mais umas tantas coisas e passado algum tempo (demasiado), saíram todos, apagaram a luz e levaram o Miguel com eles. Desejei com todas as minhas forças que ninguém estivesse a pensar matá-lo nos próximos minutos. Estava tão nervosa que se ouvisse um tiro naquele estado, acho que me atirava da varanda! Tentei acalmar-me e tactear o sítio onde a porta envidraçada corria. Surpreendentemente estava aberta, teria sido o Miguel antes de ser apanhado?... Abri com muito cuidado para não fazer barulho e entrei, sempre encostada ao chão, sempre a rastejar. Não fazia ideia se isso era normal, mas eu não tinha força suficiente nas pernas para tentar outra coisa. Cheguei perto da zona onde se tinha realizado a "troca comercial" e espreitei para ver se tinham deixado alguma coisa na mesa. Nada. Fui até à secretária (aqui já me consegui colocar de gatas) e tentei perceber o que se passava por ali. Não tinha grande luz sem ser a do relógio, mas vi alguns papéis que talvez interessassem. Pareciam-me extractos de conta de vários bancos, mas não tinha a certeza. Por outro lado, tinha a certeza que havia relação com a Suíça. Bancos e Suíça eram como chocolate preta e menta. Não sabia bem o que fazer com aquela informação toda, mas decidi guardá-la na mesma.
Continuei a vasculhar a sala, já mais habituada à falta de luz, até ouvir uns passos na direcção da porta de entrada. Entrei em pânico, onde é que eu me podia esconder?? A primeira coisa que me ocorreu foi esconder-me atrás dos cortinados, mas era demasiado óbvio... Então reparei que a porta do quarto estava aberta e voei para debaixo da cama. Ouvi-os entrar, ligar a luz e discutir qualquer coisa que não entendi. Eu não conseguia ver nada por causa das franjas da colcha da cama, mas percebi logo quando eles deram pela falta dos papéis porque ficaram extremamente agitados, começaram a falar mais alto e ouvi imensos passos de mais gente a entrar. Bem, pelo menos tinha acertado e "roubado" qualquer coisa importante, fosse lá o que aquilo fosse. Pareceu-me que mais gente tinha entrado na suite, ouvi armários e gavetas a abrir. Depois pareceu-me que estavam mesmo a tirar gavetas, uma grande confusão. Eu estava imóvel debaixo da cama, tentava tomar atenção ao que se passava mas não conseguia parar de pensar se o Miguel ainda estaria vivo.
As vozes exaltadas deram lugar a um silêncio prolongado que me deixou em alerta. Será que eles já tinham percebido que havia ali mais alguém? Ou se calhar sempre souberam que havia mais alguém... Viriam à minha procura? Deixei-me ficar muito quietinha até que as luzes da sala foram apagadas de novo e não se ouvia vivalma. Eu, para variar, não fazia ideia do que fazer mas parecia-me que continuar escondida debaixo da cama não era grande opção. E se era para sair dali, aquele parecia-me o momento ideal! Sair pela porta estava fora de questão porque aquele corredor estava minado de "seguranças" com toda a certeza. Também não confiava muito em voltar lá para fora porque era impossível que eles não tivessem visto o arnês que eu tinha deixado na varanda. Pensado bem, se eles tivessem encontrado o arnês então sabiam mesmo que havia mesmo mais alguém metido ao barulho!...
Pois bem, a minha prioridade era sair debaixo da cama. Arrastei-me vagarosamente para o lado e levantei-me com cuidado, apesar de não estar a fazer qualquer ruído e de não ver um palmo à frente do nariz. Deixei-me ficar de pé durante uns momentos e resolvi ir para a casa-de-banho. Andei devagarinho para não tropeçar em nada, o que até foi fácil porque o que não faltava era espaço em redor da cama. A casa-de-banho era do tamanho da minha casa toda, mas só vi isso durante os breves segundos em que tive coragem para ligar a luz do relógio. Aproveitei a minha memória fotográfica e revi o aspecto daquela divisão na minha cabeça. Havia de facto uma saída que era bem capaz de ser a única... Respirei fundo, um bocado arreliada com a única solução que tinha encontrado, e convenci-me a mim própria que eu era capaz de passar pela buraco da ventilação sem ficar lá presa. Pelo menos era maior do que a janela do primeiro andar por onde tinha começado a escalada. Lá desisti de pensar noutra saída e antes que viesse alguém, puxei a grelha da ventilação. Provavelmente aquilo deveria ter uns parafusos ou assim, mas já lá alguém tinha estado antes de mim e guardado uns envelopes e uns saquinhos pequenos de plástico. Deixei os saquinhos pequenos de plástico porque achei que continham simplesmente droga e resolvi guardar o envelope como tinha feito anteriormente com os extractos bancários. Como a primeira vez até tinha corrido bem, repeti a técnica.
Depois de ter perdido algum tempo com o envelope, lá subi ao banquinho que estava mesmo a jeito e, para meu espanto, consegui entrar pelo túnel de metal sem grandes problemas. Voltei a colocar a grelha e tentei mover-me com o mínimo barulho possível, o que não era nada fácil. Desejei ardentemente que o túnel não acabasse numa descida de vinte metros ou assim. Fui rastejando, muito lentamente, até à primeira grelha de onde entrava luz. Estava finalmente a perceber que o fato que estava a usar tinha realmente alguma utilidade. Espreitei e vi quatro pessoas entretidas numa cama e embrulhadas nalgumas posições que eu nunca queria ter visto! Aaargh! Fechei os olhos e decidi pensar antes em como as minhas probabilidades de apanhar a doença do legionário tinham aumentado brutalmente. A troca de pensamentos deixou-me feliz. Passei por mais umas tantas grelhas até que vi outra com luz e de onde se ouvia um grande burburinho. Espreitei com cuidado para não fazer nenhum ruído e tive que abafar a minha própria garganta quando vi o Miguel amarrado a uma cadeira. Estava em bastante mau estado, rodeado por dois homens que tinham sangue no nó dos dedos (provavelmente sangue do Miguel), mas o que me interessava é que ele estava vivo!... Pelo menos, por enquanto.
Talvez por não ter grande coisa a perder, talvez por ser a única pessoa naquele assalto que não fazia ideia do que se passava realmente, decidi ficar. Tirei o meu auricular e coloquei-o na pomba que prontamente voou dali. Eu não ia revelar nada caso fosse apanhada (porque não sabia nada) e também não era o auricular que ia trair ninguém do meu lado. Por uma vez, fiquei contente pela forma como o Miguel nunca respondia satisfatoriamente a nenhuma das minhas perguntas sobre aquele caso. Deitei-me no chão da varanda e tentei aproximar-me da janela. Estava alguém a guardá-la, mas estava de costas por isso não me causou grande receio. Infelizmente não conseguia ver grande coisa dali, embora conseguisse ter uma vista mais ampla do quarto... da suite, melhor dizendo. Eu conseguia ouvir algumas coisas, mas mesmo que ouvisse tudo, não entendia a língua em que estavam a falar. Fui para a abordagem mais óbvia que me surgiu: droga. Estava ali a fazer-se um negócio qualquer e iam trocar qualquer coisa. Ora se estamos em Portugal com esta costa toda, o que chega melhor vindo do estrangeiro e encontra aqui uma auto-estrada para a Europa é mesmo droga.
O que é que eu sabia de droga? Nada. O que é que eu sabia dos traficantes e de organizações criminosas? Nada. Dada a minha elevada ignorância no caso, resolvi apostar no "ignorância é uma bênção" e esperei para ver o que se ia passar de seguida. Houve uma troca de pastas, documentos e mais umas tantas coisas e passado algum tempo (demasiado), saíram todos, apagaram a luz e levaram o Miguel com eles. Desejei com todas as minhas forças que ninguém estivesse a pensar matá-lo nos próximos minutos. Estava tão nervosa que se ouvisse um tiro naquele estado, acho que me atirava da varanda! Tentei acalmar-me e tactear o sítio onde a porta envidraçada corria. Surpreendentemente estava aberta, teria sido o Miguel antes de ser apanhado?... Abri com muito cuidado para não fazer barulho e entrei, sempre encostada ao chão, sempre a rastejar. Não fazia ideia se isso era normal, mas eu não tinha força suficiente nas pernas para tentar outra coisa. Cheguei perto da zona onde se tinha realizado a "troca comercial" e espreitei para ver se tinham deixado alguma coisa na mesa. Nada. Fui até à secretária (aqui já me consegui colocar de gatas) e tentei perceber o que se passava por ali. Não tinha grande luz sem ser a do relógio, mas vi alguns papéis que talvez interessassem. Pareciam-me extractos de conta de vários bancos, mas não tinha a certeza. Por outro lado, tinha a certeza que havia relação com a Suíça. Bancos e Suíça eram como chocolate preta e menta. Não sabia bem o que fazer com aquela informação toda, mas decidi guardá-la na mesma.
Continuei a vasculhar a sala, já mais habituada à falta de luz, até ouvir uns passos na direcção da porta de entrada. Entrei em pânico, onde é que eu me podia esconder?? A primeira coisa que me ocorreu foi esconder-me atrás dos cortinados, mas era demasiado óbvio... Então reparei que a porta do quarto estava aberta e voei para debaixo da cama. Ouvi-os entrar, ligar a luz e discutir qualquer coisa que não entendi. Eu não conseguia ver nada por causa das franjas da colcha da cama, mas percebi logo quando eles deram pela falta dos papéis porque ficaram extremamente agitados, começaram a falar mais alto e ouvi imensos passos de mais gente a entrar. Bem, pelo menos tinha acertado e "roubado" qualquer coisa importante, fosse lá o que aquilo fosse. Pareceu-me que mais gente tinha entrado na suite, ouvi armários e gavetas a abrir. Depois pareceu-me que estavam mesmo a tirar gavetas, uma grande confusão. Eu estava imóvel debaixo da cama, tentava tomar atenção ao que se passava mas não conseguia parar de pensar se o Miguel ainda estaria vivo.
As vozes exaltadas deram lugar a um silêncio prolongado que me deixou em alerta. Será que eles já tinham percebido que havia ali mais alguém? Ou se calhar sempre souberam que havia mais alguém... Viriam à minha procura? Deixei-me ficar muito quietinha até que as luzes da sala foram apagadas de novo e não se ouvia vivalma. Eu, para variar, não fazia ideia do que fazer mas parecia-me que continuar escondida debaixo da cama não era grande opção. E se era para sair dali, aquele parecia-me o momento ideal! Sair pela porta estava fora de questão porque aquele corredor estava minado de "seguranças" com toda a certeza. Também não confiava muito em voltar lá para fora porque era impossível que eles não tivessem visto o arnês que eu tinha deixado na varanda. Pensado bem, se eles tivessem encontrado o arnês então sabiam mesmo que havia mesmo mais alguém metido ao barulho!...
Pois bem, a minha prioridade era sair debaixo da cama. Arrastei-me vagarosamente para o lado e levantei-me com cuidado, apesar de não estar a fazer qualquer ruído e de não ver um palmo à frente do nariz. Deixei-me ficar de pé durante uns momentos e resolvi ir para a casa-de-banho. Andei devagarinho para não tropeçar em nada, o que até foi fácil porque o que não faltava era espaço em redor da cama. A casa-de-banho era do tamanho da minha casa toda, mas só vi isso durante os breves segundos em que tive coragem para ligar a luz do relógio. Aproveitei a minha memória fotográfica e revi o aspecto daquela divisão na minha cabeça. Havia de facto uma saída que era bem capaz de ser a única... Respirei fundo, um bocado arreliada com a única solução que tinha encontrado, e convenci-me a mim própria que eu era capaz de passar pela buraco da ventilação sem ficar lá presa. Pelo menos era maior do que a janela do primeiro andar por onde tinha começado a escalada. Lá desisti de pensar noutra saída e antes que viesse alguém, puxei a grelha da ventilação. Provavelmente aquilo deveria ter uns parafusos ou assim, mas já lá alguém tinha estado antes de mim e guardado uns envelopes e uns saquinhos pequenos de plástico. Deixei os saquinhos pequenos de plástico porque achei que continham simplesmente droga e resolvi guardar o envelope como tinha feito anteriormente com os extractos bancários. Como a primeira vez até tinha corrido bem, repeti a técnica.
Depois de ter perdido algum tempo com o envelope, lá subi ao banquinho que estava mesmo a jeito e, para meu espanto, consegui entrar pelo túnel de metal sem grandes problemas. Voltei a colocar a grelha e tentei mover-me com o mínimo barulho possível, o que não era nada fácil. Desejei ardentemente que o túnel não acabasse numa descida de vinte metros ou assim. Fui rastejando, muito lentamente, até à primeira grelha de onde entrava luz. Estava finalmente a perceber que o fato que estava a usar tinha realmente alguma utilidade. Espreitei e vi quatro pessoas entretidas numa cama e embrulhadas nalgumas posições que eu nunca queria ter visto! Aaargh! Fechei os olhos e decidi pensar antes em como as minhas probabilidades de apanhar a doença do legionário tinham aumentado brutalmente. A troca de pensamentos deixou-me feliz. Passei por mais umas tantas grelhas até que vi outra com luz e de onde se ouvia um grande burburinho. Espreitei com cuidado para não fazer nenhum ruído e tive que abafar a minha própria garganta quando vi o Miguel amarrado a uma cadeira. Estava em bastante mau estado, rodeado por dois homens que tinham sangue no nó dos dedos (provavelmente sangue do Miguel), mas o que me interessava é que ele estava vivo!... Pelo menos, por enquanto.
sábado, maio 22, 2010
XII: O Dia D, parte II
"Deixei-me deslizar para dentro do hotel” soa melhor do que ser confrontada com a dura realidade de que caí pelo menos um metro e aterrei de cara no chão. Tudo isto porque alcei uma perna logo seguida da outra antes de esperar que a primeira atingisse um apoio firme. Claro que isso provocou uma tentativa de voo da minha parte (com direito a forte agitação de braços em movimentos circulares) que culminou com a minha cabeça e, em particular o meu nariz, a cair primeiro que o resto do corpo. Sir Isaac Newton: obrigada pelas leis que não se reflectem no meu mundo cheio de atrito. Levantei-me apressadamente, e não precisei de olhar para saber que o meu nariz estava a deixar um rasto de sangue. Nada mau para começar a minha missão! Como estava na arrecadação do hotel, o que pelo menos já era um objectivo conseguido, aproveitei para desencantar papel higiénico que enfiei prontamente pelo nariz acima e fiquei a contar carneiros, sempre de olhos postos no tecto.
A torneira que tinha no nariz eventualmente secou e deitei fora o papel tingido. Achei que ia ser apanhada de qualquer modo dada a minha particular eficácia para necessitar de primeiros socorros, portanto mesmo que eles descobrissem por onde eu tinha entrado (o sangue no chão era capaz de ser uma boa pista), não ia ser algum resto de ADN no papel higiénico que me ia tramar. Eu já era uma aposta perdida antes de começar! Mas como no fundo sou uma optimista, decidi que podia também procurar água oxigenada e tentar disfarçar a mancha de sangue no chão. Descobri depois que a água oxigenada é um excelente produto de limpeza e o chão de madeira ficou extremamente polido naquela zona! Eu realmente tinha nascido para ser invisível...
Inspirei fundo sem tentar pensar na quantidade de disparates que tinha feito até ao momento e concentrei-me no saco que estava no carrinho de tabuleiros que me tinha sido indicado, isto é, o único carrinho atrás da porta grande de metal. Abri o saco e revi a lista mental que o Miguel me tinha feito decorar: o arnês e restantes acessórios, o auricular, outro relógio e um papel que não estava na minha lista neuronal. Se aquelas coisas eram exclusivamente para mim, então faltava definitivamente um pacote de algodão, outro de pensos rápidos e Betadine! E se calhar qualquer coisa para a dor de cabeça provocada por um encontro imediato com o chão. Também não encontrei o comprimido de arsénico que existe nos filmes, será que se fosse apanhada matavam-me simplesmente com um tiro ou assim? Existiriam snipers em redor do hotel?.. A ideia arrepiou-me ligeiramente. Coloquei o auricular no sítio, mas ainda ninguém transmitia nada. Desdobrei cuidadosamente o papel que dizia: “Não te magoes muito, sim? Beijos, Miguel”. Respirei profundamente e desejei que um nariz semi-partido e um galo novo na cabeça não contassem.
