Acordei e, por momentos, achei que tudo o que tinha acontecido até ali tinha sido um pesadelo. O sol jorrava pela janela, eu estava enrolada numa manta e sentia-me completamente repousada. Espreguicei-me e senti uma pontada na barriga... passei ao de leve com a mão direita e constatei que a parte de ter pontos na barriga era um pesadelo muito real. Fechei os olhos depressa. Não queria que a sensação de paz se fosse embora, mas era tarde demais. Onde estava eu? Voltei a abrir os olhos e olhei para o tecto. Vi uma bonita estrutura em madeira toda devidamente envernizada. Olhei melhor para o aspecto rústico do quarto onde estava e reconheci-o imediatamente. Era a casinha minúscula que o Miguel tinha herdado de um bisavô. Estava perdida no meio das montanhas, junto a um pequeno lago e não tinha água corrente nem electricidade, quer dizer, tinha um gerador e não daquela electricidade que chega por "cabo". Fiquei contente ao ver o estado geral da casa, o Miguel tinha restaurado tudo de cima a baixo. Levantei-me com cuidado e encontrei-o a dormir no sofá da sala/cozinha/hall com o portátil sobre a barriga. Podíamos não ter água corrente nem esgotos, mas claro que tínhamos cobertura 3G!... Passei por ele e fui até ao balcão da cozinha. Havia pão e todos os armários estavam cheios. Fiquei com a nítida sensação que aquela era a casa dele e não uma casa de férias. Comecei a preparar-lhe o pequeno-almoço, torradas e sumo de laranja. Com cuidado levei tudo num tabuleiro e fiquei a observá-lo por breves momentos. Parecia-me que o velho Miguel tinha voltado, as feições de despreocupação e de gargalhada fácil ainda estavam lá. Sorri e pensei que a melhor maneira de acordá-lo era tentar tirar-lhe o portátil. Não me enganei e ele saltou logo do sofá.
- Não te preocupes, o meu portátil é melhor que o teu! Ou era, antes de me terem remodelado a casa.
- Desculpa, assustaste-me! O que é isso que tens aí? É para mim?
- É sim, eu já comi. - Observei-o enquanto ele se atirava ao monte de torradas e resolvi reviver o passado durante um bocadinho. - Fizeste um trabalho fantástico com ela Miguel. Eu já gostava imenso de como era antes, mas agora está excelente!
- De como era antes? Só tu para gostares da casa cheia de pó, teias-de-aranha e madeira cravada de caruncho! Lembras-te que nem conseguiste dormir na cama com medo que uma ripa de madeira caísse em cima de ti e tiveste que vir para o sofá?
- Lembro-me perfeitamente! Adorei os dias que passei aqui contigo, mas eu vinha dormir para o sofá porque não conseguia dormir ao teu lado – confessei.
- Eu ressonava?!
- Nada disso!... Eu nunca tinha dormido fora de casa e, bem, a verdade é que nunca mais dormi fora de casa. Tive medo de repetir a experiência e que ela nunca chegasse aos calcanhares do que passei contigo aqui. Estava tudo a ser tão bom, a paisagem magnífica, ninguém a chatear-nos, só tu e eu!... E o que eu estava apaixonada, nunca percebi se sentias o mesmo por mim. Queria acreditar que sim, mas achava que não. Não conseguia dormir porque tinha medo de acordar do sonho, acordar e não estares ao meu lado. Passei as noites a verificar que estavas mesmo ali comigo... vinha dormir para o sofá porque assim nunca ia acordar contigo e escusava de ter medo que me tivesses deixado. - Fitei o tecto, incapaz de olhá-lo nos olhos.
- Eu não acredito!! Mas tu sempre foste tão inteligente, que paragem foi essa? Ó Luísa, eu adorava-te! Achas mesmo que eu te tinha trazido aqui se não fosse esse o caso? Foste a única rapariga a quem eu me mostrei sem reservas e trouxe aqui. Sabes como este lugar era e é especial para mim. Depois de me teres deixado demorei imenso tempo até ter coragem de voltar cá.
- Desculpa. - E voltei-me para ele com umas lágrimas teimosas a bailar-me nos olhos. - Eu não consegui acreditar que era mesmo verdade o que sentias por mim, não conseguia conceber que sentisses o mesmo que eu. Afastei-te assim que pude antes que tu me afastasses...
