sábado, maio 22, 2010

XII: O Dia D, parte II

"Deixei-me deslizar para dentro do hotel” soa melhor do que ser confrontada com a dura realidade de que caí pelo menos um metro e aterrei de cara no chão. Tudo isto porque alcei uma perna logo seguida da outra antes de esperar que a primeira atingisse um apoio firme. Claro que isso provocou uma tentativa de voo da minha parte (com direito a forte agitação de braços em movimentos circulares) que culminou com a minha cabeça e, em particular o meu nariz, a cair primeiro que o resto do corpo. Sir Isaac Newton: obrigada pelas leis que não se reflectem no meu mundo cheio de atrito. Levantei-me apressadamente, e não precisei de olhar para saber que o meu nariz estava a deixar um rasto de sangue. Nada mau para começar a minha missão! Como estava na arrecadação do hotel, o que pelo menos já era um objectivo conseguido, aproveitei para desencantar papel higiénico que enfiei prontamente pelo nariz acima e fiquei a contar carneiros, sempre de olhos postos no tecto.

A torneira que tinha no nariz eventualmente secou e deitei fora o papel tingido. Achei que ia ser apanhada de qualquer modo dada a minha particular eficácia para necessitar de primeiros socorros, portanto mesmo que eles descobrissem por onde eu tinha entrado (o sangue no chão era capaz de ser uma boa pista), não ia ser algum resto de ADN no papel higiénico que me ia tramar. Eu já era uma aposta perdida antes de começar! Mas como no fundo sou uma optimista, decidi que podia também procurar água oxigenada e tentar disfarçar a mancha de sangue no chão. Descobri depois que a água oxigenada é um excelente produto de limpeza e o chão de madeira ficou extremamente polido naquela zona! Eu realmente tinha nascido para ser invisível...

Inspirei fundo sem tentar pensar na quantidade de disparates que tinha feito até ao momento e concentrei-me no saco que estava no carrinho de tabuleiros que me tinha sido indicado, isto é, o único carrinho atrás da porta grande de metal. Abri o saco e revi a lista mental que o Miguel me tinha feito decorar: o arnês e restantes acessórios, o auricular, outro relógio e um papel que não estava na minha lista neuronal. Se aquelas coisas eram exclusivamente para mim, então faltava definitivamente um pacote de algodão, outro de pensos rápidos e Betadine! E se calhar qualquer coisa para a dor de cabeça provocada por um encontro imediato com o chão. Também não encontrei o comprimido de arsénico que existe nos filmes, será que se fosse apanhada matavam-me simplesmente com um tiro ou assim? Existiriam snipers em redor do hotel?.. A ideia arrepiou-me ligeiramente. Coloquei o auricular no sítio, mas ainda ninguém transmitia nada. Desdobrei cuidadosamente o papel que dizia: “Não te magoes muito, sim? Beijos, Miguel”. Respirei profundamente e desejei que um nariz semi-partido e um galo novo na cabeça não contassem.

Depois do que me pareceram horas intermináveis na arrecadação do hotel, o meu auricular deu finalmente sinal de vida. Era apenas estática, mas sempre era uma mudança bem vinda. Levantei-me num pulo e prestei muita atenção para não falhar nada. Ao fim de dez minutos aborreci-me outra vez e resolvi fazer eu própria o meu saco de acessórios com um bocadinho de algodão e pensos rápidos, arrumei tudo dentro do meu apertado fato. Estava entretida a fazer bolinhas de algodão quando ouvi finalmente o “podes entrar”. Tal como estava ensaiado, saí da arrecadação pela porta principal, atravessei o corredor e desejei que ninguém me visse. Por incrível que pareça, estava mais preocupada em ser vista “entalada” naquele fato do que em ser apanhada. Subi rapidamente ao primeiro andar pelas escadas que ninguém usa desde que inventaram os elevadores e fiquei um bocado consternada com o tamanho da janela no primeiro patamar. Era suposto eu passar por ali?! Eu sei que tenho um tamanho abaixo da média nacional, mas daí a ter a coluna vertebral de um gato ainda vai um bocado! Com alguma esperança que me tivesse enganado, meti a cabeça de fora e olhei para cima. As varandas por cima da minha cabeça, que correspondiam aos quartos do hotel, estavam todas preparadas para a minha subida. Fiz uma careta enquanto voltava a meter a cabeça para dentro e comecei a pensar numa forma de desmontar a janela para poder realmente sair por ali e conseguir chegar ao primeiro apoio.