Depois do que me pareceram horas intermináveis na arrecadação do hotel, o meu auricular deu finalmente sinal de vida. Era apenas estática, mas sempre era uma mudança bem vinda. Levantei-me num pulo e prestei muita atenção para não falhar nada. Ao fim de dez minutos aborreci-me outra vez e resolvi fazer eu própria o meu saco de acessórios com um bocadinho de algodão e pensos rápidos, arrumei tudo dentro do meu apertado fato. Estava entretida a fazer bolinhas de algodão quando ouvi finalmente o “podes entrar”. Tal como estava ensaiado, saí da arrecadação pela porta principal, atravessei o corredor e desejei que ninguém me visse. Por incrível que pareça, estava mais preocupada em ser vista “entalada” naquele fato do que em ser apanhada. Subi rapidamente ao primeiro andar pelas escadas que ninguém usa desde que inventaram os elevadores e fiquei um bocado consternada com o tamanho da janela no primeiro patamar. Era suposto eu passar por ali?! Eu sei que tenho um tamanho abaixo da média nacional, mas daí a ter a coluna vertebral de um gato ainda vai um bocado! Com alguma esperança que me tivesse enganado, meti a cabeça de fora e olhei para cima. As varandas por cima da minha cabeça, que correspondiam aos quartos do hotel, estavam todas preparadas para a minha subida. Fiz uma careta enquanto voltava a meter a cabeça para dentro e comecei a pensar numa forma de desmontar a janela para poder realmente sair por ali e conseguir chegar ao primeiro apoio.
Haja alguma coisa que se aprende na lida da casa e que pode ser útil quando tentamos assaltar um prédio: limpar janelas. Com cuidado, desencaixei o lado esquerdo da janela e coloquei-o no chão. Assim tinha espaço de certeza. Subi ao peitoril e comecei a subir, tal como me tinham ensinado. Fiquei um bocado espantada por ter atingido a primeira varanda sem grandes dificuldades, realmente o treino tinha sido eficaz! Nessa altura lembrei-me que não tinha voltado a colocar a janela no lugar... Será que alguém dava por ela?... Encolhi os ombros e rodeei a varanda para que ninguém me visse do vidro, embora já estivesse de noite e eu vestida de preto dos pés à cabeça. Continuei a subir, atónita por estar realmente a subir e não de cabeça para baixo nalguma cratera que tivesse acabado de abrir no asfalto. Quando cheguei à quinta varanda comecei a sentir-me ligeiramente cansada. Na décima estava capaz de ficar por ali. E na vigésima... acho que já não me importava de cair. As minhas pernas tremiam imenso, os meus braços estavam dormentes e eu continuava a morrer de calor. E se me desse alguma quebra de tensão ali?! Resolvi parar, estava a ser demais para mim. Mas como é que ocorreu ao Miguel que eu seria capaz de escalar até ao 27º andar?! E como é que eu achei que ia ser capaz de fazer isto sem nunca ter escalado na vida e, honestamente, não ter ideia da altura real de um 27º andar. Aliás, desde o 10º andar que eu tinha desistido de olhar para baixo.
Resolvi parar para ganhar forças. Claro que parar é maneira de dizer porque eu estava ali espalmada contra a parede como uma aranha que tinha acabado de bater na viseira de um carro. E, provavelmente, a aranha tinha tido um fim bem mais simpático do que o que eu ia ter! Deixei-me estar ali parada a respirar calmamente e deixei a minha mente vaguear um pouco... assustei-me quando uma pomba passou por mim. E assustei-me novamente quando o meu auricular voltou à vida e ouvi a voz do condutor da mota a incitar-me a subir, dar-me coragem por ter chegado ali. Eu fiquei petrificada, ele conseguia ver-me? Ou teria eu um dispositivo de localização naquele fato ridiculamente apertado? Se calhar era o segundo relógio?... Abanei a cabeça e concentrei-me apenas na mensagem de encorajamento que vibrava nos meus tímpanos. Subi mais uma varanda e outra... e outra ainda. E eis que por milagre cheguei ao 27º andar, ou pelo menos ao 27º na minha contagem mental. A voz de triunfo que saiu do meu auricular deu-me a entender que realmente estava no andar certo e também que tinha conseguido fazer uma coisa que aquela voz não acreditava, apesar das simpáticas palavras de encorajamento até ali. Nota mental: se sobrevivesse, dava um murro ao convencido da mota!
A pomba passou de novo por mim. Fiquei a seguir o trajecto dela, enquanto os auscultadores continuavam a debitar sons e a tentar roubar de volta a atenção que a visão tirava aos meus outros sentidos. “Concentra-te!” pensei... tinha que estar concentrada para o salto. Fechei os olhos, respirei fundo e lancei o meu braço direito em direcção ao último apoio. Desequilibrei-me para poder lançar todo o peso do meu corpo para a direita e quando finalmente expirei, a minha mão estava fechada em torno da vedação da varanda do quarto 27ºC. Depois de me permitir um pequeno sorriso de triunfo, balancei-me mais um pouco e subi para a varanda. Provavelmente era sorte de principiante, mas a primeira parte do plano estava completa, a segunda (e a que me causava mais dúvidas) estava a começar.
A torneira que tinha no nariz eventualmente secou e deitei fora o papel tingido. Achei que ia ser apanhada de qualquer modo dada a minha particular eficácia para necessitar de primeiros socorros, portanto mesmo que eles descobrissem por onde eu tinha entrado (o sangue no chão era capaz de ser uma boa pista), não ia ser algum resto de ADN no papel higiénico que me ia tramar. Eu já era uma aposta perdida antes de começar! Mas como no fundo sou uma optimista, decidi que podia também procurar água oxigenada e tentar disfarçar a mancha de sangue no chão. Descobri depois que a água oxigenada é um excelente produto de limpeza e o chão de madeira ficou extremamente polido naquela zona! Eu realmente tinha nascido para ser invisível...
Inspirei fundo sem tentar pensar na quantidade de disparates que tinha feito até ao momento e concentrei-me no saco que estava no carrinho de tabuleiros que me tinha sido indicado, isto é, o único carrinho atrás da porta grande de metal. Abri o saco e revi a lista mental que o Miguel me tinha feito decorar: o arnês e restantes acessórios, o auricular, outro relógio e um papel que não estava na minha lista neuronal. Se aquelas coisas eram exclusivamente para mim, então faltava definitivamente um pacote de algodão, outro de pensos rápidos e Betadine! E se calhar qualquer coisa para a dor de cabeça provocada por um encontro imediato com o chão. Também não encontrei o comprimido de arsénico que existe nos filmes, será que se fosse apanhada matavam-me simplesmente com um tiro ou assim? Existiriam snipers em redor do hotel?.. A ideia arrepiou-me ligeiramente. Coloquei o auricular no sítio, mas ainda ninguém transmitia nada. Desdobrei cuidadosamente o papel que dizia: “Não te magoes muito, sim? Beijos, Miguel”. Respirei profundamente e desejei que um nariz semi-partido e um galo novo na cabeça não contassem.
Depois do que me pareceram horas intermináveis na arrecadação do hotel, o meu auricular deu finalmente sinal de vida. Era apenas estática, mas sempre era uma mudança bem vinda. Levantei-me num pulo e prestei muita atenção para não falhar nada. Ao fim de dez minutos aborreci-me outra vez e resolvi fazer eu própria o meu saco de acessórios com um bocadinho de algodão e pensos rápidos, arrumei tudo dentro do meu apertado fato. Estava entretida a fazer bolinhas de algodão quando ouvi finalmente o “podes entrar”. Tal como estava ensaiado, saí da arrecadação pela porta principal, atravessei o corredor e desejei que ninguém me visse. Por incrível que pareça, estava mais preocupada em ser vista “entalada” naquele fato do que em ser apanhada. Subi rapidamente ao primeiro andar pelas escadas que ninguém usa desde que inventaram os elevadores e fiquei um bocado consternada com o tamanho da janela no primeiro patamar. Era suposto eu passar por ali?! Eu sei que tenho um tamanho abaixo da média nacional, mas daí a ter a coluna vertebral de um gato ainda vai um bocado! Com alguma esperança que me tivesse enganado, meti a cabeça de fora e olhei para cima. As varandas por cima da minha cabeça, que correspondiam aos quartos do hotel, estavam todas preparadas para a minha subida. Fiz uma careta enquanto voltava a meter a cabeça para dentro e comecei a pensar numa forma de desmontar a janela para poder realmente sair por ali e conseguir chegar ao primeiro apoio.
Haja alguma coisa que se aprende na lida da casa e que pode ser útil quando tentamos assaltar um prédio: limpar janelas. Com cuidado, desencaixei o lado esquerdo da janela e coloquei-o no chão. Assim tinha espaço de certeza. Subi ao peitoril e comecei a subir, tal como me tinham ensinado. Fiquei um bocado espantada por ter atingido a primeira varanda sem grandes dificuldades, realmente o treino tinha sido eficaz! Nessa altura lembrei-me que não tinha voltado a colocar a janela no lugar... Será que alguém dava por ela?... Encolhi os ombros e rodeei a varanda para que ninguém me visse do vidro, embora já estivesse de noite e eu vestida de preto dos pés à cabeça. Continuei a subir, atónita por estar realmente a subir e não de cabeça para baixo nalguma cratera que tivesse acabado de abrir no asfalto. Quando cheguei à quinta varanda comecei a sentir-me ligeiramente cansada. Na décima estava capaz de ficar por ali. E na vigésima... acho que já não me importava de cair. As minhas pernas tremiam imenso, os meus braços estavam dormentes e eu continuava a morrer de calor. E se me desse alguma quebra de tensão ali?! Resolvi parar, estava a ser demais para mim. Mas como é que ocorreu ao Miguel que eu seria capaz de escalar até ao 27º andar?! E como é que eu achei que ia ser capaz de fazer isto sem nunca ter escalado na vida e, honestamente, não ter ideia da altura real de um 27º andar. Aliás, desde o 10º andar que eu tinha desistido de olhar para baixo.
Resolvi parar para ganhar forças. Claro que parar é maneira de dizer porque eu estava ali espalmada contra a parede como uma aranha que tinha acabado de bater na viseira de um carro. E, provavelmente, a aranha tinha tido um fim bem mais simpático do que o que eu ia ter! Deixei-me estar ali parada a respirar calmamente e deixei a minha mente vaguear um pouco... assustei-me quando uma pomba passou por mim. E assustei-me novamente quando o meu auricular voltou à vida e ouvi a voz do condutor da mota a incitar-me a subir, dar-me coragem por ter chegado ali. Eu fiquei petrificada, ele conseguia ver-me? Ou teria eu um dispositivo de localização naquele fato ridiculamente apertado? Se calhar era o segundo relógio?... Abanei a cabeça e concentrei-me apenas na mensagem de encorajamento que vibrava nos meus tímpanos. Subi mais uma varanda e outra... e outra ainda. E eis que por milagre cheguei ao 27º andar, ou pelo menos ao 27º na minha contagem mental. A voz de triunfo que saiu do meu auricular deu-me a entender que realmente estava no andar certo e também que tinha conseguido fazer uma coisa que aquela voz não acreditava, apesar das simpáticas palavras de encorajamento até ali. Nota mental: se sobrevivesse, dava um murro ao convencido da mota!
A pomba passou de novo por mim. Fiquei a seguir o trajecto dela, enquanto os auscultadores continuavam a debitar sons e a tentar roubar de volta a atenção que a visão tirava aos meus outros sentidos. “Concentra-te!” pensei... tinha que estar concentrada para o salto. Fechei os olhos, respirei fundo e lancei o meu braço direito em direcção ao último apoio. Desequilibrei-me para poder lançar todo o peso do meu corpo para a direita e quando finalmente expirei, a minha mão estava fechada em torno da vedação da varanda do quarto 27ºC. Depois de me permitir um pequeno sorriso de triunfo, balancei-me mais um pouco e subi para a varanda. Provavelmente era sorte de principiante, mas a primeira parte do plano estava completa, a segunda (e a que me causava mais dúvidas) estava a começar.
sexta-feira, maio 21, 2010
XI: O Dia D, parte I
Acordei na cama sem roupa, mas vi o "meu" roupão de banho pendurado na cadeira. Não tinha sido um sonho! O tempo estava enevoado, mas eu sentia a alma cor-de-laranja: cheia de calor e de vida! Virei-me para dar-lhe os bons dias, mas descobri rapidamente que estava sozinha. As imagens das últimas horas saltaram-me à mente imediatamente. Os sorrisos e até gargalhadas, as pernas, braços e pescoços entrelaçados, o beijo suave com o cuidado carinhoso na minha cicatriz. Lembrei-me dele não me deixar fazer os movimentos todos que eu queria, mas por pura preocupação... O meu coração traidor jorrava sangue de alegria a cada memória mais carinhosa. Abanei a cabeça como a afastar aqueles pensamentos e tentei voltar à realidade: onde é que ele se tinha metido?! Seria possível que o plano já estivesse em acção? Olhei para o relógio de pulso: 10:00. Ainda não tinha começado para mim e tinha cerca de três horas para preparar-me. Provavelmente ele já se encontrava de volta ao mundo de alianças contratadas.
Às 13:00 em ponto foi dado o sinal. Acabei de fechar o fecho da frente do fato que me tinha custado uma boa meia hora a vestir e achei que aquilo ia correr muito mal logo ali. Morria de calor dentro daquela vestimenta completamente negra, que tecido seria aquele? Ainda que me desse toda a mobilidade possível, era como estar permanentemente numa sauna. Peguei numa garrafa de uma bebida qualquer fortificante e saí. Fiquei apreensiva pela milésima vez naquele dia quando vi que o meu "contacto" era alguém vestido de negro como eu, mas do sexo masculino e tinha como meio de transporte uma mota. Uma mota bem grande por sinal, daquelas que provavelmente balançam mais que o alfa pendular. E que andam mais que o TGV. Inspirei fundo e tentei bloquear o meu mais puro terror a motas.
- Sente-se bem? - Falou o condutor com voz abafada pelo capacete.
Eu acenei que sim, mas não me mexi.
- Tem medo de motas? Não se preocupe, eu sou um óptimo condutor!
"E modesto também já vi que és! Agora que sabes que tenho medo vais pôr-te a fazer aquelas manobras parvas e vou acabar estampada numa árvore!.." Luísa, concentra-te!! Estás a começar qualquer coisa de que te podes orgulhar para o resto da tua vida! Estás completamente colada a um fato digno de Hollywood e o sucesso disto tudo depende de ti. Vais mesmo deixar o Miguel ficar mal apenas porque tens medo de motas?!". Fiz das tripas coração enquanto insultava a minha própria consciência e subi para a mota. Tentei agarrar o condutor o mais suavemente possível, mas tenho a certeza que deixei a caixa torácica dele irremediavelmente arruinada assim que a mota arrancou. Fiz a viagem toda de olhos fechados, enquanto imaginava que estava numa atracção da feira popular e que aquilo ia acabar em breve.
Assim que a mota parou, eu saltei fora. Claro que foi uma péssima ideia e dei por mim sentada na primeira berma que encontrei com a cabeça entre as pernas, a ver se as tonturas passavam. Deixei-me estar de olhos fechados para não tornar a minha pose ainda mais ridícula. Agora tinha a certeza que o Miguel tinha um plano B, C ou D porque este contacto decerto já o havia informado da minha actual boa disposição física. A mota lá se foi e eu até fiquei contente com o cheiro a gasóleo que ficou no ar, só porque isso queria dizer que estava sozinha e que me podia dar ao luxo de ter um ataque de pânico sem testemunhas oculares. Infelizmente o meu corpo não me quis dar essa alegria e a visão voltou normalizada, assim como o ritmo cardíaco e o sistema digestivo. Só o maldito calor é que não me dava tréguas. Resolvi recolher-me à sombra e abrir um pouco o fecho do fato como tentativa desesperada de ventilação. Já à sombra, olhei em redor para avaliar as traseiras do hotel, não que houvesse alguma coisa que eu achasse estranha ou necessitasse da minha avaliação pormenorizada. Não fazia a mais pálida ideia de quem tinha planeado aquilo, mas cá estava eu no local, à hora e dia "combinados". Esses dados estavam bem patentes e até extremamente explícitos nas sms que tinha recebido no telemóvel na semana anterior; agora que o Miguel me tinha explicado como decifrar o código, claro. Olhei para o arranha-céus que era o hotel e senti o meu estômago às voltas. Nunca tive medo de alturas, mas aquele era um bom dia para desenvolver acrofobia. Ou mesmo qualquer palermice aguda que me impedisse de tentar fazer o que eu pensava fazer, como racionalidade e bom senso. A porta das traseiras abriu-se e eu esperei pelo segundo sinal que não tardou. Lancei-me para a janela em frente a mim e, cuidadosamente, deixei-me deslizar para dentro do hotel.
Às 13:00 em ponto foi dado o sinal. Acabei de fechar o fecho da frente do fato que me tinha custado uma boa meia hora a vestir e achei que aquilo ia correr muito mal logo ali. Morria de calor dentro daquela vestimenta completamente negra, que tecido seria aquele? Ainda que me desse toda a mobilidade possível, era como estar permanentemente numa sauna. Peguei numa garrafa de uma bebida qualquer fortificante e saí. Fiquei apreensiva pela milésima vez naquele dia quando vi que o meu "contacto" era alguém vestido de negro como eu, mas do sexo masculino e tinha como meio de transporte uma mota. Uma mota bem grande por sinal, daquelas que provavelmente balançam mais que o alfa pendular. E que andam mais que o TGV. Inspirei fundo e tentei bloquear o meu mais puro terror a motas.