- Eu não acredito que sofri miseravelmente porque tu ficaste burra de repente?!
- Mas pelo menos agora fiz-te o pequeno-almoço em vez de ficar a dormir no sofá o dia todo porque não pregava olho de noite?...
- Acho que tens que esforçar-te mais para conseguir compensar-me!
- Algum barrote que precise de uma demão de verniz?! - E sorri, embora o sorriso tivesse saído muito tremido. - Lamento que tenhas conhecido e apaixonado por aquela versão da Luísa com graves problemas de confiança. Acredita que nunca pensei em magoar-te...
- Bem, águas passadas não movem moinhos, não é? - Levantou-se e espreguiçou-se. - Eu vou correr um bocado lá fora para acordar. Faz o que quiseres, estás tudo à tua disposição, eu já volto!
E saiu. E deixou-me ali aparvalhada e sozinha depois da maior confissão da minha vida. Porque é que eu estava a sentir-me tão triste? Era outro Miguel e outra Luísa, foi há muitos anos e a culpa tinha sido minha. Porque é que eu achei que ia doer-lhe tanto a ele como a mim reviver isso?.. Senti uma dor forte na garganta e tentei suprimir as lágrimas e a respiração descompassada. Mas que mania tinham os últimos dias de amanhecer fabulosos e tornarem-se péssimos num abrir e fechar de olhos?..
Os dias passaram vagarosos, ele ficava o tempo todo a treinar lá fora ou a trabalhar no computador. Eu, sem saber o que fazer, ia dar passeios pela floresta que ainda conhecia e preparava as refeições. Quase não falávamos sem ser alguma conversa de circunstância e eu sentia-me extremamente infeliz. Queria ir-me embora dali, não queria guardar aquela memória comigo. Não queria ter aquela pessoa em particular a ignorar-me e a pensar em mim como um fardo. Até que finalmente passou uma semana desde que ele me tinha cosido e eu arranjei coragem para falar com ele sem ser sobre o estado do tempo ou a falta dos meus dotes culinários.
- Miguel? Desculpa lá interromper-te mas acho que já posso ir-me embora. Passou uma semana e eu tenho que ir tirar os pontos. Obrigada por deixares-me ficar aqui em segurança contigo e pelo cuidado que tens tido comigo.
- Ah, isto passa de uma confissão formidável, para conversa sobre o tempo e agora vais-te embora??! - Eu abri muito os olhos completamente abismada com aquela frase. - Desculpa, não ligues. Estou um bocado nervoso. Deixa-me lá ver isso.
Eu levantei a camisa, tinha a certeza que estava tudo a sarar lindamente. A cicatriz ia ficar pequena, o que era um milagre dadas as circunstâncias.
- Espera um momento, vou buscar uma lâmina.
- Uma quê?!
- Lâmina... para cortar-te os pontos.
- Não achas mais seguro que mos tirem no hospital?...
Ele nem me deixou acabar a pergunta, voltou-se para mim, baixou-se e começou a cortá-los. Voltei a sentir a sensação de um estranho cruzamento entre cócegas e dormência ponto após ponto, até que os cinco estavam na mesa e não em mim.
- Finito! Estás pronta para outra!
- Como eu detesto essa expressão... Mas obrigada. A cicatriz ficou tão pequenina! Da próxima vez que ficar debaixo de umas lascas de madeira, já sei a quem chamar! - E pisquei-lhe o olho.
- Luísa, temos que falar. - Estremeci dos pés à cabeça só de imaginar os possíveis temas. - Eu não queria envolver-te nisto, a sério que não, mas preciso da tua ajuda.
- Precisas que eu faça o quê?
- Confias em mim?...
- Claro que sim.
- Muito bem, então vou contar-te o que precisas de saber. Lembras-te do hotel onde estivemos?...
O pormenor do Miguel sair para correr no final da confissão está muito bom
ResponderEliminarPois é, vens com falinhas mansas a dizer que eu é que sou o mestre do suspense e tal, e de repente acabas o capítulo desta maneira e eu fico a roer-me todo! Assim não vale! ;)
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