Haja alguma coisa que se aprende na lida da casa e que pode ser útil quando tentamos assaltar um prédio: limpar janelas. Com cuidado, desencaixei o lado esquerdo da janela e coloquei-o no chão. Assim tinha espaço de certeza. Subi ao peitoril e comecei a subir, tal como me tinham ensinado. Fiquei um bocado espantada por ter atingido a primeira varanda sem grandes dificuldades, realmente o treino tinha sido eficaz! Nessa altura lembrei-me que não tinha voltado a colocar a janela no lugar... Será que alguém dava por ela?... Encolhi os ombros e rodeei a varanda para que ninguém me visse do vidro, embora já estivesse de noite e eu vestida de preto dos pés à cabeça. Continuei a subir, atónita por estar realmente a subir e não de cabeça para baixo nalguma cratera que tivesse acabado de abrir no asfalto. Quando cheguei à quinta varanda comecei a sentir-me ligeiramente cansada. Na décima estava capaz de ficar por ali. E na vigésima... acho que já não me importava de cair. As minhas pernas tremiam imenso, os meus braços estavam dormentes e eu continuava a morrer de calor. E se me desse alguma quebra de tensão ali?! Resolvi parar, estava a ser demais para mim. Mas como é que ocorreu ao Miguel que eu seria capaz de escalar até ao 27º andar?! E como é que eu achei que ia ser capaz de fazer isto sem nunca ter escalado na vida e, honestamente, não ter ideia da altura real de um 27º andar. Aliás, desde o 10º andar que eu tinha desistido de olhar para baixo.

Resolvi parar para ganhar forças. Claro que parar é maneira de dizer porque eu estava ali espalmada contra a parede como uma aranha que tinha acabado de bater na viseira de um carro. E, provavelmente, a aranha tinha tido um fim bem mais simpático do que o que eu ia ter! Deixei-me estar ali parada a respirar calmamente e deixei a minha mente vaguear um pouco... assustei-me quando uma pomba passou por mim. E assustei-me novamente quando o meu auricular voltou à vida e ouvi a voz do condutor da mota a incitar-me a subir, dar-me coragem por ter chegado ali. Eu fiquei petrificada, ele conseguia ver-me? Ou teria eu um dispositivo de localização naquele fato ridiculamente apertado? Se calhar era o segundo relógio?... Abanei a cabeça e concentrei-me apenas na mensagem de encorajamento que vibrava nos meus tímpanos. Subi mais uma varanda e outra... e outra ainda. E eis que por milagre cheguei ao 27º andar, ou pelo menos ao 27º na minha contagem mental. A voz de triunfo que saiu do meu auricular deu-me a entender que realmente estava no andar certo e também que tinha conseguido fazer uma coisa que aquela voz não acreditava, apesar das simpáticas palavras de encorajamento até ali. Nota mental: se sobrevivesse, dava um murro ao convencido da mota!

A pomba passou de novo por mim. Fiquei a seguir o trajecto dela, enquanto os auscultadores continuavam a debitar sons e a tentar roubar de volta a atenção que a visão tirava aos meus outros sentidos. “Concentra-te!” pensei... tinha que estar concentrada para o salto. Fechei os olhos, respirei fundo e lancei o meu braço direito em direcção ao último apoio. Desequilibrei-me para poder lançar todo o peso do meu corpo para a direita e quando finalmente expirei, a minha mão estava fechada em torno da vedação da varanda do quarto 27ºC. Depois de me permitir um pequeno sorriso de triunfo, balancei-me mais um pouco e subi para a varanda. Provavelmente era sorte de principiante, mas a primeira parte do plano estava completa, a segunda (e a que me causava mais dúvidas) estava a começar.

2 comentários:

  1. Eh lá! A Luísa está muito "Tomb Rider". Mal posso esperar para ver o que vai fazer agora!

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  2. Por acaso não tinha pensado no "Tomb Raider", mas está muito bem visto sim sr! A ver se gostas do resto do assalto ao hotel ;)

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