- Sente-se bem? - Falou o condutor com voz abafada pelo capacete.
Eu acenei que sim, mas não me mexi.
- Tem medo de motas? Não se preocupe, eu sou um óptimo condutor!
"E modesto também já vi que és! Agora que sabes que tenho medo vais pôr-te a fazer aquelas manobras parvas e vou acabar estampada numa árvore!.." Luísa, concentra-te!! Estás a começar qualquer coisa de que te podes orgulhar para o resto da tua vida! Estás completamente colada a um fato digno de Hollywood e o sucesso disto tudo depende de ti. Vais mesmo deixar o Miguel ficar mal apenas porque tens medo de motas?!". Fiz das tripas coração enquanto insultava a minha própria consciência e subi para a mota. Tentei agarrar o condutor o mais suavemente possível, mas tenho a certeza que deixei a caixa torácica dele irremediavelmente arruinada assim que a mota arrancou. Fiz a viagem toda de olhos fechados, enquanto imaginava que estava numa atracção da feira popular e que aquilo ia acabar em breve.
Assim que a mota parou, eu saltei fora. Claro que foi uma péssima ideia e dei por mim sentada na primeira berma que encontrei com a cabeça entre as pernas, a ver se as tonturas passavam. Deixei-me estar de olhos fechados para não tornar a minha pose ainda mais ridícula. Agora tinha a certeza que o Miguel tinha um plano B, C ou D porque este contacto decerto já o havia informado da minha actual boa disposição física. A mota lá se foi e eu até fiquei contente com o cheiro a gasóleo que ficou no ar, só porque isso queria dizer que estava sozinha e que me podia dar ao luxo de ter um ataque de pânico sem testemunhas oculares. Infelizmente o meu corpo não me quis dar essa alegria e a visão voltou normalizada, assim como o ritmo cardíaco e o sistema digestivo. Só o maldito calor é que não me dava tréguas. Resolvi recolher-me à sombra e abrir um pouco o fecho do fato como tentativa desesperada de ventilação. Já à sombra, olhei em redor para avaliar as traseiras do hotel, não que houvesse alguma coisa que eu achasse estranha ou necessitasse da minha avaliação pormenorizada. Não fazia a mais pálida ideia de quem tinha planeado aquilo, mas cá estava eu no local, à hora e dia "combinados". Esses dados estavam bem patentes e até extremamente explícitos nas sms que tinha recebido no telemóvel na semana anterior; agora que o Miguel me tinha explicado como decifrar o código, claro. Olhei para o arranha-céus que era o hotel e senti o meu estômago às voltas. Nunca tive medo de alturas, mas aquele era um bom dia para desenvolver acrofobia. Ou mesmo qualquer palermice aguda que me impedisse de tentar fazer o que eu pensava fazer, como racionalidade e bom senso. A porta das traseiras abriu-se e eu esperei pelo segundo sinal que não tardou. Lancei-me para a janela em frente a mim e, cuidadosamente, deixei-me deslizar para dentro do hotel.
quinta-feira, maio 20, 2010
X: A Véspera do Dia D
- Sim. - Acenei com a cabeça. - Percebi. Quanto tempo achas que demoro até poder fazer isso?
- Não sei, o corte na tua barriga não vai ajudar nada! Mas temos que começar o mais depressa possível. Tens a certeza que queres mesmo fazer isto comigo?
- Mesmo que eu não quisesse, ia voltar para o quê?... Não sobrou nada do que eu reconhecia como a minha vida.
Ele assentiu e começou a explicar-me o plano dele mais detalhadamente. O meu treino começou pouco depois. Os dias que se seguiram foram o oposto dos anteriores. Passávamos o dia no exterior, enquanto ele me explicava e ensinava o básico do que eu precisava saber. Aprendi a escalar como deve ser e, acima de tudo, voltei a rir e a ter vontade de acordar no dia seguinte. A única parte do plano dele que eu não gostava era o facto de só saber o que tinha a fazer e não ter ideia do porquê ou do que se estava realmente a passar. Não tinha uma visão global do que o meu papel significava e isso não me deixava particularmente confiante.
O dia D aproximava-se perigosamente, até que dei por mim na véspera no dito. Era princípio de noite e eu não acusava a proximidade, sentia-me exactamente como nos outros dias: completamente exausta. Saí do banho, vesti o roupão enorme do Miguel e abracei-me para enxugar-me o melhor possível já que não tinha nenhuma toalha. Cheguei-me ao lavatório para examinar ao pormenor a minha cara cheia de arranhões e, quando me cheguei ao espelho para avaliar um corte em particular, levei com a porta de lado na cara e não evitei um grito de dor. Ainda com a cara a latejar, voltei-me para ele:
- Então pá? Já não se bate à porta?
- Ups! Estás bem?
- Sim... - Olhei para ele de cima abaixo. - Andas a passear-te pela casa nu?
Ele respondeu-me com um sorriso que era um misto de orgulho e atrapalhação. Ficámos os dois parados, frente a frente sem saber o que fazer, enquanto eu ainda massajava a face e orelha esquerda. Ele acabou por ficar preocupado e aproximou-se.
- Deixa-me ver. Eu acho que não abri a porta assim com tanta força.
- Não, está tudo bem! Eu é que não estava à espera...
- Eh lá! Deixou marca e tudo! Ora chega-te mais perto da luz, se faz favor.
Extremamente desconfortável com o espaço tão pequeno e ele nu, cheguei-me mais perto dele e deixei que ele me levantasse a testa enquanto baixava a cabeça dele para ver melhor. Os lábios dele estavam tão perto que eu fiquei gelada na mesma posição com medo que um bocadinho da minha pele pudesse tocar na dele.
- Dói-te? Só queria ver se tinha algum alto. Luísa? Sentes-te bem? - Eu fechei os olhos, efectivamente não me sentia nada bem. - Luísa?!...
Senti-me a deslizar, como se o chão estivesse a desfazer-se numa nuvem. Estava quase a lançar-me na calma prometida do inconsciente quando senti um rebate da minha própria vontade e o sangue voltou a correr. Senti o meu peito a elevar-se com uma lufada de ar fresco e agarrei-me ao Miguel para não cair. Não sei se ele disse alguma coisa ou não, mas descobri a minha cara e cabelo molhado contra o peito dele e senti-me bem assim. Estava quente e sentia-me segura, deixei-me estar.
- Luísa? Estás a ouvir-me? Bolas, eu não abri a porta assim com tanta força!
- Ah, sim... desculpa. Está tudo bem, foi só uma tontura...
Nem queria imaginar a figura triste que estava a fazer quando olhei para cima e vi os olhos confusos dele a olhar para baixo, para mim. Ele de braços abertos e eu agarrada a ele tipo lapa, já sem qualquer medo de cair. Mesmo assim, não consegui afastar-me e fiquei ali. Achei que podia passar a batata quente para o lado dele, ele que decidisse o que fazer. Deixei-me estar em silêncio e quando ele desistiu de esperar por uma reacção do meu lado, fechei os olhos e cerrei os dentes com força, à espera que ele trouxesse as minhas mãos de trás das costas dele e me obrigasse a partir o abraço que me cingia ao tronco dele. Estremeci quando senti que afinal os braços dele caíram nas minhas costas e me apertaram carinhosamente contra ele. Senti de novo uma onda de pura felicidade a percorrer-me o corpo. Olhei para cima para devolver um sorriso, mas ele tinha os olhos fechados enquanto percorria vagarosamente as minhas costas, ainda que por cima do roupão. Esperei pacientemente que ele reabrisse os olhos e perdi o sorriso durante a espera, talvez o tenha perdido de vez quando ele se inclinou para mim e levantou o meu queixo com o indicador direito. Os meus lábios beijaram os dele, mas eu já não vi essa parte porque mergulhei completamente em direcção à cara dele e fiz com que nos desequilibrássemos.
- Eh lá! Cuidado!... De onde vem essa força toda? - Ele riu-se e eu corei violentamente.
- Desculpa. Não sei o que se passou. Eu...
Ele mostrou-me um sorriso lindo e eu fiquei hipnotizada. Não tentei beijá-lo de novo, mas deixei que ele me descesse o roupão do ombro esquerdo e mo beijasse, assim como o osso que leva ao pescoço, o pescoço, o maxilar, a maçã do rosto... Eu deixei a cabeça tombar ligeiramente enquanto a consciência abandonava o meu corpo, fiquei com as emoções à flor da pele e deixei que o resto se desenrolasse entre o meu desejo e o dele.
- Não sei, o corte na tua barriga não vai ajudar nada! Mas temos que começar o mais depressa possível. Tens a certeza que queres mesmo fazer isto comigo?
- Mesmo que eu não quisesse, ia voltar para o quê?... Não sobrou nada do que eu reconhecia como a minha vida.
Ele assentiu e começou a explicar-me o plano dele mais detalhadamente. O meu treino começou pouco depois. Os dias que se seguiram foram o oposto dos anteriores. Passávamos o dia no exterior, enquanto ele me explicava e ensinava o básico do que eu precisava saber. Aprendi a escalar como deve ser e, acima de tudo, voltei a rir e a ter vontade de acordar no dia seguinte. A única parte do plano dele que eu não gostava era o facto de só saber o que tinha a fazer e não ter ideia do porquê ou do que se estava realmente a passar. Não tinha uma visão global do que o meu papel significava e isso não me deixava particularmente confiante.
O dia D aproximava-se perigosamente, até que dei por mim na véspera no dito. Era princípio de noite e eu não acusava a proximidade, sentia-me exactamente como nos outros dias: completamente exausta. Saí do banho, vesti o roupão enorme do Miguel e abracei-me para enxugar-me o melhor possível já que não tinha nenhuma toalha. Cheguei-me ao lavatório para examinar ao pormenor a minha cara cheia de arranhões e, quando me cheguei ao espelho para avaliar um corte em particular, levei com a porta de lado na cara e não evitei um grito de dor. Ainda com a cara a latejar, voltei-me para ele:
- Então pá? Já não se bate à porta?
- Ups! Estás bem?
- Sim... - Olhei para ele de cima abaixo. - Andas a passear-te pela casa nu?
Ele respondeu-me com um sorriso que era um misto de orgulho e atrapalhação. Ficámos os dois parados, frente a frente sem saber o que fazer, enquanto eu ainda massajava a face e orelha esquerda. Ele acabou por ficar preocupado e aproximou-se.
- Deixa-me ver. Eu acho que não abri a porta assim com tanta força.
- Não, está tudo bem! Eu é que não estava à espera...
- Eh lá! Deixou marca e tudo! Ora chega-te mais perto da luz, se faz favor.
Extremamente desconfortável com o espaço tão pequeno e ele nu, cheguei-me mais perto dele e deixei que ele me levantasse a testa enquanto baixava a cabeça dele para ver melhor. Os lábios dele estavam tão perto que eu fiquei gelada na mesma posição com medo que um bocadinho da minha pele pudesse tocar na dele.
- Dói-te? Só queria ver se tinha algum alto. Luísa? Sentes-te bem? - Eu fechei os olhos, efectivamente não me sentia nada bem. - Luísa?!...
Senti-me a deslizar, como se o chão estivesse a desfazer-se numa nuvem. Estava quase a lançar-me na calma prometida do inconsciente quando senti um rebate da minha própria vontade e o sangue voltou a correr. Senti o meu peito a elevar-se com uma lufada de ar fresco e agarrei-me ao Miguel para não cair. Não sei se ele disse alguma coisa ou não, mas descobri a minha cara e cabelo molhado contra o peito dele e senti-me bem assim. Estava quente e sentia-me segura, deixei-me estar.
- Luísa? Estás a ouvir-me? Bolas, eu não abri a porta assim com tanta força!
- Ah, sim... desculpa. Está tudo bem, foi só uma tontura...
Nem queria imaginar a figura triste que estava a fazer quando olhei para cima e vi os olhos confusos dele a olhar para baixo, para mim. Ele de braços abertos e eu agarrada a ele tipo lapa, já sem qualquer medo de cair. Mesmo assim, não consegui afastar-me e fiquei ali. Achei que podia passar a batata quente para o lado dele, ele que decidisse o que fazer. Deixei-me estar em silêncio e quando ele desistiu de esperar por uma reacção do meu lado, fechei os olhos e cerrei os dentes com força, à espera que ele trouxesse as minhas mãos de trás das costas dele e me obrigasse a partir o abraço que me cingia ao tronco dele. Estremeci quando senti que afinal os braços dele caíram nas minhas costas e me apertaram carinhosamente contra ele. Senti de novo uma onda de pura felicidade a percorrer-me o corpo. Olhei para cima para devolver um sorriso, mas ele tinha os olhos fechados enquanto percorria vagarosamente as minhas costas, ainda que por cima do roupão. Esperei pacientemente que ele reabrisse os olhos e perdi o sorriso durante a espera, talvez o tenha perdido de vez quando ele se inclinou para mim e levantou o meu queixo com o indicador direito. Os meus lábios beijaram os dele, mas eu já não vi essa parte porque mergulhei completamente em direcção à cara dele e fiz com que nos desequilibrássemos.
- Eh lá! Cuidado!... De onde vem essa força toda? - Ele riu-se e eu corei violentamente.
- Desculpa. Não sei o que se passou. Eu...
Ele mostrou-me um sorriso lindo e eu fiquei hipnotizada. Não tentei beijá-lo de novo, mas deixei que ele me descesse o roupão do ombro esquerdo e mo beijasse, assim como o osso que leva ao pescoço, o pescoço, o maxilar, a maçã do rosto... Eu deixei a cabeça tombar ligeiramente enquanto a consciência abandonava o meu corpo, fiquei com as emoções à flor da pele e deixei que o resto se desenrolasse entre o meu desejo e o dele.
quarta-feira, maio 19, 2010
IX: Um Refúgio
Acordei e, por momentos, achei que tudo o que tinha acontecido até ali tinha sido um pesadelo. O sol jorrava pela janela, eu estava enrolada numa manta e sentia-me completamente repousada. Espreguicei-me e senti uma pontada na barriga... passei ao de leve com a mão direita e constatei que a parte de ter pontos na barriga era um pesadelo muito real. Fechei os olhos depressa. Não queria que a sensação de paz se fosse embora, mas era tarde demais. Onde estava eu? Voltei a abrir os olhos e olhei para o tecto. Vi uma bonita estrutura em madeira toda devidamente envernizada. Olhei melhor para o aspecto rústico do quarto onde estava e reconheci-o imediatamente. Era a casinha minúscula que o Miguel tinha herdado de um bisavô. Estava perdida no meio das montanhas, junto a um pequeno lago e não tinha água corrente nem electricidade, quer dizer, tinha um gerador e não daquela electricidade que chega por "cabo". Fiquei contente ao ver o estado geral da casa, o Miguel tinha restaurado tudo de cima a baixo. Levantei-me com cuidado e encontrei-o a dormir no sofá da sala/cozinha/hall com o portátil sobre a barriga. Podíamos não ter água corrente nem esgotos, mas claro que tínhamos cobertura 3G!... Passei por ele e fui até ao balcão da cozinha. Havia pão e todos os armários estavam cheios. Fiquei com a nítida sensação que aquela era a casa dele e não uma casa de férias. Comecei a preparar-lhe o pequeno-almoço, torradas e sumo de laranja. Com cuidado levei tudo num tabuleiro e fiquei a observá-lo por breves momentos. Parecia-me que o velho Miguel tinha voltado, as feições de despreocupação e de gargalhada fácil ainda estavam lá. Sorri e pensei que a melhor maneira de acordá-lo era tentar tirar-lhe o portátil. Não me enganei e ele saltou logo do sofá.
- Não te preocupes, o meu portátil é melhor que o teu! Ou era, antes de me terem remodelado a casa.
- Desculpa, assustaste-me! O que é isso que tens aí? É para mim?
- É sim, eu já comi. - Observei-o enquanto ele se atirava ao monte de torradas e resolvi reviver o passado durante um bocadinho. - Fizeste um trabalho fantástico com ela Miguel. Eu já gostava imenso de como era antes, mas agora está excelente!
- De como era antes? Só tu para gostares da casa cheia de pó, teias-de-aranha e madeira cravada de caruncho! Lembras-te que nem conseguiste dormir na cama com medo que uma ripa de madeira caísse em cima de ti e tiveste que vir para o sofá?
- Lembro-me perfeitamente! Adorei os dias que passei aqui contigo, mas eu vinha dormir para o sofá porque não conseguia dormir ao teu lado – confessei.
- Eu ressonava?!
