terça-feira, maio 25, 2010

XIV: O Dia D, parte IV

Não sabia novamente o que fazer, por isso fiquei a observar a cena. O Miguel sabia falar naquela língua, embora a maior parte das vezes se limitasse a abanar a cabeça em sinal de negação e a levar um murro ou outro por isso. Comecei a sentir-me cada vez mais frustrada e impotente por estar ali sem mexer um músculo. Penso que o Miguel desmaiou dos maus tratos a dada altura, porque a cabeça dele caiu para a frente sem vida. Suponho que os dois homens acharam que um era suficiente para guardar o Miguel e o outro saiu daquela divisão. Era a minha chance! Com cuidado rastejei até à primeira grelha de onde não vinha qualquer luz e, tentando fazer o mínimo ruído possível, atirei as pernas com força contra a grelha. Nada. A grelha não se mexeu um milímetro. Longe de desanimar à primeira tentativa, dei outro pontapé a pés juntos e nada. Talvez tivesse ficado um bocadinho mais arqueada? Suspirei alto com um certo desespero à mistura e resolvi rastejar um bocadito mais até à próxima grelha. Depois de três tentativas falhadas, resignei-me à ideia de que ia ficar fechada naquela ventilação até ao dia seguinte, pelo menos. O meu lado desastrado voltou ao de cima e, quando dei por mim, estava a deslizar por um túnel que tinha uma inclinação mais acentuada que os anteriores. Comecei a ficar apreensiva porque não conseguia travar, mas aos mesmo tempo estava a achar interessante que o fato estivesse a absorver a maior parte da fricção que se gerava. Ganhei uma velocidade considerável e quando o túnel virou bruscamente, eu saí pela grelha que estava em frente. Aí sim, os meus pés tiveram força para arrancar a grelha!

Aterrei no chão de forma bastante infeliz e abanei a cabeça uma série de vezes até achar que estava a ver apenas uma imagem. Pisquei bastante os olhos até conseguir vislumbrar finalmente três mulheres com uns fatos bastante.. reduzidos, vá, e um velho algemado à cama, apenas com boxers e um lenço a tapar-lhe a boca. Duas das moças tinham apenas cuecas de cores garridas vestidas, além de meias altas e sapatos de salto alto. O chicote da terceira, vestida de cabedal, ainda estava no ar, mas eles olhavam-me com ar nitidamente confuso. Suponho que eu lhes devolvia o mesmo olhar enquanto tentava perceber o que se passava ali. Até que finalmente "acordei", sorri e pedi desculpa, que continuassem que eu estava de saída... mas não sem antes perguntar se podia levar um casaco comprido emprestado. A respectiva dona acenou que sim, ainda um bocado atarantada com a minha entrada, e conforme eu me vestia e saía do quarto, tinha a nítida sensação de que a única coisa que se movia naquele quarto sem ser eu eram os vários pares de olhos constrangidos que caíam em mim. Nestas alturas usamos sempre o mesmo código de honra: eu nunca te vi nesses propósitos e tu nunca me viste aqui. Assim ficamos todos felizes e contentes!

Soltei o cabelo, vesti o casaco comprido e saí apressadamente do quarto, na esperança que alguém me visse apenas da cintura para cima e não reparasse que estava descalça. Cheguei ao átrio dos elevadores e dei-me conta que estava no 20º andar... menos mal. Só tinha sete para subir e já estava demasiado cansada daquelas voltas todas, por isso apanhei mesmo o elevador. Como já devia estar à espera, não era possível sair no 27º andar porque estava bloqueado. Fui tentando os vários botões e acabei por subir até ao 30º andar que foi o primeiro botão que funcionou. Chegada ao 30º andar, averiguei o estado das escadas e vi que havia gente a guardar a entrada dos outros andares. Deixei- me deslizar contra a parede até acabar sentada no chão, sentia-me altamente desmoralizada. Como é que eu ia chegar até ao Miguel?...

A resposta veio sob a forma de um elevador de cargas que estava metido numa espécie de armário, provavelmente para transportar comida ou assim. Levantei-me e dirigi-me ao elevador, não estava ali nada mas a qualquer momento podia subir ou descer. Aproveitei o facto de estar vazio para colocar a cabeça no túnel e ver se havia alguma hipótese de descer por ali. O túnel estava medonho, cheio de pó e outras coisas que eu não queria sequer saber. Fiz uma careta só de pensar na possibilidade de ter um pezinho meu que fosse tocar naquela parede. Mas porque é que o Miguel tinha sido tão estúpido e confiado em mim como ajuda possível?! E onde é que andava o outro da mota?... Se calhar ter-me desfeito do auricular não tinha sido boa ideia. Voltei a espreitar as escadas e vi alguma comoção. Alguma coisa tinha acontecido e isso deixou-me o caminho livre até ao 29º andar.

Corri o mais depressa que podia e consegui chegar ao andar imediatamente a seguir, aparentemente sem ter sido notada. Já só faltavam dois andares... Mas estava gente a amontoar-se no 28º andar e eu não podia descer mais por ali. Noutro rasgo de sorte, o barulho no andar de baixo provocou alguma consternação aos hóspedes do 29º andar, habituados a que estavam a uma noite de sono sem interrupções pelo preço que pagavam. Tentei passar despercebida como quem caminhava em direcção ao quarto, enquanto várias pessoas assomavam à porta em pijama. Alguns aventuraram-se mais longe e saíram dos quartos para espreitar o que se passava no andar de baixo. Era a minha oportunidade! Quase sem pensar, entrei na primeira porta aberta que vi e fui direita à janela. Não sabia bem em que zona do hotel estava, mas saí para a varanda, deitei-me no chão e espreitei os andares de baixo. Havia alguma agitação, mas eu estava claramente à esquerda do foco de tensão. Como não estava ninguém na varanda por baixo da minha, resolvi descer até ao 28º andar. Entrei pela varanda e desejei por todos os santinhos que a janela de correr estivesse aberta. Pus a mão do lado direito para abri-la com um empurrão, mas a janela abriu-se depressa mais: o Miguel tinha-a aberto ao mesmo tempo que eu, mas do lado de dentro!

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