terça-feira, maio 11, 2010

II: Miguel

Obriguei-me a abrir os olhos. Oh céus, era o Miguel! O meu primeiro namorado a sério e que eu não via há demasiados anos. E com quem eu tinha acabado por uma razão... incómoda. Primeira observação: eu nunca tive muitos namorados porque coragem para experimentar coisas novas não é coisa que abunde no meu espírito. Segunda observação: primeiro namorado há muitos anos quer realmente dizer que eu comecei a namorar tarde e a más horas e não que comecei no ciclo. A relação acabou porque eu tropecei a sair de um escorrega no jardim. Terceira observação: eu já tinha idade para ter juízo, sim. Ele não me amparou e com o desequilíbrio dei uma cabeçada num puto que estava à minha frente a comer um gelado, cujo cone prontamente entrou no meu olho. Tive ainda que ouvir um raspanete da avó do miúdo enquanto a minha testa sangrava e pagar-lhe um gelado novo que me custou cinco euros! Como se não fosse suficiente a queda estúpida que me valeu uma ida às urgências, ainda fui roubada por uma velha e gozada pelo meu namorado!! Ele ria como se não houvesse amanhã, mas lá se recompôs para levar-me às urgências e nunca mais voltei a falar com ele. Apaguei o número dele do telefone e da minha memória assim que disse ao médico de serviço: “tropecei nuns degraus a entrar numa gelataria”.

Pois bem, era o Miguel que estava morto na minha cama. Bem, continuava a achar que ele tinha que pagar pela insolência mas se calhar morrer tão novo era forte demais. Rodeei a cama e olhei-o como deve ser. Era mais bonito agora do que quando namorámos e devia ter morrido há pouco tempo porque ainda tinha um leve rosado nas maçãs do rosto. O meu corpo encheu-se de ternura, e não sei porquê, não evitei sorrir ao vê-lo ali deitado. Apercebi-me de repente que estava a rir-me para um morto, credo! Aproximei-me mais um bocadinho para ver o que ele tinha pendurado no fio ao pescoço e ocorreu-me que se calhar já devia ter chamado a polícia. Nesse momento, o peito dele elevou-se e ele tossiu ligeiramente. Cadeia de eventos que se seguiram: eu gritei aterrorizada, ele acordou com os gritos e levantou-se ligeiramente atordoado. Eu gritei de novo e saltei para trás quando ele se levantou. Aqui penso que bati com a cabeça na estante e desmaiei porque não me lembro de mais nada.

Acordei com o Miguel a pôr-me um pano molhado na cabeça e vi que a água no alguidar tinha restos de sangue. O meu sangue, supus.

- Ah, desta vez não te ris? - Tentei brincar, mas a voz saiu fraca.
- Não fosse a circunstância, ria-me de certeza. Continuas a ter imensa queda para isto!
- Ha, ha. Qual circunstância?
- O que é que eu estou a fazer na tua casa?...
- Eu ia perguntar-te porque é que não estás morto?
- É por isso que deixaste de falar comigo? Disseram-te que eu tinha morrido?
- Não! Eu vi-te na cama há pouco quando acordei e achei que estavas morto.
- Mandaste matar-me?!
- Achas mesmo?! Credo!
- Então deixaste de falar comigo mesmo de propósito.
- Claro que sim! Eu deixei de falar contigo porque tu... tu gozaste comigo naquele dia e não me ajudaste!
- Ora, a queda foi hilariante e a cena do gelado do puto e tudo! Mas eu levei-te às urgências, lembras-te? Não achas que a tua reacção foi extremamente exagerada?... Tu ainda estás chateada comigo ao fim deste tempo todo?!
- Esquece lá isso, como é que entraste na minha casa?
- Pensava que tu ias explicar-me essa parte.
- Eu não faço ideia. Eu acordei, vi-te, escondi-me e depois tu acordaste.
- Escondeste-te?... De mim?
- Pensava que estavas morto. Assustei-me, pronto.
- Tu não costumas ter cá muitos homens a passar a noite, pois não?...
- Que acordem mortos nem por isso.
- Eu não “acordei morto” porque isso é tecnicamente impossível comigo aqui, mas que raio de história é essa de eu estar morto?
- Tu tens os pés gelados.
- Eu vou fazer de conta que percebi. De 1 a 10, quanto te dói a cabeça?!
- Miguel, tu estás nu!!
- Peço desculpa madame! É que eu não faço ideia de onde está a minha roupa?! Se bem que o teu robe de seda ia ficar a matar-me com certeza!...
- Tu vieste nu para a minha casa?
- E até para a tua cama. Mas tu estás a começar a irritar-me, então eu já não te disse que não faço ideia de como é que eu vim parar aqui? E não me lembro de nada sem ser de sair para o trabalho ontem de manhã!...
- Hoje é domingo.
- Domingo? Eu fui trabalhar... anteontem de manhã?..
- Parece-me bem que sim.

Ele deixou cair a toalha ensanguentada da mão e eu acreditei finalmente que ele sabia tanto quanto eu: nada. Quer dizer, eu agora sabia que os pés dele tinham má circulação e um odor apurado. Hum, e que ele tinha um corpo bem bonito e definido que atraía mais a minha atenção do que deveria.

3 comentários:

  1. LOL! Eu desde o ínício que tinha a sensação de ele não estar morto..

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  2. Que saudades que eu tinha. Ainda bem que voltaste a escrever,e logo com a classe do costume. Está muito bom o texto (do I e do II),mas isso tu já sabes. Agora põe o III, e depressa :)

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  3. Balhau: Já que estamos numa de mistério, posso dizer-te que ele vai estar morto num blog perto de ti que não este! Hehe

    Goth: Há que dizer que estou particularmente contente que estejas a gostar visto seres em grande parte responsável por esta história! Espero que continues a gostar :)

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