- Nada disso!... Eu nunca tinha dormido fora de casa e, bem, a verdade é que nunca mais dormi fora de casa. Tive medo de repetir a experiência e que ela nunca chegasse aos calcanhares do que passei contigo aqui. Estava tudo a ser tão bom, a paisagem magnífica, ninguém a chatear-nos, só tu e eu!... E o que eu estava apaixonada, nunca percebi se sentias o mesmo por mim. Queria acreditar que sim, mas achava que não. Não conseguia dormir porque tinha medo de acordar do sonho, acordar e não estares ao meu lado. Passei as noites a verificar que estavas mesmo ali comigo... vinha dormir para o sofá porque assim nunca ia acordar contigo e escusava de ter medo que me tivesses deixado. - Fitei o tecto, incapaz de olhá-lo nos olhos.
- Eu não acredito!! Mas tu sempre foste tão inteligente, que paragem foi essa? Ó Luísa, eu adorava-te! Achas mesmo que eu te tinha trazido aqui se não fosse esse o caso? Foste a única rapariga a quem eu me mostrei sem reservas e trouxe aqui. Sabes como este lugar era e é especial para mim. Depois de me teres deixado demorei imenso tempo até ter coragem de voltar cá.
- Desculpa. - E voltei-me para ele com umas lágrimas teimosas a bailar-me nos olhos. - Eu não consegui acreditar que era mesmo verdade o que sentias por mim, não conseguia conceber que sentisses o mesmo que eu. Afastei-te assim que pude antes que tu me afastasses...
- Eu não acredito que sofri miseravelmente porque tu ficaste burra de repente?!
- Mas pelo menos agora fiz-te o pequeno-almoço em vez de ficar a dormir no sofá o dia todo porque não pregava olho de noite?...
- Acho que tens que esforçar-te mais para conseguir compensar-me!
- Algum barrote que precise de uma demão de verniz?! - E sorri, embora o sorriso tivesse saído muito tremido. - Lamento que tenhas conhecido e apaixonado por aquela versão da Luísa com graves problemas de confiança. Acredita que nunca pensei em magoar-te...
- Bem, águas passadas não movem moinhos, não é? - Levantou-se e espreguiçou-se. - Eu vou correr um bocado lá fora para acordar. Faz o que quiseres, estás tudo à tua disposição, eu já volto!
E saiu. E deixou-me ali aparvalhada e sozinha depois da maior confissão da minha vida. Porque é que eu estava a sentir-me tão triste? Era outro Miguel e outra Luísa, foi há muitos anos e a culpa tinha sido minha. Porque é que eu achei que ia doer-lhe tanto a ele como a mim reviver isso?.. Senti uma dor forte na garganta e tentei suprimir as lágrimas e a respiração descompassada. Mas que mania tinham os últimos dias de amanhecer fabulosos e tornarem-se péssimos num abrir e fechar de olhos?..
Os dias passaram vagarosos, ele ficava o tempo todo a treinar lá fora ou a trabalhar no computador. Eu, sem saber o que fazer, ia dar passeios pela floresta que ainda conhecia e preparava as refeições. Quase não falávamos sem ser alguma conversa de circunstância e eu sentia-me extremamente infeliz. Queria ir-me embora dali, não queria guardar aquela memória comigo. Não queria ter aquela pessoa em particular a ignorar-me e a pensar em mim como um fardo. Até que finalmente passou uma semana desde que ele me tinha cosido e eu arranjei coragem para falar com ele sem ser sobre o estado do tempo ou a falta dos meus dotes culinários.
- Miguel? Desculpa lá interromper-te mas acho que já posso ir-me embora. Passou uma semana e eu tenho que ir tirar os pontos. Obrigada por deixares-me ficar aqui em segurança contigo e pelo cuidado que tens tido comigo.
- Ah, isto passa de uma confissão formidável, para conversa sobre o tempo e agora vais-te embora??! - Eu abri muito os olhos completamente abismada com aquela frase. - Desculpa, não ligues. Estou um bocado nervoso. Deixa-me lá ver isso.
Eu levantei a camisa, tinha a certeza que estava tudo a sarar lindamente. A cicatriz ia ficar pequena, o que era um milagre dadas as circunstâncias.
- Espera um momento, vou buscar uma lâmina.
- Uma quê?!
- Lâmina... para cortar-te os pontos.
- Não achas mais seguro que mos tirem no hospital?...
Ele nem me deixou acabar a pergunta, voltou-se para mim, baixou-se e começou a cortá-los. Voltei a sentir a sensação de um estranho cruzamento entre cócegas e dormência ponto após ponto, até que os cinco estavam na mesa e não em mim.
- Finito! Estás pronta para outra!
- Como eu detesto essa expressão... Mas obrigada. A cicatriz ficou tão pequenina! Da próxima vez que ficar debaixo de umas lascas de madeira, já sei a quem chamar! - E pisquei-lhe o olho.
- Luísa, temos que falar. - Estremeci dos pés à cabeça só de imaginar os possíveis temas. - Eu não queria envolver-te nisto, a sério que não, mas preciso da tua ajuda.
- Precisas que eu faça o quê?
- Confias em mim?...
- Claro que sim.
- Muito bem, então vou contar-te o que precisas de saber. Lembras-te do hotel onde estivemos?...
- Não te preocupes, o meu portátil é melhor que o teu! Ou era, antes de me terem remodelado a casa.
- Desculpa, assustaste-me! O que é isso que tens aí? É para mim?
- É sim, eu já comi. - Observei-o enquanto ele se atirava ao monte de torradas e resolvi reviver o passado durante um bocadinho. - Fizeste um trabalho fantástico com ela Miguel. Eu já gostava imenso de como era antes, mas agora está excelente!
- De como era antes? Só tu para gostares da casa cheia de pó, teias-de-aranha e madeira cravada de caruncho! Lembras-te que nem conseguiste dormir na cama com medo que uma ripa de madeira caísse em cima de ti e tiveste que vir para o sofá?
- Lembro-me perfeitamente! Adorei os dias que passei aqui contigo, mas eu vinha dormir para o sofá porque não conseguia dormir ao teu lado – confessei.
- Eu ressonava?!
- Nada disso!... Eu nunca tinha dormido fora de casa e, bem, a verdade é que nunca mais dormi fora de casa. Tive medo de repetir a experiência e que ela nunca chegasse aos calcanhares do que passei contigo aqui. Estava tudo a ser tão bom, a paisagem magnífica, ninguém a chatear-nos, só tu e eu!... E o que eu estava apaixonada, nunca percebi se sentias o mesmo por mim. Queria acreditar que sim, mas achava que não. Não conseguia dormir porque tinha medo de acordar do sonho, acordar e não estares ao meu lado. Passei as noites a verificar que estavas mesmo ali comigo... vinha dormir para o sofá porque assim nunca ia acordar contigo e escusava de ter medo que me tivesses deixado. - Fitei o tecto, incapaz de olhá-lo nos olhos.
- Eu não acredito!! Mas tu sempre foste tão inteligente, que paragem foi essa? Ó Luísa, eu adorava-te! Achas mesmo que eu te tinha trazido aqui se não fosse esse o caso? Foste a única rapariga a quem eu me mostrei sem reservas e trouxe aqui. Sabes como este lugar era e é especial para mim. Depois de me teres deixado demorei imenso tempo até ter coragem de voltar cá.
- Desculpa. - E voltei-me para ele com umas lágrimas teimosas a bailar-me nos olhos. - Eu não consegui acreditar que era mesmo verdade o que sentias por mim, não conseguia conceber que sentisses o mesmo que eu. Afastei-te assim que pude antes que tu me afastasses...
- Eu não acredito que sofri miseravelmente porque tu ficaste burra de repente?!
- Mas pelo menos agora fiz-te o pequeno-almoço em vez de ficar a dormir no sofá o dia todo porque não pregava olho de noite?...
- Acho que tens que esforçar-te mais para conseguir compensar-me!
- Algum barrote que precise de uma demão de verniz?! - E sorri, embora o sorriso tivesse saído muito tremido. - Lamento que tenhas conhecido e apaixonado por aquela versão da Luísa com graves problemas de confiança. Acredita que nunca pensei em magoar-te...
- Bem, águas passadas não movem moinhos, não é? - Levantou-se e espreguiçou-se. - Eu vou correr um bocado lá fora para acordar. Faz o que quiseres, estás tudo à tua disposição, eu já volto!
E saiu. E deixou-me ali aparvalhada e sozinha depois da maior confissão da minha vida. Porque é que eu estava a sentir-me tão triste? Era outro Miguel e outra Luísa, foi há muitos anos e a culpa tinha sido minha. Porque é que eu achei que ia doer-lhe tanto a ele como a mim reviver isso?.. Senti uma dor forte na garganta e tentei suprimir as lágrimas e a respiração descompassada. Mas que mania tinham os últimos dias de amanhecer fabulosos e tornarem-se péssimos num abrir e fechar de olhos?..
Os dias passaram vagarosos, ele ficava o tempo todo a treinar lá fora ou a trabalhar no computador. Eu, sem saber o que fazer, ia dar passeios pela floresta que ainda conhecia e preparava as refeições. Quase não falávamos sem ser alguma conversa de circunstância e eu sentia-me extremamente infeliz. Queria ir-me embora dali, não queria guardar aquela memória comigo. Não queria ter aquela pessoa em particular a ignorar-me e a pensar em mim como um fardo. Até que finalmente passou uma semana desde que ele me tinha cosido e eu arranjei coragem para falar com ele sem ser sobre o estado do tempo ou a falta dos meus dotes culinários.
- Miguel? Desculpa lá interromper-te mas acho que já posso ir-me embora. Passou uma semana e eu tenho que ir tirar os pontos. Obrigada por deixares-me ficar aqui em segurança contigo e pelo cuidado que tens tido comigo.
- Ah, isto passa de uma confissão formidável, para conversa sobre o tempo e agora vais-te embora??! - Eu abri muito os olhos completamente abismada com aquela frase. - Desculpa, não ligues. Estou um bocado nervoso. Deixa-me lá ver isso.
Eu levantei a camisa, tinha a certeza que estava tudo a sarar lindamente. A cicatriz ia ficar pequena, o que era um milagre dadas as circunstâncias.
- Espera um momento, vou buscar uma lâmina.
- Uma quê?!
- Lâmina... para cortar-te os pontos.
- Não achas mais seguro que mos tirem no hospital?...
Ele nem me deixou acabar a pergunta, voltou-se para mim, baixou-se e começou a cortá-los. Voltei a sentir a sensação de um estranho cruzamento entre cócegas e dormência ponto após ponto, até que os cinco estavam na mesa e não em mim.
- Finito! Estás pronta para outra!
- Como eu detesto essa expressão... Mas obrigada. A cicatriz ficou tão pequenina! Da próxima vez que ficar debaixo de umas lascas de madeira, já sei a quem chamar! - E pisquei-lhe o olho.
- Luísa, temos que falar. - Estremeci dos pés à cabeça só de imaginar os possíveis temas. - Eu não queria envolver-te nisto, a sério que não, mas preciso da tua ajuda.
- Precisas que eu faça o quê?
- Confias em mim?...
- Claro que sim.
- Muito bem, então vou contar-te o que precisas de saber. Lembras-te do hotel onde estivemos?...
terça-feira, maio 18, 2010
VIII: Fora do Hospital
- Onde é que aprendeste a roubar carros? É que se foi no mesmo sítio onde aprendeste a arrombar portas, eu começo a ter algumas questões em relação às profissões que possas ter tido!!
- Porque é que dizes isso?
- Não sei Miguel, se calhar o facto de estarmos estacionados sabe Deus onde, num carro sabe Deus de quem enquanto tu coses os pontos que eu rebentei? Ah, e com material que surripiaste no hospital?...
- Só pedi emprestado!
- Longe de mim reclamar disso, afinal estás a cuidar de mim! Mas tenho que confessar que estou algo apreensiva em relação à cicatriz final. - Ele sorriu e eu enchi-me de coragem para prosseguir. - Mas tu entras em casas e carros sem chave, pelos vistos sabes qualquer coisa de primeiros socorros e ainda nem me explicaste do que estávamos a fugir ou porque é que saíste do quarto do hotel durante a noite. Visto estar a ser cosida a sangue frio, se calhar era boa altura para partilhares alguma coisa que tu obviamente sabes e eu não?...
Ele olhou para mim com um meio sorriso na cara, inspirou fundo e pediu-me que o deixasse acabar de coser a cratera na minha barriga antes de falar. Eu acedi, afinal não queria que ele ficasse nervoso ou chateado enquanto manejava a agulha... Até que ele acabou, instalou-me confortavelmente no banco de trás, sentou-se no lugar do condutor e fez uma manobra rápida para tirar o carro do meio dos pinheiros à beira da estrada. Assim que atingimos velocidade de cruzeiro, esperei pacientemente que ele começasse a falar.
- Bem Luísa, eu nunca falei disto com ninguém de fora... nem sei bem por onde começar, mas a primeira coisa que tenho a dizer é que não posso contar-te quase nada. Não vou dizer que é para a tua segurança, porque na verdade é mais a minha segurança que está em jogo.
- Ok, então conta só o que te apetece. Ou canta para me entreteres, sei lá!
- Bem, isto é mesmo como nos filmes. Eu trabalho para umas pessoas que querem saber coisas de outras pessoas e assim desse género, estás a entender?
- Sim, e não quero saber se matas pessoas.
- Ó Luísa, achas mesmo? Pronto, não é assim tão à filme! Continuando, eu fui contratado para analisar uma situação e desconfio que não me contaram tudo porque isto está a ficar descontrolado!...
- Deixa-me adivinhar, essa "situação" tinha alguma coisa a ver com o hotel onde ficámos?
- Sim... como sabes?
- A primeira coisa que fizeste ao chegar ao quarto foi tirar o computador! Nem acredito que me foste meter mesmo na boca do lobo! E explica-me lá porque é que me deixaste sozinha?
- Eu estava a trabalhar quando reparei num carro em particular e achei que valia a pena investigar...
- Viste um carro em particular daquela altura?... Aposto que era um carro do governo, a única maneira de veres um carro que te interessasse em particular tinha que ser um daqueles em que os faróis fazem aquelas coisas todas esquisitas!
- Eu tenho binóculos sabes?...
- E foste estúpido o suficiente para sair pela janela?!
- Achei que passar pela recepção era demasiado fácil!
- Ia morrendo de medo e ainda por cima rebentei os pontos!!
- Desculpa!...
- E agora vamos para onde?
- Já vais ver.
- Oh, por favor! Eu quero ir para um sítio que eu conheça! Não quero ter mais nada a ver com isto.
- Tem calma, eu prometo que não te envolvo mais.
- Não me envolves mais? Foste tu que entraste na minha casa e te deitaste ao meu lado?...
- Obviamente que não entrei na tua casa nu e me deitei ao teu lado! Bolas Luísa, pensas que eu sou o quê?!
- Sei lá... tu não és quem eu pensava. Não me interpretes mal, estou muito contente que estejas comigo e saibas coser uma ferida e tudo, mas não és o Miguel que eu conheci. És outro Miguel.
- ...
- Agora explica-me o que se passou no hospital.
- Eles sabem que eu te conheço e isso é a única explicação possível para me terem deixado na tua casa. Mesmo depois da descoberta do óculo nunca pensei que estivesses em risco, achei que estavam apenas a observar-te... mas no hospital foi diferente.
- Ele ia matar-me, não é?
- Não sei Luísa. Não sei se o alvo eras tu ou eu.
- E na segunda vez, o que se passou no hospital?
- Eu estava a caminho não sei de que sala para fazer um exame qualquer e vi-o de novo, o homem que entrou no teu quarto. A única coisa que podia fazer era procurar-te para sairmos dali o mais depressa possível!
Os pêlos do meu braço estavam completamente eriçados e o meu coração saltava no meu peito como se estivesse numa final de um campeonato qualquer. Realmente eu não queria saber mais nada... quem era este Miguel? O que é que ele fazia realmente? Mas até estas perguntas eram irrelevantes porque agora o que interessava era não ter homens estranhos a entrar no meu quarto com bisturis e outras coisas afiadas. Tinha que confiar nele, não podia fazer mais nada.
- Luísa? Estás bem?
- Estou.
- Não estou habituado a que não tenhas nada a dizer! - Tentou uma piada.
- Estou a tentar organizar-me.
- Não compreendo como consegues estar tão calma. Acontece-te muitas vezes teres a vida virada do avesso e seres perseguida?
- É a primeira vez na minha vida que não durmo em casa duas noites seguidas.
- Isso não é verdade!!
Não pude evitar um sorriso... que se estendeu numa gargalhada. Senti finalmente uma sensação inexplicavelmente boa a percorrer-me o corpo e relaxei. Sem dúvida que ia confiar nele e em tudo o que ele me pedisse para fazer. Acho que adormeci nesse momento.
- Porque é que dizes isso?
- Não sei Miguel, se calhar o facto de estarmos estacionados sabe Deus onde, num carro sabe Deus de quem enquanto tu coses os pontos que eu rebentei? Ah, e com material que surripiaste no hospital?...
- Só pedi emprestado!
- Longe de mim reclamar disso, afinal estás a cuidar de mim! Mas tenho que confessar que estou algo apreensiva em relação à cicatriz final. - Ele sorriu e eu enchi-me de coragem para prosseguir. - Mas tu entras em casas e carros sem chave, pelos vistos sabes qualquer coisa de primeiros socorros e ainda nem me explicaste do que estávamos a fugir ou porque é que saíste do quarto do hotel durante a noite. Visto estar a ser cosida a sangue frio, se calhar era boa altura para partilhares alguma coisa que tu obviamente sabes e eu não?...
Ele olhou para mim com um meio sorriso na cara, inspirou fundo e pediu-me que o deixasse acabar de coser a cratera na minha barriga antes de falar. Eu acedi, afinal não queria que ele ficasse nervoso ou chateado enquanto manejava a agulha... Até que ele acabou, instalou-me confortavelmente no banco de trás, sentou-se no lugar do condutor e fez uma manobra rápida para tirar o carro do meio dos pinheiros à beira da estrada. Assim que atingimos velocidade de cruzeiro, esperei pacientemente que ele começasse a falar.
- Bem Luísa, eu nunca falei disto com ninguém de fora... nem sei bem por onde começar, mas a primeira coisa que tenho a dizer é que não posso contar-te quase nada. Não vou dizer que é para a tua segurança, porque na verdade é mais a minha segurança que está em jogo.
- Ok, então conta só o que te apetece. Ou canta para me entreteres, sei lá!
- Bem, isto é mesmo como nos filmes. Eu trabalho para umas pessoas que querem saber coisas de outras pessoas e assim desse género, estás a entender?
- Sim, e não quero saber se matas pessoas.
- Ó Luísa, achas mesmo? Pronto, não é assim tão à filme! Continuando, eu fui contratado para analisar uma situação e desconfio que não me contaram tudo porque isto está a ficar descontrolado!...
- Deixa-me adivinhar, essa "situação" tinha alguma coisa a ver com o hotel onde ficámos?
- Sim... como sabes?
- A primeira coisa que fizeste ao chegar ao quarto foi tirar o computador! Nem acredito que me foste meter mesmo na boca do lobo! E explica-me lá porque é que me deixaste sozinha?
- Eu estava a trabalhar quando reparei num carro em particular e achei que valia a pena investigar...
- Viste um carro em particular daquela altura?... Aposto que era um carro do governo, a única maneira de veres um carro que te interessasse em particular tinha que ser um daqueles em que os faróis fazem aquelas coisas todas esquisitas!
- Eu tenho binóculos sabes?...
- E foste estúpido o suficiente para sair pela janela?!
- Achei que passar pela recepção era demasiado fácil!
- Ia morrendo de medo e ainda por cima rebentei os pontos!!
- Desculpa!...
- E agora vamos para onde?
- Já vais ver.
- Oh, por favor! Eu quero ir para um sítio que eu conheça! Não quero ter mais nada a ver com isto.
- Tem calma, eu prometo que não te envolvo mais.
- Não me envolves mais? Foste tu que entraste na minha casa e te deitaste ao meu lado?...
- Obviamente que não entrei na tua casa nu e me deitei ao teu lado! Bolas Luísa, pensas que eu sou o quê?!
- Sei lá... tu não és quem eu pensava. Não me interpretes mal, estou muito contente que estejas comigo e saibas coser uma ferida e tudo, mas não és o Miguel que eu conheci. És outro Miguel.
- ...
- Agora explica-me o que se passou no hospital.
- Eles sabem que eu te conheço e isso é a única explicação possível para me terem deixado na tua casa. Mesmo depois da descoberta do óculo nunca pensei que estivesses em risco, achei que estavam apenas a observar-te... mas no hospital foi diferente.
- Ele ia matar-me, não é?
- Não sei Luísa. Não sei se o alvo eras tu ou eu.
- E na segunda vez, o que se passou no hospital?
- Eu estava a caminho não sei de que sala para fazer um exame qualquer e vi-o de novo, o homem que entrou no teu quarto. A única coisa que podia fazer era procurar-te para sairmos dali o mais depressa possível!
Os pêlos do meu braço estavam completamente eriçados e o meu coração saltava no meu peito como se estivesse numa final de um campeonato qualquer. Realmente eu não queria saber mais nada... quem era este Miguel? O que é que ele fazia realmente? Mas até estas perguntas eram irrelevantes porque agora o que interessava era não ter homens estranhos a entrar no meu quarto com bisturis e outras coisas afiadas. Tinha que confiar nele, não podia fazer mais nada.
- Luísa? Estás bem?
- Estou.
- Não estou habituado a que não tenhas nada a dizer! - Tentou uma piada.
- Estou a tentar organizar-me.
- Não compreendo como consegues estar tão calma. Acontece-te muitas vezes teres a vida virada do avesso e seres perseguida?
- É a primeira vez na minha vida que não durmo em casa duas noites seguidas.
- Isso não é verdade!!
Não pude evitar um sorriso... que se estendeu numa gargalhada. Senti finalmente uma sensação inexplicavelmente boa a percorrer-me o corpo e relaxei. Sem dúvida que ia confiar nele e em tudo o que ele me pedisse para fazer. Acho que adormeci nesse momento.
segunda-feira, maio 17, 2010
VII: No Hospital, parte III
- Mas eu não quero ficar sozinha num hotel!! Eu quero ficar contigo! Ou com protecção policial... ou noutro país?
- Mas quem é que te disse que ias ficar sozinha? Eu vou ficar aqui contigo!
- Mas tu pediste um quarto que está no nome de "José António Fagundes"?
- Não ia dar o meu nome verdadeiro, e muito menos o teu, não é? Eu tenho dois dias a menos na minha vida, a tua casa parece um queijo suíço e agora até a remodelaram!
- Tudo bem... desde que fiques comigo.
- Eu fico. Tem calma.
Encostei-me a ele e apertei-lhe o braço com força. Ele ajudou-me até ao elevador e subimos até ao quarto. Já dentro do quarto, que parecia decorado como qualquer outro quarto de hotel, continuei sem largar o braço dele.
- Olha que o aluguer do braço é mais caro!
- Ah, desculpa - corei - ainda estou assustada. Acho que vou deitar-me um bocadinho para ver se relaxo.
- Sim, faz isso, descansa.
Deitei-me enquanto ele tirou o portátil da mochila e achei deveras fascinante que ele tivesse vontade de trabalhar. Não sei exactamente como foi possível, mas entre as dores, o cansaço, medo e talvez até um bocadinho de terror, adormeci assim que me deitei na cama.
Acordei a meio da noite com o som de um carro a chiar na estrada. Acendi a luz da mesinha de cabeceira e chamei pelo Miguel. Ninguém me respondeu por isso achei que ele tinha saído. Levantei-me com cuidado para fechar a janela que estava aberta, o que explicava porque é que eu tinha ouvido tão bem o carro lá em baixo. Lembrei-me que o hotel era bem alto e resolvi espreitar para ver se sentia vertigens. E realmente senti uma vertigem, mas porque era capaz de jurar que era o Miguel que estava estendido na estrada!! Corri direita ao elevador, contei e amaldiçoei a eternidade que demorava a passar cada andar, até que cheguei finalmente à recepção e corri em direcção às portas giratórias enquanto gritava por ajuda. Até que por fim cheguei à rua e, sem reparar se vinha outro carro, corri para o corpo estendido na estrada. Ele estava de cabeça voltada para baixo mas eu reconheci a roupa. Era o Miguel.
- Miguel? Miguel!! Por favor, alguém chame o 112!..
E eis-me de novo no hospital à espera que alguém me refaça as costuras e que me diga o que se passa com o Miguel, após ter respondido a um longo inquérito sobre o facto de eu ser uma possível vítima de violência doméstica. Nem me espantaria que fizessem o mesmo ao Miguel se eu estivesse em condições de conduzir... E para ajudar, haviam uns tantos pacientes no hospital que me olhavam de lado por estar na sala de espera deitada numa maca. Tentei abstrair-me deles e pensar na minha vida. Eu até há 48 horas tinha casa, tinha uma vida, tinha uma barriga apenas com uma cicatriz e não fazia ideia de que estava apaixonada pelo mesmo homem há tantos anos. Pelo menos esta parte explicava porque é que eu não conseguia achar nenhum homem interessante durante mais de duas horas, o tempo que durava um jantar. Mas estar a ser espiada pelos vizinhos do lado que eu nem sabia que tinha não era tão fácil de explicar. E a parte de alguém ter largado o meu ex-namorado na minha cama através do tecto enquanto ele estava inconsciente e nu também me escapava. Porque é que alguém estava interessado em vigiar-me e saber de mim? Eu sempre me achei uma pessoa completamente desinteressante e anónima. A única coisa que eu sabia que não era coincidência era o Miguel ter sido "depositado" na minha casa. Quem quer que estivesse por trás disto sabia que nos conhecíamos, seria demasiada coincidência de outro modo. Mas como e porquê?!...
- Luísa Alves?
- Eu!
- Importar-se de chegar ao balcão?
- Por acaso importo! Sou a única pessoa na sala de espera numa maca por alguma razão! Ou vão coser-me de pé aí ao balcão?!
Ninguém me respondeu, mas passado pouco tempo um enfermeiro veio buscar-me e os meus pés (e não o fundo da maca) abriram a porta de par em par para a zona "reservada". Deixaram-me no corredor com a indicação que ia ser já atendida. Não sei porquê, mas comecei a contar segundos para distrair-me e saber quanto era um "instante hospitalar". Para minha surpresa, não apareceu nenhum médico nem nenhum enfermeiro, mas sim o Miguel. E apareceu muito bem porque estava de costas e eu conseguia ver o rabo dele através daquelas magníficas batas que nos dão quando estamos internados no hospital. Fiquei a pensar que a bata favorecia-o mais do que era suposto. Por outro lado, o Miguel tinha sido atropelado e eu só podia estar a alucinar!... No entanto, não evitei fazer-me notar:
- Miguel?...
- Ah, estás aqui!!
- Estou aqui? Mas onde é que haveria de estar? Olha lá, não foste atropelado nem nada? Ou foi só impressão minha?!
- Não exactamente. Eu saltei por cima do carro mas saltei mal e caí ainda pior, devo ter batido com a cabeça algures.
- Isso é o veredicto do médico ou o teu?
- Olha, não é para assustar-te, mas temos que sair daqui depressa, ok?
- Eu rebentei os pontos na barriga, não consigo ir a lado nenhum. Mas porque é que vamos fugir de um hospital?
- Agora não há tempo para explicar grande coisa, temos mesmo que ir. Deixa-me ver isso. - Levantou-me a camisa ensanguentada e fez uma careta. - Isto vai doer... mas confia em mim.
Claro está que eu nem tive tempo de perguntar porque é que devia confiar ou reafirmar a minha confiança nele porque ele pegou em mim tipo saco de batatas e eu abafei um grito de dor. Fiquei outra vez com a sensação de que estava a alucinar. Aqui estava o Miguel acabado de atropelar e a correr bastante depressa para quem tem um peso morto às costas. Por outro lado, tinha que pensar nalguma coisa para abstrair-me do facto de ter o meu nariz perigosamente perto do sítio onde as costas dele perdiam o nome. Além disso, o meu cabelo caía sobre... hum, melhor focar-me noutra coisa! Não estava a ser muito bem sucedida na abstracção, mas a verdade é que não me voltou a doer nada durante a corrida. Seria possível que estivesse a ficar imune à dor? Ou se calhar doía-me tanta coisa que eu já não conseguia decidir o que é que doía mais.
- Miguel, acabaste de tirar um estojo de primeiros socorros daquele tabuleiro?
- Sim.
- Sabes que é ilegal, para não dizer imoral, roubar um hospital?
- É uma emergência.
- Estamos a ir para onde?
- Shhh!
- Tens um rabo muito bonito?...
- ...
- Mas quem é que te disse que ias ficar sozinha? Eu vou ficar aqui contigo!
- Mas tu pediste um quarto que está no nome de "José António Fagundes"?
- Não ia dar o meu nome verdadeiro, e muito menos o teu, não é? Eu tenho dois dias a menos na minha vida, a tua casa parece um queijo suíço e agora até a remodelaram!
- Tudo bem... desde que fiques comigo.
- Eu fico. Tem calma.
Encostei-me a ele e apertei-lhe o braço com força. Ele ajudou-me até ao elevador e subimos até ao quarto. Já dentro do quarto, que parecia decorado como qualquer outro quarto de hotel, continuei sem largar o braço dele.
- Olha que o aluguer do braço é mais caro!
- Ah, desculpa - corei - ainda estou assustada. Acho que vou deitar-me um bocadinho para ver se relaxo.
- Sim, faz isso, descansa.
Deitei-me enquanto ele tirou o portátil da mochila e achei deveras fascinante que ele tivesse vontade de trabalhar. Não sei exactamente como foi possível, mas entre as dores, o cansaço, medo e talvez até um bocadinho de terror, adormeci assim que me deitei na cama.
Acordei a meio da noite com o som de um carro a chiar na estrada. Acendi a luz da mesinha de cabeceira e chamei pelo Miguel. Ninguém me respondeu por isso achei que ele tinha saído. Levantei-me com cuidado para fechar a janela que estava aberta, o que explicava porque é que eu tinha ouvido tão bem o carro lá em baixo. Lembrei-me que o hotel era bem alto e resolvi espreitar para ver se sentia vertigens. E realmente senti uma vertigem, mas porque era capaz de jurar que era o Miguel que estava estendido na estrada!! Corri direita ao elevador, contei e amaldiçoei a eternidade que demorava a passar cada andar, até que cheguei finalmente à recepção e corri em direcção às portas giratórias enquanto gritava por ajuda. Até que por fim cheguei à rua e, sem reparar se vinha outro carro, corri para o corpo estendido na estrada. Ele estava de cabeça voltada para baixo mas eu reconheci a roupa. Era o Miguel.
- Miguel? Miguel!! Por favor, alguém chame o 112!..
E eis-me de novo no hospital à espera que alguém me refaça as costuras e que me diga o que se passa com o Miguel, após ter respondido a um longo inquérito sobre o facto de eu ser uma possível vítima de violência doméstica. Nem me espantaria que fizessem o mesmo ao Miguel se eu estivesse em condições de conduzir... E para ajudar, haviam uns tantos pacientes no hospital que me olhavam de lado por estar na sala de espera deitada numa maca. Tentei abstrair-me deles e pensar na minha vida. Eu até há 48 horas tinha casa, tinha uma vida, tinha uma barriga apenas com uma cicatriz e não fazia ideia de que estava apaixonada pelo mesmo homem há tantos anos. Pelo menos esta parte explicava porque é que eu não conseguia achar nenhum homem interessante durante mais de duas horas, o tempo que durava um jantar. Mas estar a ser espiada pelos vizinhos do lado que eu nem sabia que tinha não era tão fácil de explicar. E a parte de alguém ter largado o meu ex-namorado na minha cama através do tecto enquanto ele estava inconsciente e nu também me escapava. Porque é que alguém estava interessado em vigiar-me e saber de mim? Eu sempre me achei uma pessoa completamente desinteressante e anónima. A única coisa que eu sabia que não era coincidência era o Miguel ter sido "depositado" na minha casa. Quem quer que estivesse por trás disto sabia que nos conhecíamos, seria demasiada coincidência de outro modo. Mas como e porquê?!...
- Luísa Alves?
- Eu!
- Importar-se de chegar ao balcão?
- Por acaso importo! Sou a única pessoa na sala de espera numa maca por alguma razão! Ou vão coser-me de pé aí ao balcão?!
Ninguém me respondeu, mas passado pouco tempo um enfermeiro veio buscar-me e os meus pés (e não o fundo da maca) abriram a porta de par em par para a zona "reservada". Deixaram-me no corredor com a indicação que ia ser já atendida. Não sei porquê, mas comecei a contar segundos para distrair-me e saber quanto era um "instante hospitalar". Para minha surpresa, não apareceu nenhum médico nem nenhum enfermeiro, mas sim o Miguel. E apareceu muito bem porque estava de costas e eu conseguia ver o rabo dele através daquelas magníficas batas que nos dão quando estamos internados no hospital. Fiquei a pensar que a bata favorecia-o mais do que era suposto. Por outro lado, o Miguel tinha sido atropelado e eu só podia estar a alucinar!... No entanto, não evitei fazer-me notar:
- Miguel?...
- Ah, estás aqui!!
- Estou aqui? Mas onde é que haveria de estar? Olha lá, não foste atropelado nem nada? Ou foi só impressão minha?!
- Não exactamente. Eu saltei por cima do carro mas saltei mal e caí ainda pior, devo ter batido com a cabeça algures.
- Isso é o veredicto do médico ou o teu?
- Olha, não é para assustar-te, mas temos que sair daqui depressa, ok?
- Eu rebentei os pontos na barriga, não consigo ir a lado nenhum. Mas porque é que vamos fugir de um hospital?
- Agora não há tempo para explicar grande coisa, temos mesmo que ir. Deixa-me ver isso. - Levantou-me a camisa ensanguentada e fez uma careta. - Isto vai doer... mas confia em mim.
Claro está que eu nem tive tempo de perguntar porque é que devia confiar ou reafirmar a minha confiança nele porque ele pegou em mim tipo saco de batatas e eu abafei um grito de dor. Fiquei outra vez com a sensação de que estava a alucinar. Aqui estava o Miguel acabado de atropelar e a correr bastante depressa para quem tem um peso morto às costas. Por outro lado, tinha que pensar nalguma coisa para abstrair-me do facto de ter o meu nariz perigosamente perto do sítio onde as costas dele perdiam o nome. Além disso, o meu cabelo caía sobre... hum, melhor focar-me noutra coisa! Não estava a ser muito bem sucedida na abstracção, mas a verdade é que não me voltou a doer nada durante a corrida. Seria possível que estivesse a ficar imune à dor? Ou se calhar doía-me tanta coisa que eu já não conseguia decidir o que é que doía mais.
- Miguel, acabaste de tirar um estojo de primeiros socorros daquele tabuleiro?
- Sim.
- Sabes que é ilegal, para não dizer imoral, roubar um hospital?
- É uma emergência.
- Estamos a ir para onde?
- Shhh!
- Tens um rabo muito bonito?...
- ...
sábado, maio 15, 2010
VI: No Hospital, parte II
- Então, tem lá calma. Pára lá de chorar, calma!
- Ó Miguel, mas como é que eu posso ter calma? Então acordo aqui sozinha num hospital, não há ninguém para acudir-me e atravesso um mar de bisturis no quarto!! Mas o que é que se passou? Porque é que ninguém me explica nada? Onde é que estão todas as outras pessoas? Acho que se tens chegado cinco minutos mais tarde ias encontrar-me ali estendida no chão de novo, estava a entrar em pânico!
- Eu também não sei o que se passou. Estava a dormitar no sofá e ouvi a porta a abrir-se, entrou alguém com um carrinho e pensei que fosse uma enfermeira. Mas depois quando percebi melhor a silhueta, vi que não podia ser porque não tinha bata e era um homem enorme, parecia um segurança!
- Credo!... E depois?
- Bem, mesmo assim não pensei que fosse perigoso e levantei-me para perguntar o que se passava. Acho que assustei-o, assim que ele me viu tentou fugir e atirou-me com o carrinho! Eu corri atrás dele, mas perdi-o no andar de baixo. Nessa altura achei que o melhor era vir ver-te e encontrei-te à porta do quarto apoiada no suporte do soro e branca como cal...
- Mas onde estão as enfermeiras? - Uma lágrima de medo rolou pela minha face enquanto revivia o momento.
- Não sei, parece que estão com falta de pessoal e como este andar tem as pessoas que estão prestes a ter alta, as enfermeiras lá de baixo fazem algumas rondas aqui por cima, mas não estão cá permanentemente.
- Estou cheia de medo Miguel... quem seria? Obrigada por teres ficado aqui comigo esta noite...
- E eu era capaz de ir a algum lado depois do estado em que estavas? Tenta acalmar-te, ainda bem que não rebentaste os pontos. Amanhã levo-te para casa.
- Não!! Eu não quero ir para a minha casa!
- Hum... pronto, ficamos na minha mas temos que passar primeiro pela tua para ver o que é que se passa por cima do teu tecto!
- Eu não vou conseguir pregar olho a noite toda.
- Claro que vais!
- Ai que embrulhada! E ainda não entendi nada do que se passa aqui e muito menos como é que tu foste acordar na minha casa!..
- Nem me digas nada, até eu sinto que estou apanhado no meio de um filme que não é exactamente meu. Só queria ir para casa, tomar um bom banho, deitar-me e esquecer que tudo isto aconteceu.
Eu não disse nada, mas eu preferia que ele não tivesse dito aquilo. Apesar de ter o mundo virado de pernas para o ar, eu não queria esquecer o facto de que ele estava ali ao meu lado, mesmo que não tivesse querido saber de mim há demasiados anos. Acordei no dia seguinte depois de mal ter dormido e com um certo mau humor. Tentei não falar muito para não dizer disparates. O Miguel tratou dos papéis por mim e lá tive direito a sair do hospital, após as inúmeras recomendações para a minha rápida recuperação. Não fosse a vontade de sair de lá, tinha escrito uma reclamação de vários quilómetros sobre a falta de segurança naquela instalação hospital e exigir uma indemnização choruda!! O Miguel conduziu-nos até ao meu apartamento, e conduziu depressa demais apesar dos meus protestos.
- Mas tu fazes o quê mesmo? Tens um carro desportivo, conduzes demasiado depressa e estás evidentemente em muito melhor forma física do que quando eu te conheci!...
- Nada de especial, sou contratado por empresas para cobrar dívidas difíceis e tal.
- Ah, isso explica o teu aspecto... olha, importas-te ir mais devagar??
- Oh, é já ali!
- Não queres ir lá sozinho?
- Queres ficar aqui sozinha?
Vencida, mas não convencida, lá saí do carro com ele. Ele ajudou-me a sair e lá fomos os dois até ao elevador e depois até ao meu apartamento. Coloquei a chave na porta mas a fechadura não abriu.
- Estamos no andar certo? A chave não funciona.
- Não? Deixa-me experimentar.
Virei-me para entregar-lhe a chave, mas ele estava a pensar noutro método. Tirou um cartão e uma ferramenta qualquer de metal dos bolsos e abriu a porta em menos de cinco minutos.
- Eh lá! Também quero aprender a fazer isso! Onde é que fizeste o teu estágio??
Ele sorriu e levantou a palma da mão de modo a impedir que eu entrasse. Eu rodeei o braço dele e espreitei na mesma.
- Acho que acabaste de arrombar a casa errada, este apartamento não é meu!!
- É o teu sim.
- Achas mesmo?! Eu alguma vez tinha uma mesa vermelha no corredor de entrada? E olha o quarto, uma colcha cor-de-rosa com quadrados verdes? Que pirosice!
- Eu não disse que tinhas sido tu a decorar o apartamento, apenas que é este o teu.
Eu fitei-o durante uns instantes até perceber onde ele queria chegar. Efectivamente era aquele o andar certo e aquela era a porta certa. Fui à cozinha e os armários estavam vazios, o meu quarto não tinha um único objecto meu e até o tecto estava arranjado. Não havia qualquer marca do buraco do óculo na parede e já nem existia nenhuma estante ali. Deu-me vontade de chorar de novo, a minha vida, a minha roupa, os presentes que guardei, as minhas coisinhas, o meu computador... puff! Tinha desaparecido tudo no ar. Não consegui evitar um tom alarmado e tremido quando perguntei:
- Miguel, o que é que se passa aqui? Eu estou a ficar assustada a sério!
- Isto não está com bom aspecto não... vamos lá acima!
- Acima? Onde?
- Ao apartamento acima do teu!
- Mas não existe... é o sótão ou a casa das arrumações, como queiras chamar-lhe.
Ele ignorou-me completamente e subiu as escadas que davam acesso ao piso de cima sem pensar que eu não conseguia subir um degrau sequer e que nem devia estar ali de pé. Resignada, deitei-me no meu novo sofá enquanto esperava por ele. O Miguel apareceu muito pouco tempo depois, mas nem pediu desculpa por me ter deixado sozinha.
- Então, o que é que encontraste?
- Nada, só pó e as coisas do costume.
- Eu disse-te!...
- Vamos lá tratar de ti.
- Ó Miguel, mas como é que eu posso ter calma? Então acordo aqui sozinha num hospital, não há ninguém para acudir-me e atravesso um mar de bisturis no quarto!! Mas o que é que se passou? Porque é que ninguém me explica nada? Onde é que estão todas as outras pessoas? Acho que se tens chegado cinco minutos mais tarde ias encontrar-me ali estendida no chão de novo, estava a entrar em pânico!
- Eu também não sei o que se passou. Estava a dormitar no sofá e ouvi a porta a abrir-se, entrou alguém com um carrinho e pensei que fosse uma enfermeira. Mas depois quando percebi melhor a silhueta, vi que não podia ser porque não tinha bata e era um homem enorme, parecia um segurança!
- Credo!... E depois?
- Bem, mesmo assim não pensei que fosse perigoso e levantei-me para perguntar o que se passava. Acho que assustei-o, assim que ele me viu tentou fugir e atirou-me com o carrinho! Eu corri atrás dele, mas perdi-o no andar de baixo. Nessa altura achei que o melhor era vir ver-te e encontrei-te à porta do quarto apoiada no suporte do soro e branca como cal...
- Mas onde estão as enfermeiras? - Uma lágrima de medo rolou pela minha face enquanto revivia o momento.
- Não sei, parece que estão com falta de pessoal e como este andar tem as pessoas que estão prestes a ter alta, as enfermeiras lá de baixo fazem algumas rondas aqui por cima, mas não estão cá permanentemente.
- Estou cheia de medo Miguel... quem seria? Obrigada por teres ficado aqui comigo esta noite...
- E eu era capaz de ir a algum lado depois do estado em que estavas? Tenta acalmar-te, ainda bem que não rebentaste os pontos. Amanhã levo-te para casa.
- Não!! Eu não quero ir para a minha casa!
- Hum... pronto, ficamos na minha mas temos que passar primeiro pela tua para ver o que é que se passa por cima do teu tecto!
- Eu não vou conseguir pregar olho a noite toda.
- Claro que vais!
- Ai que embrulhada! E ainda não entendi nada do que se passa aqui e muito menos como é que tu foste acordar na minha casa!..
- Nem me digas nada, até eu sinto que estou apanhado no meio de um filme que não é exactamente meu. Só queria ir para casa, tomar um bom banho, deitar-me e esquecer que tudo isto aconteceu.
Eu não disse nada, mas eu preferia que ele não tivesse dito aquilo. Apesar de ter o mundo virado de pernas para o ar, eu não queria esquecer o facto de que ele estava ali ao meu lado, mesmo que não tivesse querido saber de mim há demasiados anos. Acordei no dia seguinte depois de mal ter dormido e com um certo mau humor. Tentei não falar muito para não dizer disparates. O Miguel tratou dos papéis por mim e lá tive direito a sair do hospital, após as inúmeras recomendações para a minha rápida recuperação. Não fosse a vontade de sair de lá, tinha escrito uma reclamação de vários quilómetros sobre a falta de segurança naquela instalação hospital e exigir uma indemnização choruda!! O Miguel conduziu-nos até ao meu apartamento, e conduziu depressa demais apesar dos meus protestos.
- Mas tu fazes o quê mesmo? Tens um carro desportivo, conduzes demasiado depressa e estás evidentemente em muito melhor forma física do que quando eu te conheci!...
- Nada de especial, sou contratado por empresas para cobrar dívidas difíceis e tal.
- Ah, isso explica o teu aspecto... olha, importas-te ir mais devagar??
- Oh, é já ali!
- Não queres ir lá sozinho?
- Queres ficar aqui sozinha?
Vencida, mas não convencida, lá saí do carro com ele. Ele ajudou-me a sair e lá fomos os dois até ao elevador e depois até ao meu apartamento. Coloquei a chave na porta mas a fechadura não abriu.
- Estamos no andar certo? A chave não funciona.
- Não? Deixa-me experimentar.
Virei-me para entregar-lhe a chave, mas ele estava a pensar noutro método. Tirou um cartão e uma ferramenta qualquer de metal dos bolsos e abriu a porta em menos de cinco minutos.
- Eh lá! Também quero aprender a fazer isso! Onde é que fizeste o teu estágio??
Ele sorriu e levantou a palma da mão de modo a impedir que eu entrasse. Eu rodeei o braço dele e espreitei na mesma.
- Acho que acabaste de arrombar a casa errada, este apartamento não é meu!!
- É o teu sim.
- Achas mesmo?! Eu alguma vez tinha uma mesa vermelha no corredor de entrada? E olha o quarto, uma colcha cor-de-rosa com quadrados verdes? Que pirosice!
- Eu não disse que tinhas sido tu a decorar o apartamento, apenas que é este o teu.
Eu fitei-o durante uns instantes até perceber onde ele queria chegar. Efectivamente era aquele o andar certo e aquela era a porta certa. Fui à cozinha e os armários estavam vazios, o meu quarto não tinha um único objecto meu e até o tecto estava arranjado. Não havia qualquer marca do buraco do óculo na parede e já nem existia nenhuma estante ali. Deu-me vontade de chorar de novo, a minha vida, a minha roupa, os presentes que guardei, as minhas coisinhas, o meu computador... puff! Tinha desaparecido tudo no ar. Não consegui evitar um tom alarmado e tremido quando perguntei:
- Miguel, o que é que se passa aqui? Eu estou a ficar assustada a sério!
- Isto não está com bom aspecto não... vamos lá acima!
- Acima? Onde?
- Ao apartamento acima do teu!
- Mas não existe... é o sótão ou a casa das arrumações, como queiras chamar-lhe.
Ele ignorou-me completamente e subiu as escadas que davam acesso ao piso de cima sem pensar que eu não conseguia subir um degrau sequer e que nem devia estar ali de pé. Resignada, deitei-me no meu novo sofá enquanto esperava por ele. O Miguel apareceu muito pouco tempo depois, mas nem pediu desculpa por me ter deixado sozinha.
- Então, o que é que encontraste?
- Nada, só pó e as coisas do costume.
- Eu disse-te!...
- Vamos lá tratar de ti.
sexta-feira, maio 14, 2010
V: No Hospital, parte I
- Luísa? Luísaaaa, estás a ouvir-me? Luísa, por favor responde!
Devo ter feito uma careta horrível porque a minha cabeça doía-me como nunca. Abri apenas um olho com medo que a claridade fizesse a minha cabeça explodir. Vi o Miguel a abanar-me ligeiramente enquanto me salpicava com água fria.
- Dói-me tanto a cabeça... - disse eu num sussurro.
- Ó Luísa, desculpa! Nem acredito que te magoei assim!
Ele estava deveras assustado a olhar para mim. E eu também fiquei deveras assustada quando vi as mãos dele ensanguentadas.
- Miguel... esse sangue é meu?... Será que podes ligar para o 112? - sussurrei de novo.
- Já liguei. Eles vêm a caminho. Eu até te levava, mas tenho tanto medo de mexer-te daqui!...
- Sim, acho que prefiro uma viagem de ambulância que aos soluços - tentei sorrir.
- Calma, vai ficar tudo bem.
A dor de cabeça tornou-se insuportável, ou talvez tenha sido a perda de sangue e desmaiei de novo.
Acordei num quarto que cheirava imenso a desinfectante, o que me deixou extremamente mal disposta. Pus a mão na boca e reparei que o meu pulso estava entubado. Estava a soro... hospital. Perfeito, o dia estava a correr mesmo bem e ainda nem era hora de almoço! Olhei para a porta do quarto, o Miguel estava lá a falar com alguém. Ainda estava vestido daquela forma ridícula e eu senti algum peso na consciência que podia muito bem ser explicado pela dor de cabeça. Suspirei e deixei-me estar de olhos fechados para controlar as náuseas.
- Miguel?...
- Ah, estás acordada! Como te sentes?
- Pergunta estúpida!...
- Ok, ok... estás de volta, estou a ver - e sorriu, mas também reparei no grande alívio que a cara dele desenhou.
- O que é que eu tenho? Estou tão mal disposta!...
- Sinceramente também não percebi metade do que o médico disse, estava um bocado nervoso! A ferida que tens na barriga teve que ser cosida mas está tudo bem, não tens nenhum órgão afectado. A dor de cabeça parece que é das sucessivas pancadas, mas não apareceu nada nos exames que te fizeram. Ele diz que vais ficar bem! Amanhã deves ter alta e depois voltas daqui a uma semana para te tirarem os pontos. Se quiseres eu posso trazer-te cá. Ó Luísa lamento imenso ter-te partido a cadeira e caído em cima de ti! Mas se te ajuda como forma de vingança, estou aqui há horas à seca e ninguém me dizia nada!...
- Que horas são?
- Quase seis da tarde.
- Seis?! Mas quanto tempo é que eu estive apagada??
- Não sei se estiveste sempre desmaiada ou se te deram alguma coisa para dormires entretanto. Mas o INEM chegou lá a casa por volta da uma, acho eu.
- Meu Deus!... Ó Miguel, desculpa! Estou tão arrependida de te ter feito vestir isso e tu estás aqui há tantas horas porque eu sou uma desastrada!!
- Acho que vou ter que partilhar dessa culpa também e ficamos quites, combinado?
- Combinado! E vai lá comprar qualquer coisa e trocar de roupa.
- Que mania de mandar-me embora! Fico aqui mais um pouco se não te importas, para ver como é que isso evolui em relação à tua cabeça. - Eu sorri, mas de repente senti-me bastante cansada e penso que adormeci.
Acordei com um estrondo enorme no quarto, como se alguém tivesse tropeçado num armário de metais e cada um deles resolvesse cair um milissegundo após o outro. Abri de imediato os olhos. Não conseguia ver nada, estava tudo escuro e de repente extremamente silencioso. Tentei acender a luz, mas cada vez que carregava num botão a cama subia, baixava, dobrava-se, abria, fechava... sei que quando finalmente acertei na luz, a minha cama parecia o mar alto e os pontos na barriga ameaçavam não aguentar a nova forma que a marquesa tinha adquirido. Olhei à volta mas não conseguia ver quase nada do quarto.
- Miguel? Miguel? Oh... está aí alguém? - A voz saía-me extremamente fraca e rouca.
Tentei sair da cama, mas era impossível sem piorar a situação. Então, com alguma paciência, resolvi correr os botões todos de novo até conseguir baixar a marquesa e torná-la minimamente horizontal para conseguir levantar-me. Rezei para que um daqueles botões fosse para chamar uma enfermeira. Sentia-me como se tivesse sido operada ao apêndice novamente, o que dentro do mau até era bom porque sabia o que fazer. Sem dobrar a barriga lá consegui deslizar na cama e colocar um pé no chão seguido do outro que suportava o peso do meu tronco. Foi então que vi o estado do chão do quarto: um carrinho cheio de prateleiras com os mais variados utensílios cirúrgicos estava agora vazio, enquanto que estes povoavam densamente o chão do quarto. Reparei com algum horror que tinha tido muita sorte em não pisar nenhum bisturi ou uma agulha ou qualquer coisa cortante e afiada já que estava descalça! Como não podia dobrar-me para apanhar nada do que estava no chão, fui afastando as coisas com o suporte do soro e consegui chegar à entrada do quarto. A ala estava completamente deserta. Senti que o meu coração batia cada vez mais depressa, as náuseas voltaram, estava a hiperventilar e sentia suores frios pelo corpo. Mas o que é que estava a acontecer-me?!...
Devo ter feito uma careta horrível porque a minha cabeça doía-me como nunca. Abri apenas um olho com medo que a claridade fizesse a minha cabeça explodir. Vi o Miguel a abanar-me ligeiramente enquanto me salpicava com água fria.
- Dói-me tanto a cabeça... - disse eu num sussurro.
- Ó Luísa, desculpa! Nem acredito que te magoei assim!
Ele estava deveras assustado a olhar para mim. E eu também fiquei deveras assustada quando vi as mãos dele ensanguentadas.
- Miguel... esse sangue é meu?... Será que podes ligar para o 112? - sussurrei de novo.
- Já liguei. Eles vêm a caminho. Eu até te levava, mas tenho tanto medo de mexer-te daqui!...
- Sim, acho que prefiro uma viagem de ambulância que aos soluços - tentei sorrir.
- Calma, vai ficar tudo bem.
A dor de cabeça tornou-se insuportável, ou talvez tenha sido a perda de sangue e desmaiei de novo.
Acordei num quarto que cheirava imenso a desinfectante, o que me deixou extremamente mal disposta. Pus a mão na boca e reparei que o meu pulso estava entubado. Estava a soro... hospital. Perfeito, o dia estava a correr mesmo bem e ainda nem era hora de almoço! Olhei para a porta do quarto, o Miguel estava lá a falar com alguém. Ainda estava vestido daquela forma ridícula e eu senti algum peso na consciência que podia muito bem ser explicado pela dor de cabeça. Suspirei e deixei-me estar de olhos fechados para controlar as náuseas.
- Miguel?...
- Ah, estás acordada! Como te sentes?
- Pergunta estúpida!...
- Ok, ok... estás de volta, estou a ver - e sorriu, mas também reparei no grande alívio que a cara dele desenhou.
- O que é que eu tenho? Estou tão mal disposta!...
- Sinceramente também não percebi metade do que o médico disse, estava um bocado nervoso! A ferida que tens na barriga teve que ser cosida mas está tudo bem, não tens nenhum órgão afectado. A dor de cabeça parece que é das sucessivas pancadas, mas não apareceu nada nos exames que te fizeram. Ele diz que vais ficar bem! Amanhã deves ter alta e depois voltas daqui a uma semana para te tirarem os pontos. Se quiseres eu posso trazer-te cá. Ó Luísa lamento imenso ter-te partido a cadeira e caído em cima de ti! Mas se te ajuda como forma de vingança, estou aqui há horas à seca e ninguém me dizia nada!...
- Que horas são?
- Quase seis da tarde.
- Seis?! Mas quanto tempo é que eu estive apagada??
- Não sei se estiveste sempre desmaiada ou se te deram alguma coisa para dormires entretanto. Mas o INEM chegou lá a casa por volta da uma, acho eu.
- Meu Deus!... Ó Miguel, desculpa! Estou tão arrependida de te ter feito vestir isso e tu estás aqui há tantas horas porque eu sou uma desastrada!!
- Acho que vou ter que partilhar dessa culpa também e ficamos quites, combinado?
- Combinado! E vai lá comprar qualquer coisa e trocar de roupa.
- Que mania de mandar-me embora! Fico aqui mais um pouco se não te importas, para ver como é que isso evolui em relação à tua cabeça. - Eu sorri, mas de repente senti-me bastante cansada e penso que adormeci.
Acordei com um estrondo enorme no quarto, como se alguém tivesse tropeçado num armário de metais e cada um deles resolvesse cair um milissegundo após o outro. Abri de imediato os olhos. Não conseguia ver nada, estava tudo escuro e de repente extremamente silencioso. Tentei acender a luz, mas cada vez que carregava num botão a cama subia, baixava, dobrava-se, abria, fechava... sei que quando finalmente acertei na luz, a minha cama parecia o mar alto e os pontos na barriga ameaçavam não aguentar a nova forma que a marquesa tinha adquirido. Olhei à volta mas não conseguia ver quase nada do quarto.
- Miguel? Miguel? Oh... está aí alguém? - A voz saía-me extremamente fraca e rouca.
Tentei sair da cama, mas era impossível sem piorar a situação. Então, com alguma paciência, resolvi correr os botões todos de novo até conseguir baixar a marquesa e torná-la minimamente horizontal para conseguir levantar-me. Rezei para que um daqueles botões fosse para chamar uma enfermeira. Sentia-me como se tivesse sido operada ao apêndice novamente, o que dentro do mau até era bom porque sabia o que fazer. Sem dobrar a barriga lá consegui deslizar na cama e colocar um pé no chão seguido do outro que suportava o peso do meu tronco. Foi então que vi o estado do chão do quarto: um carrinho cheio de prateleiras com os mais variados utensílios cirúrgicos estava agora vazio, enquanto que estes povoavam densamente o chão do quarto. Reparei com algum horror que tinha tido muita sorte em não pisar nenhum bisturi ou uma agulha ou qualquer coisa cortante e afiada já que estava descalça! Como não podia dobrar-me para apanhar nada do que estava no chão, fui afastando as coisas com o suporte do soro e consegui chegar à entrada do quarto. A ala estava completamente deserta. Senti que o meu coração batia cada vez mais depressa, as náuseas voltaram, estava a hiperventilar e sentia suores frios pelo corpo. Mas o que é que estava a acontecer-me?!...
quinta-feira, maio 13, 2010
IV: O Tecto
Estava deitada na cama de olhos fechados a tentar processar a informação e a tentar arranjar alguma explicação lógica para as perguntas que me assaltavam. Estremeci quando ouvi a porta da rua a fechar-se, o Miguel tinha saído. Provavelmente para comprar roupa nova... será que ia voltar? De algum modo sentia-me hipócrita por ter vontade que ele voltasse, tentei canalizar essa esperança surgida do nada para a necessidade de apoio, agora que me sentia fragilizada dentro da minha própria casa.
- Não consigo entrar no andar da frente, o raio da porta não mexe um milímetro!!
Sobressaltada, sentei-me na cama com um pulo e abri muito os olhos quando vi o Miguel à porta do meu quarto. Falei rapidamente, para disfarçar o espanto:
- Pensava que tinhas saído para comprar roupa nova?...
- E hei-de sair para comprar roupa nova! Mas faço questão que venhas comigo porque quero que passes pela vergonha de ser vista ao meu lado, enquanto estou vestido para o Carnaval do ano em que foi aberto o Passeio Público em Lisboa. Além disso, não quero que adormeças, isso não é perigoso quando se bate com a cabeça?...
- Obrigada pela preocupação!
E senti um sorriso tão grande a chegar aos meus lábios que tive que voltar a fechar os olhos e concentrar-me para ele não ver. Mas depressa percebi que ele não estava a olhar para mim sequer.
- Pintaste o tecto recentemente?...
Abri os olhos antes de responder e fitei-o. Segui a direcção dos olhos dele até à parte do tecto que estava por cima da cama, exactamente por cima de onde eu estava deitada. De facto, o tecto tinha sido pintado, o branco era definitivamente mais “lavado” por cima de mim. Sentei-me mais direita na cama e observei o Miguel a tentar chegar lá acima com a ajuda de uma cadeira.
- Sabes, eu tenho um escadote cá em casa....
- Deixa, eu acho que consigo chegar lá.
- Eu acho que consegues cair ou partir a cadeira... E nenhuma delas me agrada.
- Estás a chamar-me de gordo?!
Nem sei se cheguei a completar a frase de resposta no meu subconsciente porque ouvi o inevitável “crac” da cadeira a partir-se quando o Miguel saltou. Numa tentativa de ajudá-lo, acabei por ficar debaixo de parte da cadeira. O que até não era muito mau, não fosse ter levado com o Miguel que caiu desamparado em cima da cadeira em cima de mim. Soltei um esgar de dor porque não tinha ar para emitir qualquer outro som; não apenas pelo peso dele em cima de mim, mas também porque uma farpa de madeira entrou algures na minha barriga nesse momento... Não sei bem quando é que começaram a cair tábuas do tecto, mas desconfio que foram uns segundos depois do Miguel ter aterrado em cima de mim e do resto da imagem ter-se apagado com pontos desfocados que se juntaram numa enorme tela preta.
- Não consigo entrar no andar da frente, o raio da porta não mexe um milímetro!!
Sobressaltada, sentei-me na cama com um pulo e abri muito os olhos quando vi o Miguel à porta do meu quarto. Falei rapidamente, para disfarçar o espanto:
- Pensava que tinhas saído para comprar roupa nova?...
- E hei-de sair para comprar roupa nova! Mas faço questão que venhas comigo porque quero que passes pela vergonha de ser vista ao meu lado, enquanto estou vestido para o Carnaval do ano em que foi aberto o Passeio Público em Lisboa. Além disso, não quero que adormeças, isso não é perigoso quando se bate com a cabeça?...
- Obrigada pela preocupação!
E senti um sorriso tão grande a chegar aos meus lábios que tive que voltar a fechar os olhos e concentrar-me para ele não ver. Mas depressa percebi que ele não estava a olhar para mim sequer.
- Pintaste o tecto recentemente?...
Abri os olhos antes de responder e fitei-o. Segui a direcção dos olhos dele até à parte do tecto que estava por cima da cama, exactamente por cima de onde eu estava deitada. De facto, o tecto tinha sido pintado, o branco era definitivamente mais “lavado” por cima de mim. Sentei-me mais direita na cama e observei o Miguel a tentar chegar lá acima com a ajuda de uma cadeira.
- Sabes, eu tenho um escadote cá em casa....
- Deixa, eu acho que consigo chegar lá.
- Eu acho que consegues cair ou partir a cadeira... E nenhuma delas me agrada.
- Estás a chamar-me de gordo?!
Nem sei se cheguei a completar a frase de resposta no meu subconsciente porque ouvi o inevitável “crac” da cadeira a partir-se quando o Miguel saltou. Numa tentativa de ajudá-lo, acabei por ficar debaixo de parte da cadeira. O que até não era muito mau, não fosse ter levado com o Miguel que caiu desamparado em cima da cadeira em cima de mim. Soltei um esgar de dor porque não tinha ar para emitir qualquer outro som; não apenas pelo peso dele em cima de mim, mas também porque uma farpa de madeira entrou algures na minha barriga nesse momento... Não sei bem quando é que começaram a cair tábuas do tecto, mas desconfio que foram uns segundos depois do Miguel ter aterrado em cima de mim e do resto da imagem ter-se apagado com pontos desfocados que se juntaram numa enorme tela preta.
quarta-feira, maio 12, 2010
III: Roupa de Carnaval
Tentei levantar-me, mas ainda estava um bocadinho tonta. O Miguel ajudou-me com cuidado e levou-me de novo para o quarto para deitar-me um bocado. Eu fingi que não vi quando ele disfarçou um sorriso ao olhar para a confusão de livros que estavam no chão do quarto, assim como uma prateleira em bastante mau estado. Depois de estar deitada durante alguns minutos, resolvi espreguiçar-me ligeiramente e toquei no meu telemóvel que ainda estava em cima da cama.
- Ó Miguel, chegas aqui se faz favor?
Ele apareceu embrulhado na minha toalha turca e eu não pude evitar uma gargalhada, ainda que o movimento me provocasse uma ligeira dor de cabeça.
- O que é que foi? Já percebi que não queres que eu ande nu, mas não há nada no teu armário que me sirva!
- E eu disse alguma coisa? - Não conseguia parar de rir.
- Não, não disseste. Chamaste-me para quê mesmo?
- Não tarda começo a achar que estou a alucinar e que bati com a cabeça enquanto dormia, tu não estás realmente aqui nu e eu não recebi mensagens estranhas no telemóvel.
- Que mensagens estranhas?
- Foi por isso que te chamei, tu recebeste alguma mensagem assim? - E mostrei-lhe o código que tinha recebido nessa manhã – Recebi cinco assim, todas iguais.
- Não, mas nem acho isso o mais estranho destas mensagens.
- Estás a falar a sério? Então?...
- As mensagens foram enviadas do meu telemóvel!...
- Tu tens o meu número?!
- Achas mesmo que eu ia ter o número de alguém que não me fala há tantos anos?
- Não, mas era uma hipótese. Não faço ideia do que se está a passar aqui... - Agarrei na minha cabeça para tentar controlar a dor e ele acenou em concordância.
- Sentes-te melhor ou nem por isso?
- Considerando que tenho a cabeça aberta e acordei com um ex-namorado na minha cama que está agora enrolado na minha toalha preferida, até acho que estou a lidar muito bem com a situação!...
- Vejo-me forçado a concordar. Especialmente com a toalha preferida, é fofinha!
- Nunca mais vou usar essa toalha!!
- Xi, que simpatia! Eu também tomo banho, sabias?
- Acredito, mas não fazes ideia de onde andaste nas últimas 24h...
- Ok, tens razão. Eu compro-te uma toalha nova.
- Estás à espera que eu me levante e te vá comprar roupa, não é?
- É assim tão óbvio?...
- É, mas por um momento pensei que também podias estar preocupado comigo! - Levantei-me de um salto. - Importas-te de sair para eu vestir-me? Obrigada.
- Entendeste mal, o que eu queria dizer...
- Sai lá! Quanto mais depressa saíres, mais depressa tens calças!
- Nunca pensei que ouvir isso da boca de uma mulher me pudesse dar prazer! – E presenteou-me com um sorriso amarelo.
Talvez fosse a adrenalina de estar zangada, mas a verdade é que a cabeça deixou de doer e vesti-me num abrir e fechar de olhos. Ele queria roupa de homem, era? Pois ia ter roupa! Saí de casa sem dirigir-lhe palavra e ele ainda olhou para mim com ar desconcertado antes de eu fechar a porta. Fui direita à casa dos meus pais e trouxe de lá um dos fatos mais velhos e feios que o meu pai tinha. Só a ideia de ver o Miguel vestido com aquela roupa dos anos 50 estava a animar-me imenso! Entrei em casa triunfante e mostrei-lhe o fato.
- Que porra é essa?
- Pensava que tu só querias roupa que te servisse, não sabia que agora tinhas problemas de moda.
- Moda?! Isso saiu de moda quando inventaram a máquina de costura!
- É pegar ou largar! É domingo e as lojas estão quase todas fechadas.
- Mas onde é que tu foste desencantar isto? Até num concerto dos Beatles ainda na “Cavern” eu ia parecer fora de moda!...
Eu deixei o fato em cima da cadeira do quarto, fechei a porta e fui para a sala. A vingança até costuma saber bem, mas quando reparei que ele tinha arrumado os livros todos e, aparentemente, tentado recolocar a prateleira (sem sucesso), senti um certo amargo na boca. Passados alguns minutos (talvez a lutar com os suspensórios), o Miguel emergiu. Parecia realmente alguém que se tinha metido numa máquina do tempo e acabado de aterrar no futuro! As calças castanhas estavam demasiado curtas e deixavam ver a perna por cima das meias verdes, já para não falar nos sapatos obviamente apertados.
- Deves estar a gozar isto à brava, mas aproveita porque eu vou sair já daqui e só paro na loja mais próxima!
- Ainda não entendi porque continuas aqui, já estás vestido. - Ele suspirou.
- Não me lembrava que eras tão irritante, bolas! Merecias mesmo que eu me fosse embora e te deixasse aqui com aquele buraco na parede e essas mensagens esquisitas no telemóvel!!
- Não era esse o teu plano? Ires-te embora assim que estivesses vestido?...
- Tu és mesmo parva, caramba! Mas tu achas mesmo!? Ainda mais com alguém a espiar-te?!
- A espiar-me?... O que queres dizer?
- Estava eu armado em parvo a tentar arranjar o que tu destruíste – apontou para a estante no quarto - e reparei que tens lá um buraco enorme com um óculo e tudo para o apartamento do lado. Andas a ser observada.
A minha primeira reacção ao medo foi a de sempre: esconder-me. Mas não ia voltar para baixo da cama e deixar o Miguel ali estupefacto a olhar para mim. Concentrei-me e fui até ao quarto verificar o que ele me tinha dito. Era verdade, claro. Lá estava o buraco na parede com um óculo. Há quanto tempo estaria ali? Há quanto tempo andava eu a ser observada dentro da minha casa? E pior, como é que eles tinham feito isto sem eu dar por nada?... Puxei pela cabeça e lembrei-me que o andar com quem partilho aquela parede estava vago. Ou deveria estar. Sentei-me na cama e atirei a cabeça para trás. Que miséria de dia, ainda mal tinha começado e eu já tinha passado por um traumatismo craniano e quase expulsado um homem lindo da minha casa. Homem esse que ainda por cima esteve a dormir nu ao meu lado, ainda que possivelmente sedado! Isto já para não falar que os meus vizinhos (que supostamente não existem) andam a espiar-me.
- Ó Miguel, chegas aqui se faz favor?
Ele apareceu embrulhado na minha toalha turca e eu não pude evitar uma gargalhada, ainda que o movimento me provocasse uma ligeira dor de cabeça.
- O que é que foi? Já percebi que não queres que eu ande nu, mas não há nada no teu armário que me sirva!
- E eu disse alguma coisa? - Não conseguia parar de rir.
- Não, não disseste. Chamaste-me para quê mesmo?
- Não tarda começo a achar que estou a alucinar e que bati com a cabeça enquanto dormia, tu não estás realmente aqui nu e eu não recebi mensagens estranhas no telemóvel.
- Que mensagens estranhas?
- Foi por isso que te chamei, tu recebeste alguma mensagem assim? - E mostrei-lhe o código que tinha recebido nessa manhã – Recebi cinco assim, todas iguais.
- Não, mas nem acho isso o mais estranho destas mensagens.
- Estás a falar a sério? Então?...
- As mensagens foram enviadas do meu telemóvel!...
- Tu tens o meu número?!
- Achas mesmo que eu ia ter o número de alguém que não me fala há tantos anos?
- Não, mas era uma hipótese. Não faço ideia do que se está a passar aqui... - Agarrei na minha cabeça para tentar controlar a dor e ele acenou em concordância.
- Sentes-te melhor ou nem por isso?
- Considerando que tenho a cabeça aberta e acordei com um ex-namorado na minha cama que está agora enrolado na minha toalha preferida, até acho que estou a lidar muito bem com a situação!...
- Vejo-me forçado a concordar. Especialmente com a toalha preferida, é fofinha!
- Nunca mais vou usar essa toalha!!
- Xi, que simpatia! Eu também tomo banho, sabias?
- Acredito, mas não fazes ideia de onde andaste nas últimas 24h...
- Ok, tens razão. Eu compro-te uma toalha nova.
- Estás à espera que eu me levante e te vá comprar roupa, não é?
- É assim tão óbvio?...
- É, mas por um momento pensei que também podias estar preocupado comigo! - Levantei-me de um salto. - Importas-te de sair para eu vestir-me? Obrigada.
- Entendeste mal, o que eu queria dizer...
- Sai lá! Quanto mais depressa saíres, mais depressa tens calças!
- Nunca pensei que ouvir isso da boca de uma mulher me pudesse dar prazer! – E presenteou-me com um sorriso amarelo.
Talvez fosse a adrenalina de estar zangada, mas a verdade é que a cabeça deixou de doer e vesti-me num abrir e fechar de olhos. Ele queria roupa de homem, era? Pois ia ter roupa! Saí de casa sem dirigir-lhe palavra e ele ainda olhou para mim com ar desconcertado antes de eu fechar a porta. Fui direita à casa dos meus pais e trouxe de lá um dos fatos mais velhos e feios que o meu pai tinha. Só a ideia de ver o Miguel vestido com aquela roupa dos anos 50 estava a animar-me imenso! Entrei em casa triunfante e mostrei-lhe o fato.
- Que porra é essa?
- Pensava que tu só querias roupa que te servisse, não sabia que agora tinhas problemas de moda.
- Moda?! Isso saiu de moda quando inventaram a máquina de costura!
- É pegar ou largar! É domingo e as lojas estão quase todas fechadas.
- Mas onde é que tu foste desencantar isto? Até num concerto dos Beatles ainda na “Cavern” eu ia parecer fora de moda!...
Eu deixei o fato em cima da cadeira do quarto, fechei a porta e fui para a sala. A vingança até costuma saber bem, mas quando reparei que ele tinha arrumado os livros todos e, aparentemente, tentado recolocar a prateleira (sem sucesso), senti um certo amargo na boca. Passados alguns minutos (talvez a lutar com os suspensórios), o Miguel emergiu. Parecia realmente alguém que se tinha metido numa máquina do tempo e acabado de aterrar no futuro! As calças castanhas estavam demasiado curtas e deixavam ver a perna por cima das meias verdes, já para não falar nos sapatos obviamente apertados.
- Deves estar a gozar isto à brava, mas aproveita porque eu vou sair já daqui e só paro na loja mais próxima!
- Ainda não entendi porque continuas aqui, já estás vestido. - Ele suspirou.
- Não me lembrava que eras tão irritante, bolas! Merecias mesmo que eu me fosse embora e te deixasse aqui com aquele buraco na parede e essas mensagens esquisitas no telemóvel!!
- Não era esse o teu plano? Ires-te embora assim que estivesses vestido?...
- Tu és mesmo parva, caramba! Mas tu achas mesmo!? Ainda mais com alguém a espiar-te?!
- A espiar-me?... O que queres dizer?
- Estava eu armado em parvo a tentar arranjar o que tu destruíste – apontou para a estante no quarto - e reparei que tens lá um buraco enorme com um óculo e tudo para o apartamento do lado. Andas a ser observada.
A minha primeira reacção ao medo foi a de sempre: esconder-me. Mas não ia voltar para baixo da cama e deixar o Miguel ali estupefacto a olhar para mim. Concentrei-me e fui até ao quarto verificar o que ele me tinha dito. Era verdade, claro. Lá estava o buraco na parede com um óculo. Há quanto tempo estaria ali? Há quanto tempo andava eu a ser observada dentro da minha casa? E pior, como é que eles tinham feito isto sem eu dar por nada?... Puxei pela cabeça e lembrei-me que o andar com quem partilho aquela parede estava vago. Ou deveria estar. Sentei-me na cama e atirei a cabeça para trás. Que miséria de dia, ainda mal tinha começado e eu já tinha passado por um traumatismo craniano e quase expulsado um homem lindo da minha casa. Homem esse que ainda por cima esteve a dormir nu ao meu lado, ainda que possivelmente sedado! Isto já para não falar que os meus vizinhos (que supostamente não existem) andam a espiar-me.
terça-feira, maio 11, 2010
II: Miguel
Obriguei-me a abrir os olhos. Oh céus, era o Miguel! O meu primeiro namorado a sério e que eu não via há demasiados anos. E com quem eu tinha acabado por uma razão... incómoda. Primeira observação: eu nunca tive muitos namorados porque coragem para experimentar coisas novas não é coisa que abunde no meu espírito. Segunda observação: primeiro namorado há muitos anos quer realmente dizer que eu comecei a namorar tarde e a más horas e não que comecei no ciclo. A relação acabou porque eu tropecei a sair de um escorrega no jardim. Terceira observação: eu já tinha idade para ter juízo, sim. Ele não me amparou e com o desequilíbrio dei uma cabeçada num puto que estava à minha frente a comer um gelado, cujo cone prontamente entrou no meu olho. Tive ainda que ouvir um raspanete da avó do miúdo enquanto a minha testa sangrava e pagar-lhe um gelado novo que me custou cinco euros! Como se não fosse suficiente a queda estúpida que me valeu uma ida às urgências, ainda fui roubada por uma velha e gozada pelo meu namorado!! Ele ria como se não houvesse amanhã, mas lá se recompôs para levar-me às urgências e nunca mais voltei a falar com ele. Apaguei o número dele do telefone e da minha memória assim que disse ao médico de serviço: “tropecei nuns degraus a entrar numa gelataria”.
Pois bem, era o Miguel que estava morto na minha cama. Bem, continuava a achar que ele tinha que pagar pela insolência mas se calhar morrer tão novo era forte demais. Rodeei a cama e olhei-o como deve ser. Era mais bonito agora do que quando namorámos e devia ter morrido há pouco tempo porque ainda tinha um leve rosado nas maçãs do rosto. O meu corpo encheu-se de ternura, e não sei porquê, não evitei sorrir ao vê-lo ali deitado. Apercebi-me de repente que estava a rir-me para um morto, credo! Aproximei-me mais um bocadinho para ver o que ele tinha pendurado no fio ao pescoço e ocorreu-me que se calhar já devia ter chamado a polícia. Nesse momento, o peito dele elevou-se e ele tossiu ligeiramente. Cadeia de eventos que se seguiram: eu gritei aterrorizada, ele acordou com os gritos e levantou-se ligeiramente atordoado. Eu gritei de novo e saltei para trás quando ele se levantou. Aqui penso que bati com a cabeça na estante e desmaiei porque não me lembro de mais nada.
Acordei com o Miguel a pôr-me um pano molhado na cabeça e vi que a água no alguidar tinha restos de sangue. O meu sangue, supus.
- Ah, desta vez não te ris? - Tentei brincar, mas a voz saiu fraca.
- Não fosse a circunstância, ria-me de certeza. Continuas a ter imensa queda para isto!
- Ha, ha. Qual circunstância?
- O que é que eu estou a fazer na tua casa?...
- Eu ia perguntar-te porque é que não estás morto?
- É por isso que deixaste de falar comigo? Disseram-te que eu tinha morrido?
- Não! Eu vi-te na cama há pouco quando acordei e achei que estavas morto.
- Mandaste matar-me?!
- Achas mesmo?! Credo!
- Então deixaste de falar comigo mesmo de propósito.
- Claro que sim! Eu deixei de falar contigo porque tu... tu gozaste comigo naquele dia e não me ajudaste!
- Ora, a queda foi hilariante e a cena do gelado do puto e tudo! Mas eu levei-te às urgências, lembras-te? Não achas que a tua reacção foi extremamente exagerada?... Tu ainda estás chateada comigo ao fim deste tempo todo?!
- Esquece lá isso, como é que entraste na minha casa?
- Pensava que tu ias explicar-me essa parte.
- Eu não faço ideia. Eu acordei, vi-te, escondi-me e depois tu acordaste.
- Escondeste-te?... De mim?
- Pensava que estavas morto. Assustei-me, pronto.
- Tu não costumas ter cá muitos homens a passar a noite, pois não?...
- Que acordem mortos nem por isso.
- Eu não “acordei morto” porque isso é tecnicamente impossível comigo aqui, mas que raio de história é essa de eu estar morto?
- Tu tens os pés gelados.
- Eu vou fazer de conta que percebi. De 1 a 10, quanto te dói a cabeça?!
- Miguel, tu estás nu!!
- Peço desculpa madame! É que eu não faço ideia de onde está a minha roupa?! Se bem que o teu robe de seda ia ficar a matar-me com certeza!...
- Tu vieste nu para a minha casa?
- E até para a tua cama. Mas tu estás a começar a irritar-me, então eu já não te disse que não faço ideia de como é que eu vim parar aqui? E não me lembro de nada sem ser de sair para o trabalho ontem de manhã!...
- Hoje é domingo.
- Domingo? Eu fui trabalhar... anteontem de manhã?..
- Parece-me bem que sim.
Ele deixou cair a toalha ensanguentada da mão e eu acreditei finalmente que ele sabia tanto quanto eu: nada. Quer dizer, eu agora sabia que os pés dele tinham má circulação e um odor apurado. Hum, e que ele tinha um corpo bem bonito e definido que atraía mais a minha atenção do que deveria.
Pois bem, era o Miguel que estava morto na minha cama. Bem, continuava a achar que ele tinha que pagar pela insolência mas se calhar morrer tão novo era forte demais. Rodeei a cama e olhei-o como deve ser. Era mais bonito agora do que quando namorámos e devia ter morrido há pouco tempo porque ainda tinha um leve rosado nas maçãs do rosto. O meu corpo encheu-se de ternura, e não sei porquê, não evitei sorrir ao vê-lo ali deitado. Apercebi-me de repente que estava a rir-me para um morto, credo! Aproximei-me mais um bocadinho para ver o que ele tinha pendurado no fio ao pescoço e ocorreu-me que se calhar já devia ter chamado a polícia. Nesse momento, o peito dele elevou-se e ele tossiu ligeiramente. Cadeia de eventos que se seguiram: eu gritei aterrorizada, ele acordou com os gritos e levantou-se ligeiramente atordoado. Eu gritei de novo e saltei para trás quando ele se levantou. Aqui penso que bati com a cabeça na estante e desmaiei porque não me lembro de mais nada.
Acordei com o Miguel a pôr-me um pano molhado na cabeça e vi que a água no alguidar tinha restos de sangue. O meu sangue, supus.
- Ah, desta vez não te ris? - Tentei brincar, mas a voz saiu fraca.
- Não fosse a circunstância, ria-me de certeza. Continuas a ter imensa queda para isto!
- Ha, ha. Qual circunstância?
- O que é que eu estou a fazer na tua casa?...
- Eu ia perguntar-te porque é que não estás morto?
- É por isso que deixaste de falar comigo? Disseram-te que eu tinha morrido?
- Não! Eu vi-te na cama há pouco quando acordei e achei que estavas morto.
- Mandaste matar-me?!
- Achas mesmo?! Credo!
- Então deixaste de falar comigo mesmo de propósito.
- Claro que sim! Eu deixei de falar contigo porque tu... tu gozaste comigo naquele dia e não me ajudaste!
- Ora, a queda foi hilariante e a cena do gelado do puto e tudo! Mas eu levei-te às urgências, lembras-te? Não achas que a tua reacção foi extremamente exagerada?... Tu ainda estás chateada comigo ao fim deste tempo todo?!
- Esquece lá isso, como é que entraste na minha casa?
- Pensava que tu ias explicar-me essa parte.
- Eu não faço ideia. Eu acordei, vi-te, escondi-me e depois tu acordaste.
- Escondeste-te?... De mim?
- Pensava que estavas morto. Assustei-me, pronto.
- Tu não costumas ter cá muitos homens a passar a noite, pois não?...
- Que acordem mortos nem por isso.
- Eu não “acordei morto” porque isso é tecnicamente impossível comigo aqui, mas que raio de história é essa de eu estar morto?
- Tu tens os pés gelados.
- Eu vou fazer de conta que percebi. De 1 a 10, quanto te dói a cabeça?!
- Miguel, tu estás nu!!
- Peço desculpa madame! É que eu não faço ideia de onde está a minha roupa?! Se bem que o teu robe de seda ia ficar a matar-me com certeza!...
- Tu vieste nu para a minha casa?
- E até para a tua cama. Mas tu estás a começar a irritar-me, então eu já não te disse que não faço ideia de como é que eu vim parar aqui? E não me lembro de nada sem ser de sair para o trabalho ontem de manhã!...
- Hoje é domingo.
- Domingo? Eu fui trabalhar... anteontem de manhã?..
- Parece-me bem que sim.
Ele deixou cair a toalha ensanguentada da mão e eu acreditei finalmente que ele sabia tanto quanto eu: nada. Quer dizer, eu agora sabia que os pés dele tinham má circulação e um odor apurado. Hum, e que ele tinha um corpo bem bonito e definido que atraía mais a minha atenção do que deveria.
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